Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica
Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas e defensores de teorias conspiratórias divulgam ideias estapafúrdias
Drauzio Varella
A ciência é uma ilha cercada de incompreensões
por todos os lados. A um só tempo, ela contradiz o senso comum, o
misticismo e o pensamento mágico, formas de interpretar o mundo adotadas
pela maioria.
Nos países mais desenvolvidos, as crianças ouvem falar dos princípios
que regem a ciência, já nos primeiros anos da vida escolar.
Infelizmente, entre nós, os estudantes entram e saem das universidades
sem noção de como deve ser articulado o pensamento científico.
Quando Galileu Galilei afirmou que a Terra era um dos planetas que
giravam ao redor do Sol, quase foi condenado à morte pela Inquisição. O
senso comum era o de que ficávamos parados no centro do Universo,
enquanto o Sol, a Lua e os demais astros orbitavam à nossa volta.
Muito mais fácil para os religiosos defender que a Terra era imóvel,
como afirmava a Bíblia, do que para Galileu explicar os movimentos de
translação e rotação, que ninguém conseguia enxergar nem sentir.
Quando Charles Darwin e Alfred Wallace demonstraram que a vida na
Terra —e em qualquer planeta em que venha a existir— é uma eterna
competição por recursos naturais limitados, na qual os menos aptos
perdem a oportunidade de deixar descendentes, a reação foi tão feroz que
150 anos mais tarde
ainda existem contestadores.
No mundo da internet, o senso comum ganhou status de expertise técnica. Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas,
charlatães e os defensores de teorias conspiratórias e de tratamentos
de eficácia jamais comprovada divulgam ideias estapafúrdias, como se
tivessem o nível de conhecimento de cientistas brilhantes.
A ciência é uma frágil conquista civilizatória da sociedade, baseada
no raciocínio lógico, na observação empírica, na significância
estatística, no confronto de dados e na reprodutibilidade dos
experimentos, regra segundo a qual a repetição de uma experiência deve
levar aos mesmos resultados, independentemente do observador.
Não é tarefa simples convencer sociedades inteiras de conceitos tão
abstratos. Veja o caso do uso da hidroxicloroquina no tratamento da
infecção pelo atual coronavírus, droga dotada de ação antiviral no tubo
de ensaio, já testada sem sucesso contra dengue, gripe, zika,
chikungunya e outras viroses.
Para demonstrar atividade de um medicamento contra determinada
enfermidade, para a qual não há tratamento conhecido, o estudo deve
pertencer à categoria dos ensaios clínicos controlados, randomizados,
prospectivos, em duplo cego.
Isso quer dizer, que os participantes precisam ser alocados ao acaso
para dois grupos: um deles servirá de controle, outro receberá pela
primeira vez a droga em teste. No entanto, como o simples ato de tomar
remédio altera a percepção dos sintomas que nos afligem, os pacientes
não devem saber para que grupo foram sorteados. Da mesma forma, é
preciso evitar que o julgamento do médico seja comprometido.
Para evitar esses vieses, há necessidade de administrar um placebo
para o grupo-controle, comprimido inerte (geralmente talco) com
aparência idêntica à do que contém a droga em teste, de modo que nem o
participante nem o médico possam identificar quem está em cada grupo
(duplo cego).
Os participantes serão seguidos até que o número de desfechos
clínicos nos dois grupos (cura, piora, mortalidade, sobrevida ou outro)
seja suficiente para que os dados nos deem pelo menos 95% de certeza de
que são significantes do ponto de vista estatístico.
Como explicar a necessidade de estudos tão detalhados para quem não
teve formação científica? É muito mais fácil para os mistificadores
contestá-los com base em crenças pessoais, opiniões, dados falsos,
interesses políticos ou financeiros. Nem precisam se dar ao trabalho de
contra-argumentar, basta pôr os resultados em dúvida: “não é bem assim”,
“eu não acredito nisso”.
Médicos criteriosos se baseiam em estudos conduzidos com tanto rigor,
porque foi graças a eles que a medicina contribuiu para duplicar a
expectativa de vida da população, no decorrer do século 20.
No caso da hidroxicloroquina, nenhum estudo prospectivo, randomizado,
controlado, em duplo cego, mostrou que pacientes tiveram qualquer
benefício em comparação com os que receberam placebo.
Então, por que há médicos que a receitam? A resposta, prezado leitor, deixo a seu critério.
Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um
cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a
salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o
socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei
mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa.
Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.
Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me
importam supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é
o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que
consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente
nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova
civilização tropical, mestiça e alegre.
Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos
comunistas.Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à
luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou
certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa
atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a
recomendar duas coisas aos jovens de hoje.
Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como
herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é
claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em
carreirinhas burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão
que poderiam render.
Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.
Vejo os jovens de hoje esvaziados de juventude, enquanto flama,
combatividade e indignação. Deserdados do sentimento juvenil de
solidariedade humana e de patriotismo e de orgulho por nosso povo.
Incapacitados para assumir as carências dos brasileiros como defeitos
próprios e sanáveis de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a
pobreza só existem e persistem, entre nós, porque são lucrativos para
uma elite infecunda e cobiçosa de patrões medíocres e de políticos
corruptos.
Afortunadamente, podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros
que são o sémen de nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria
perdida. É indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude
brasileira para si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a
ditadura militar, perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais
ardentemente combativos da última geração, foi difundir o medo,
promover a indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais
necessita, hoje, é de uma juventude iracunda, que se encha de indignação
contra tanta dor e tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua
missão política de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque
sua ausência é imediatamente ocupada pela canalha.
Talvez eu veja tanto desencantamento, onde o que há é apenas o normal
das coisas ou o sentimento do mundo que corresponde às novas gerações.
Talvez seja assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente,
porque sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha
juventude abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que
não corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso
que não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo
obviedades.
Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações sobre valores que
considero fundamentais e que não ressoam neles como eu quisera.
Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse nosso paísão
descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos, não nos caiu
ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de séculos de lutas e
sacrifícios de incontáveis gerações. O território brasileiro é do
tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira, impressa neles
por um milênio de resistência, para não serem absorvidos pela Espanha,
como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os primeiros dias
de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em marcar posses,
gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que nem podiam
compreender que nos faziam.
Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação
desse território como a base física em que nosso povo viverá seu
destino. Encho-me da mais furiosa indignação contra quem quer que
manifeste qualquer tendência separatista. Acho até que não poderia nunca
ser um ditador, porque mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores. Outro
valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o
sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso
povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios
caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados
no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos zés-ninguém
gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra coberta pelo amo
ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não sendo índios nem
africanos e não sendo também admitidos como europeus, caíram na
ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é que
plasmaram nossa identidade de brasileiros.
Fizeram-no um século depois, quando, através dos insurgentes
mineiros, tomamos consciência de nós brasileiros como um povo em si,
aspirando existir para si.
Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e indesejado do
empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria. A empresa
Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de europeu, o
ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de gêneros de
exportação.
Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir
ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes
dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste,
em nos manter nessa condição.
Foi sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência
com milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia
quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a
exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o
povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua
mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram
substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma
prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou
principalmente aos recém-vindos.
É de lamentar, porém, que vez por outra surja, entre eles, uns
idiotinhas alegando orgulhos de estrangeiridade. O fazem como se isso
fosse um valor, mas principalmente porque estão predispostos seja a
quebrar a unidade nacional em razão de eventuais vantagens regionais,
seja a retornarem eles mesmos para outras terras, como fizeram seus
avós. Afortunadamente, são uns poucos. Com um pito se acomodam e se
comportam.
Compreendem, afinal, que não há nesse mundo glória maior que
participar da criação, aqui, da civilização bela e justa que havemos de
ser.
Tal como ocorreu com nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa
tarefa, essencialmente de vocês, meus jovens. A história está a exigir
de nós que enfrentemos alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos
superar há décadas. Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade
para criar aqui uma sociedade de economia nacional e socialmente
responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos
os brasileiros. O caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da
terra, tirando-a das mãos de uma minoria estéril de latifundiários que
não plantam nem deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e
o crescimento caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome
do povo brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só
se amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico
compostos para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e
necessidades do povo.
Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo de interesses que nos
quer manter atados, servilmente, ao mercado mundial, exigindo
privilégios aos estrangeiros e a privatização das empresas que dão ser e
substância à economia nacional, para manter o Brasil como o paraíso dos
banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma economia autárquica,
mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele sobreviveremos.
Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado externo para ser um
povo que exista para si mesmo, ocupado primacialmente em promover sua
própria felicidade.
Essas lutas só podem ser travadas com chance de vitória desmontando a
ordem política e o sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é
preservar o latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa
para manter uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado
urbano servil a interesses alheios. Todos eles estão contentes com o
Brasil tal qual é. Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do
futuro o país que corresponda aos interesses dos países que nos
exploram.
Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial
da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais
são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo
que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a
implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a
justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela
queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma
como o são todas as nações desenvolvidas.
Eis o que peço a cada jovem brasileiro: repense estas ideias,
reavalie estes sentimentos e assuma, afinal, uma posição clara e
agressiva no quadro político brasileiro.
Nazistas, assassinos, abusadores, corruptos e milicianos estão no poder
Caso Flordelis é um resumo perfeito do Brasil sob Bolsonaro
Antonio Prata
A cantora, deputada e pastora evangélica
Flordelis não podia se separar do filho adotivo com quem havia se casado
—ex-marido de uma de suas filhas também adotadas— porque um divórcio escandalizaria a Deus:
então, obviamente, decidiu matá-lo. Com a ajuda dos filhos, claro. Essa
lógica tão cristalina quanto um bloco de granito é um resumo perfeito
do bolsonarismo.
Nas eleições de 2018, Bolsonaro se apresentou como anti-establishment
e antipolítico, embora tivesse passado as últimas três décadas bundando
na Câmara dos Deputados. Durante os anos em que bundou em Brasília,
Bolsonaro mantinha um apartamento funcional, pago por nós, embora
contasse com um imóvel próprio. Quando questionado, disse que o
apartamento funcional, pago por nós, era “pra comer gente”.
E quem mama nas tetas do Estado, segundo ele e seu asseclas, é o
coreógrafo, o ator de teatro, o aluno cotista, o pesquisador da Capes,
do CNPq que contam, ou, em grande parte, contavam, com incentivos
estatais.
Este velho político que usava o nosso dinheiro “pra comer gente”, que
está no terceiro casamento, que elogia publicamente o músico espancador
da namorada, coloca-se como “defensor da família”. É uma defesa da
família bem parecida com a da deputada Flordelis. Um duplo twist carpado
na lógica já torta do Maluf, “estupra, mas não mata”: é o “mata, mas
não desquita”.
Os cruzados da família não vão atrás do tio pedófilo que violentava a criança dos
seis aos dez anos, vão atrás é da menina no hospital para fazer um
aborto legal depois de ser engravidada pelo estuprador. A criança teve
que entrar no hospital dentro do porta-malas de um carro, enquanto os
defensores da família gritavam “assassina!”. A neonazista Sara Winter
(leiam o perfil na última Piauí) divulgou os dados da criança em suas redes,
de forma a garantir que ela siga sendo para sempre abusada, agora não
mais pelo tio, mas por todos os cidadãos e cidadãs “de bem”.
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos." Quando eu ouvi
pela primeira vez o slogan inconstitucional com que Bolsonaro batizou
nosso Estado laico, lamentei profundamente. Hoje em dia, diante da
demolição moral, institucional, ambiental, enfim, da implosão
civilizacional a que estamos assistindo, lamento profundamente é que não
tenhamos no lugar deste herege um presidente “profundamente
evangélico”.
Ao contrário do presidente, que não leu sequer a bula da cloroquina,
li a Bíblia de cabo a rabo. Não encontrei nos Evangelhos um versículo
sequer que justifique ter como braço direito da família um miliciano
assassino suspeito de organizar rachadinhas no gabinete do filho e repassar dinheiro para a mulher do pai.
Tampouco encontrei nos Evangelhos —o Velho Testamento é outra coisa,
ali El Shadai bota pra quebrar— nada que embase o extermínio de 30 mil
ímpios. Porrada na boca. Rato na vagina. (Uma tara do ídolo do
Bolsonaro, Brilhante Ustra). Jesus fez-se conhecido principalmente por
curar doentes. Não por dar as costas a leprosos dizendo que era “só uma
micosezinha” e deixar morrer 120 mil em poucos meses.
Jesus sacrificou-se para salvar a humanidade. Bolsonaro sacrifica a
humanidade para salvar o próprio rabo. Não é um bundão, é um serial
killer. Quando a crise econômica bater feio, ele dirá como Pôncio
Pilatos, algoz de Cristo: “Lavo minhas mãos”. As mãos de Pilatos estão
sujas até hoje, 2020 anos depois.
Nazistas, assassinos, abusadores de crianças, corruptos, delinquentes
e milicianos estão no poder, hoje, no Brasil, em nome da família, de
Deus e da liberdade. Amém.
Steve Bannon, o Trotsky da Internacional dos Populistas, por Fernando Nogueira da Costa
Steve
Bannon é originário da classe trabalhadora americana e nunca superou sua
raiva original. Abomina a elite esnobe em relação a gente como ele. Ele
luta para arrancar da intelligentsia liberal (esquerda norte-americana)
a hegemonia cultural.
Steve Bannon, um dos mentores da vitória de Donald Trump nas eleições
de 2016, foi preso em um iate. É acusado de enganar milhares de
doadores por meio de uma plataforma de financiamento coletivo chamada “We Build the Wall” (“Nós Construímos o Muro”). Acumulou US$ 25 milhões para o muro na fronteira entre EUA e México.
Bannon usou centenas de milhares de dólares desse dinheiro para
expandir despesas pessoais. Entende-se porque pregou esse bordão
xenófobo na campanha Trump…
Segundo Giuliano da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos”
(tradução Arnaldo Bloch. 1ª. ed. São Paulo: Vestígio, 2019), Steve
Bannon é, de certo modo, o Trotsky do movimento populista, misto de
ideólogo e organizador da Internacional dos populistas. Apresentarem-se
como nacionalistas seria uma contradição em termos.
Tais como seus representantes no Brasil, pertencentes ao clã Bolsonaro
da casta dos militares, não rejeitam a submissão aos Estados Unidos,
presidido por Donald Trump.
Steve Bannon é originário da classe trabalhadora americana e nunca
superou sua raiva original. Abomina a elite esnobe em relação a gente
como ele. Ele luta para arrancar da intelligentsia liberal (esquerda norte-americana) a hegemonia cultural.
Antes de se integrar a campanha de Trump, Bannon comandou o site de
contrainformação, Breitbart News, do movimento “direita alternativa” dos
EUA. Abriga nacionalistas, supremacistas brancos, neonazistas e
antissemitas radicais. Bannon logo aprendeu com seu mestre Andrew
Breitbart, fundador do site homônimo: “a política deriva da cultura”.
Aliás, Antônio Gramsci, à esquerda, sugeriu isso muito antes.
Seus membros se imaginam conspiradores contra o establishment.
São militaristas ou, simplesmente, indivíduos raivosos. Sempre estão
decididos a impor um ponto de vista diferente com “negacionismo
científico” sobre as principais questões no centro do debate: a
imigração, o livre-comércio, a defesa das minorias e os direitos civis.
A internet revolucionou a política em diversos países. O populismo
neofascista se iniciou na Itália. Lá, pela primeira vez, o poder foi
conquistado por uma forma nova de tecnopopulismo pós-ideológico, fundado
não em ideias, mas em algoritmos formadores de opiniões extremistas,
disponibilizados pelos engenheiros do caos.
Segundo Empoli, um tecnólogo de informações (Gasaleggio),
especialista em marketing digital, dirigiu o Movimento 5 Estrelas,
aliado a um comediante popularíssimo (Grillo). Depois de constituir sua
rede social a partir de um blog, fundou o partido e escolheu os
candidatos submetidos à sua visão até assumir o controle do governo de
toda a nação.
No
dia 8 de setembro de 2007, em toda a Itália, praças foram tomadas por
apoiadores do movimento populista. Direita e esquerda se confundiam, tal
como nas “gloriosas (sic) jornadas de junho de 2013” no Brasil,
abertura da porta para a direita “sair do armário”, onde tinha se metido
desde a Campanha Diretas Já, há 30 anos.
Insuflados por Grillo, os italianos raivosos manifestaram o Vaffanculo
[Vão se fuder, políticos!] à casta dos homens políticos corruptos,
pressuposta opressora de toda “gente de bem”. Em plena recessão, com uma
taxa de desemprego de 13% e uma carga tributária recorde, os italianos
estavam cada vez mais receptivos às palavras de ordem simplórias do
Movimento 5 Estrelas, organizado por uma rede social de ódio.
Em poucos meses, ele se torna o único verdadeiro partido nacional do
país, popular do Norte ao Sul, entre jovens e velhos, capaz de captar
vozes tanto à esquerda quanto à direita. Nas eleições de fevereiro de
2013, o Movimento 5 Estrelas, com pouco menos de 9 milhões de votos e
25% do sufrágio, se torna o partido mais votado da Itália.
A Física Social, há dois séculos, foi definida como “ciência cujo
objeto é o estudo de fenômenos sociais, considerados similares aos
fenômenos astronômicos, físicos, químicos e psicológicos”. Eles estariam
sujeitos às leis naturais invariáveis, cuja descoberta é a meta das
pesquisas: reduzir a sociedade a uma equação matemática.
Nunca atingiu o objetivo de tornar mais previsível a evolução da
sociedade. Mas, nos últimos anos, os comportamentos humanos começaram a
produzir um fluxo maciço de dados por conta da digitalização de todos os
celulares. Graças à internet e às redes sociais, nossos hábitos, nossas
preferências, opiniões e mesmo emoções passaram a ser mensuráveis.
Somos rastreáveis e mobilizáveis dentro de nossas “câmaras de ecos”.
Quantos “amigos” ou seguidores você tem na internet? Quinhentos? Mil?
Não se iluda. O limite das relações humanas é determinado pela biologia
evolutiva. O ser humano tem capacidade de manter uma rede de amizade
composta por, em média, 150 pessoas.
Conhecido
como “número de Dunbar”, ele foi estipulado, na década de 90, pelo
antropólogo inglês Robin Dunbar. Compartilhar informações pessoais com
quem não se tem intimidade, em rede social, cria a falsa sensação de
amizade.
Na Física, o comportamento de cada componente de um sistema não é
previsível. Cada um, porém, é submetido a interações com uma infinidade
de outros. O comportamento de um aglomerado é previsível. Através da
observação do sistema é possível deduzir o comportamento médio de certos
nódulos centrais com múltiplas interconexões.
As interações contam mais em vez das unidades individuais. O sistema
emergente, tomado em seu conjunto, possui características – e obedece a
regras – passíveis de tornar previsíveis e manipuláveis tanto suas
opiniões quantos suas ações. As leis da Física, em análise de big data, se aplicam aos comportamentos humanos aglomerados.
Um sistema de seres humanos, interativos entre si, pode ser um sistema caótico. Uma fake news
pode ser a pequena modificação inicial capaz de produzir imensos
efeitos secundários. Provoca até uma comoção social influente em uma
eleição.
O Facebook, por exemplo, permite testar simultaneamente dezenas de
milhares de mensagens diferentes, selecionando em tempo real as com um
retorno positivo e bem-sucedido. Por um processo de otimização contínua,
consegue-se elaborar versões mais eficazes para mobilizar partidários e
convencer os céticos. Graças ao trabalho de físicos, aplicado à
comunicação, cada categoria de eleitores recebe uma mensagem sob medida.
Pode-se, por exemplo, abordar os argumentos mais controversos,
endereçando-os somente àquelas pessoas sensíveis a eles, sem correr o
risco de perder o apoio de outros eleitores com pensamento diferente.
Chama-se “dog whistle politics” [“política do apito para cão”], quando só alguns percebem o chamado, enquanto outros não ouvem nada.
A Física Newtoniana era baseada na observação a olho nu ou pelo
telescópio. Ela descrevia um universo mecânico, regido por leis
imutáveis, no qual certas causas produziam certas consequências. A
Física Quântica desafia essas antigas leis da racionalidade científica.
Revela um mundo de relatividade, no qual nada é estável e onde
uma realidade objetiva não pode existir, porque, inevitavelmente, cada
observador a modifica na perspectiva de seu ponto de vista pessoal.
De maneira análoga, a Política Newtoniana estava adaptada a um mundo
mais ou menos racional, controlável, no qual a uma ação correspondia uma
reação. Os eleitores podiam ser considerados como componentes dotados
de pertencimentos ideológicos, de classe ou de território, dos quais
derivavam escolhas políticas definidas e constantes.
Com
a Política Quântica, a realidade objetiva não existe. Cada coisa se
define, provisoriamente, em relação a uma outra, e, sobretudo, cada
internauta determina sua própria realidade. Em sua bolha, recebe apenas
informações pelas quais se interessa.
Na Política Quântica, a versão do mundo vista por cada um é
literalmente invisível aos olhos de outros. Afasta cada vez mais a
possibilidade de um entendimento coletivo.
Cada um fica dentro de sua própria bolha, no interior da qual só
certas vozes se fazem ouvir. Apenas alguns fatos existem. Na
ultrapassada Política Newtoniana, cada um tinha direito a suas próprias
opiniões, mas não a seus próprios fatos, mas na Política Quântica esse
princípio não é mais viável. A verdade passa a ser a interpretação.
Alguns analistas comparam a política norte-americana atual ao clima
de 1860, antes da Guerra Civil. Os democratas querem acabar com as
injustiças históricas, para conquistar um país multicultural, negro,
branco, pardo, gay, transgênero, com necessidades especiais e
cosmopolita. Os republicanos têm a aparência predominantemente branca,
suburbana, provinciana e quase exclusivamente heterossexual. Os
conservadores buscam restaurar a situação histórica a uma época anterior
ao “politicamente correto”.
No Brasil, como diz Maria Rita Kehl, “para o machista, homofóbico,
misógino e conservador em costumes religiosos deve ser um osso duro de
roer ver a alegria, a liberdade e a autossuficiência da geração do
#EleNão”. Acumula ressentimento.
Os apoiadores do autoritarismo militar se ressentiram de ficar de
fora da festa da reconquista da democracia. Eles não se veem como
perdedores na competição social, mas como “prejudicados”. Ressentidos,
acusam a gente culta de esquerda por isso.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do
IE-UNICAMP. Autor de “Golpe Econômico: Locaute ou Nocaute da Economia
Brasileira” (2020). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/
Boaventura de Sousa Santos:
“credibilidade do sistema judicial do Brasil foi tremendamente corroída
pela Lava-Jato”,
por Cesar Calejon
Em sua
nova obra, o professor português utiliza o livro A Ascensão do
bolsonarismo no Brasil do século XXI como referência bibliográfica e
estabelece uma comparação entre as ascensões de Jair Bolsonaro e Adolf
Hitler
Em sua mais recente obra, a terceira edição do livro Toward a New Legal Common Sense: Law, Globalization and Emancipation,
que será lançada na próxima semana (31 de agosto) pela Cambridge
University Press, na Inglaterra, o professor português Boaventura de
Sousa Santos aborda a judicialização da política como um dos principais
eventos transnacionais da nossa época. Ele afirma que, no caso
brasileiro (Lava-Jato), existe um componente fortíssimo de influência
externa e cita o livro A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século
XXI como referência bibliográfica para compreender o bolsonarismo e
demonstrar as similaridades das ascensões de Jair Bolsonaro e Adolf
Hitler, considerando a atuação da operação Lava-Jato.
“Por que a Operação Lava Jato foi muito além dos limites das
polêmicas que habitualmente surgem na esteira de qualquer caso
proeminente de ativismo judicial?”, questiona Boaventura no sexto
capítulo do seu novo livro. “Permitam-me salientar que a semelhança com a
investigação italiana, Mãos Limpas, tem sido frequentemente invocada
para justificar a exibição pública e a agitação social causadas por este
ativismo judicial. Embora as semelhanças sejam aparentemente óbvias, há
de fato duas diferenças bem definidas entre as duas investigações”,
prossegue o acadêmico.
Segundo ele, “(…) por um lado, os magistrados italianos sempre
mantiveram o respeito escrupuloso pelo processo penal e, no máximo, não
fizeram nada além de aplicar regras que haviam sido estrategicamente
ignoradas por um sistema judicial que não era apenas complacente, mas
também cúmplice dos privilégios dos políticos governantes e das elites
na política do pós-guerra da Itália”.
“Por outro lado, procuraram aplicar o mesmo zelo invariável na
investigação dos crimes cometidos pelos dirigentes dos vários partidos
políticos. Eles assumiram uma posição politicamente neutra justamente
para defender o sistema judiciário dos ataques a que certamente seria
submetido pelos visados por suas investigações e processos. Essa é a
própria antítese do triste espetáculo que atualmente oferece ao mundo um
setor do sistema judiciário brasileiro. O impacto causado pelo ativismo
dos magistrados italianos passou a ser denominado República dos Juízes.
No caso do ativismo do setor associado à Lava Jato, talvez fosse mais
correto falar de uma república judiciária da Banana”, afirma Boaventura.
Ainda
de acordo com ele, “a influência externa que está claramente por trás
desse caso particular de ativismo judicial brasileiro estava amplamente
ausente no caso italiano. Essa influência é o que está ditando a
seletividade flagrante de tal procedimento investigativo e acusatório.
Pois embora envolva dirigentes de vários partidos, o fato é que a
Operação Lava Jato – e seus cúmplices da mídia – tem se mostrado
extremamente inclinada a envolver as lideranças do PT (Partido dos
Trabalhadores).”
Na página 386 do seu novo trabalho, Boaventura argumenta que a
Lava-Jato tem menos semelhanças com a operação Mãos Limpas do que com o
processo judicial que precedeu a ascensão do nazismo após o fim da
primeira guerra mundial na Alemanha.
“A Operação Lava Jato tem mais semelhanças com outra investigação
judicial, que ocorreu na República de Weimar após o fracasso da
revolução alemã de 1918. A partir daquele ano, e em um contexto de
violência política originada tanto na extrema esquerda quanto na extrema
direita , os tribunais alemães mostraram uma chocante demonstração de
dois pesos e duas medidas, punindo com severidade o tipo de violência
cometida pela extrema esquerda e mostrando grande leniência com a
violência da extrema direita – a mesma direita que em poucos anos
colocaria Hitler no poder. No Brasil, isso levou à eleição de Jair
Bolsonaro”, escreve o autor, que, neste parágrafo, oferece o livro A
Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI como referência
bibliográfica sobre o bolsonarismo.
“A credibilidade do sistema judicial do Brasil foi tremendamente
corroída pela manipulação grosseira a que foi submetido. Mas este é um
sistema internamente diverso, com um número significativo de magistrados
que entendem que a sua missão institucional e democrática consiste em
respeitar o devido procedimento e falar exclusivamente no âmbito do
processo”, acrescenta Boaventura.
Por
fim, ele pondera que “(…) a grosseira violação desta missão, exposta
pela Vaza -Jato (“Car-Leak”), está forçando as organizações
profissionais a se distinguirem dos amadores. Uma recente declaração
pública da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia, chamando o
ex-presidente Lula da Silva de prisioneiro político, é um sinal
promissor de que o sistema judiciário está se preparando para recuperar a
credibilidade perdida”, conclui.
* Cesar Calejon é jornalista com
especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela
Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro “A
Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI” (Lura Editorial).
A “recessão democrática” ainda não recebera nada no nível adotado por Fachin, exceto em parte pelo ministro Celso de Mello.
Objetivo como os magistrados evitam ser, claro e simples como os
magistrados detestam ser, franco e lúcido como deveriam ser as
considerações necessárias dos magistrados, Fachin advertiu que “as
eleições de 2022 [as presidenciais] podem ser comprometidas se não se
proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Proteger de
quê ou de quem?
O diagnóstico é forte e destemido: há “uma escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018”, gerada pela existência de “um cavalo de Troia dentro da legalidade constitucional” do país.
“Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e
organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia
ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”. O
que inflama o presente com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”.
Fachin vê, como todos, e diz, como poucos: “O futuro está sendo contaminado por despotismo”.
No Supremo, a ministra Cármen Lúcia pareceu dar eco às palavras
de Fachin no Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Considerou
triste a volta forçada do tribunal, diante do dossiê do Ministério da Justiça contra antifascistas,
“a este assunto quando já se acreditava ser apenas”, ou ter sido, “uma
fase mais negra da nossa História”. Nada a ver com o dito por Fachin, se
até agora Cármen Lúcia tinha tal crença. Mesmo a tristeza soa
irrealista.
Não faltaram ocasiões em que o Supremo e o TSE foram chamados a sustar a candidatura que atacou a democracia com a defesa da ditadura e da tortura,
atacou as instituições constitucionais, prometeu acabar com os petistas
e outros, anunciou uma população armada, transpirou ódios
preconceituosos e vocação homicida. Isso tudo expelido por uma
perturbação mental indisfarçável e com histórico comprovado.
Hoje não faltam crimes de responsabilidade acumulados.
Como não faltam mortes pela Covid, não combatida de fato e inocentada
para os incautos. E nem é só o figurante principal que continua
inatingível pela defesa da ordem constitucional e do devido à população.
A instauração e a ameaçadora continuidade do descrito por Edson
Fachin, como ninguém ousou fazer nas altas instituições, têm
corresponsabilidades no Judiciário e no Congresso. Mas aí mesmo, na
impossibilidade de negar o exposto pelo ministro, ficará mais difícil
não ver o que está vendo, para não fazer o que deve.
Os bons moços
Desde que passou de senador a deputado, para que seus processos
saíssem de Brasília rumo à sua Minas, Aécio Neves não cessa de receber
benesses.
O que importa é poder usufruir bem, com sua vocação de playboy, os milhões que extorquiu por aí com a irmã. Enquanto Geraldo Alckmin e José Serra seguem
suas vidas discretas e bem providas. Aos bons moços do PSDB
correspondem bons moços no Ministério Público e nos tribunais.
Como está, lei só amplia prisão de pequenos traficantes, facilmente substituíveis
Willian Sampaio
Advogado, foi subsecretário de
Assuntos Estratégicos e secretário-adjunto da Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo (2007-10)
No próximo domingo (23) a atual legislação antidrogas do Brasil,
lei 11.343/2006, completa 14 anos. De lá para cá viu-se aprofundar o
modelo equivocado de política criminal do país. Desde 1940, nossa
legislação penal é amparada por deturpada axiologia. É só ler o Código
Penal: a honra e integridade física, por exemplo, valem menos que uma
cabeça de gado. Explica-se: as penas para a calúnia, difamação e injúria
vão de três meses a dois anos de detenção; para lesão corporal, três
meses a um ano. Mas basta ocorrer um abigeato (furto de gado), que a
pena será de dois a cinco anos de reclusão.
Assim andou a Lei Antidrogas. Ao tipificar o crime de tráfico de
entorpecente, a lei trouxe, no artigo 33, 18 condutas. Juntou-se tudo:
“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,
vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer
consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer
drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar”.
Já a posse de substância entorpecente foi despenalizada —não
confundir com descriminalizada— pela previsão do artigo 28. Mas a lei
deixou ao critério discricionário sua aferição. Ao aplicar ao caso
concreto, modula-se a posse pela quantidade, local e circunstâncias
sociais e pessoais da pessoa.
Estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria, com base
nos dados do estado de São Paulo de 2010 a 2017, trouxe algumas
conclusões: como a lei não definiu critério objetivo na quantidade para
distinguir o uso do tráfico, esta operação é exercida pela autoridade
policial no momento da lavratura do boletim de ocorrência.
Também na capital é considerado tráfico de drogas o porte de
33 g de cocaína, 17 g de crack e 51,2 g de maconha. Já no restante do
estado, considera-se tráfico o porte de 20 g de cocaína, 9 g de crack e
32,1 g de maconha. Critérios objetivos para distinção poderiam ser uma
forma de reduzir a discricionariedade e definir fronteiras claras para
reformulação da atual política de drogas.
Não obstante, ainda segundo o estudo, a utilização de critérios
objetivos poderia gerar dois outros tipos de distorção: criminalizar
usuários e ser leniente com traficantes. Apontou, entretanto, ser
possível propor valores de corte ideais que balanceiam os dois tipos de
injustiça. O Supremo Tribunal Federal está julgando, desde 2011, recurso
extraordinário que visa declarar inconstitucional o artigo 28 da
referida lei —os três primeiros votos foram nesse sentido, dois deles
restritos à posse da maconha.
Mas, enquanto não se decide a questão e não se altera a lei, quais os
efeitos? Sob vigência atual, verificou-se o aumento exponencial de
presos por crime de “tráfico” e outros delitos ligados às drogas, a
maior parte pequenos vendedores nas “biqueiras”, pessoas facilmente
substituíveis por outras.
Dados do Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
mostram que a população carcerária do Brasil, somente entre 2010 e 2014,
cresceu 33%, enquanto outros países reduziam o número de presos, como
os Estados Unidos (-8%), a China (-9%) e a Rússia (-25%). O Brasil
passou de 361 mil presos em 2005 para 755 mil em 2019. Em taxa por 100
mil habitantes, foi de 196, em 2005, para 359 em 2019. São jovens, dos
quais 45% com idade entre 18 e 29 anos, 46% são pardos e 51% com ensino
fundamental incompleto. Mais de 30% dos presos do Brasil estão sob
custódia provisória, em alguns estados mais de 50%.
Da análise dos dados verifica-se um ponto relevante do perfil
de população carcerária e seus reflexos. Aqueles que ingressaram no
sistema penitenciário em 2008-2009, mais de um terço pela Lei das
Drogas, começaram a sair do sistema prisional entre 2013 e 2017. É de se
notar que até 2013 o número de roubos no estado de São Paulo era, em
média, 240 mil por ano. Em 2014, saltou para 310 mil e assim se manteve
nos anos subsequentes.
Criou-se um ciclo perverso: prende-se o pequeno vendedor de drogas que
anos depois volta às ruas, já estigmatizado e com poucas oportunidades,
como “roubador” e, o pior, muitas vezes para pagar a “cebola” —dinheiro
mensal destinado à facção criminosa que domina a maioria do tráfico de
drogas em São Paulo.
A população carcerária feminina também aumentou: 116% entre 2006 e
2019; 64% ligadas ao tráfico. Boa parte incorreu em um dos 18
verbos-núcleos típicos do artigo 33 —guardar a droga, e em casa.
O Brasil prende muito e prende mal —mas não é a polícia, que observa a
lei nas suas ações, nem o Judiciário, que entrega jurisdição. A lei
está errada. Errada ao colocar no mesmo dispositivo (artigo 33) pequenos
vendedores, com a mesma pena mínima aplicada a maiores traficantes
(cinco anos). Errada ao não estabelecer critérios objetivos para
verificar-se a posse de entorpecente. Errada ao vincular a Secretaria
Nacional de Política sobre Drogas (Senad) à atividade de Justiça e
segurança pública, quando deveria ser uma das competências da área da
saúde. Melhor seria que essa lei, na forma como está, não debutasse.
Lava Jato Lado B: Como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos EUA
"Como é
que a Petrobras pode ser ao mesmo tempo responsável perante os
promotores americanos e vítima perante os procuradores brasileiros? Quem
está errado?"
A história de como a Petrobras foi parar no banco dos réus nos
Estados Unidos entrelaça três frentes de atuação contra a empresa.
A primeira delas, que exerceu o papel de carro-chefe em relação às demais, foi a montagem de uma class-action,
uma espécie de ação judicial coletiva, uma das maiores do mundo, que
fez a Petrobras desembolsar sozinha quase 3 bilhões de dólares em
indenizações.
Na esteira dessa ação coletiva, o Departamento de Justiça – em
inglês, a sigla é DOJ – e a Comissão de Valores Mobiliários – a SEC, uma
espécie de agência reguladora do mercado de capitais – também passaram a
investigar a Petrobras, que está sujeita à fiscalização desde que abriu
capital na Bolsa de Nova York.
Seguindo a mesma linha de defesa que adotou na class-action, a Petrobras também fechou um acordo com o DOJ, e pagou mais uma multa, de 853 milhões de dólares.
No total, são 3,8 bilhões de dólares, ou mais de 15 bilhões de reais no câmbio do final de 2019. Essa
quantia hoje é quase 4 vezes maior do que a reparação que a Petrobras
recebeu por meio da Lava Jato nos últimos 5 anos. Também é mais do que o
dobro do valor anunciado como perdas de corrupção pela própria
Petrobras, quando ela se dirigiu ao mercado em 2015, para prestar contas
dos prejuízos.
COMO SURGIU A CLASS-ACTION
A class-action surgiu logo depois das primeiras delações da
Lava Jato. Com destaque para o depoimento de Paulo Roberto Costa, que
foi funcionário de carreira na Petrobras. Ele ter participado das
negociatas representava uma falha grave no sistema de compliance da companhia.
A advogada Valeska Teixeira, que estuda as relações da Lava Jato com os Estados Unidos, explicou ao GGN:
“Eles começam a ação [coletiva] em 2014 por práticas corruptas, ou
seja, alegando um sistema de corrupção sistêmico que teria, na
realidade, gerado um prejuízo muito grande para todos os acionistas
minoritários da Petrobras nos Estados Unidos.”
“Começam a fase de discovery, a parte de instrução para
descobrir essa corrupção. Eles inclusive narram [nos autos do processo
nos EUA] que mandaram ex-agentes do FBI ao Brasil; que teriam tido muito
cooperação das autoridades brasileiras, que teriam entrevistado
possíveis delatores que estariam na prisão. É uma pergunta que se faz:
como eles tiveram acesso a esses possíveis delatores?”
A ideia da class-action partiu de um advogado brasileiro, André de Almeida, formado no exterior. Ele se associou ao escritório norte-americano Wolf Popper
para processar a Petrobras em nome dos acionistas. Em dezembro de 2014,
eles entregaram a ação a um tribunal federal em Nova York.
“Por que não fazer no Brasil? Primeiro porque acho que existe um gap
civilizatório brutal entre o Poder Judiciário americano e o brasileiro.
Especialmente em ações coletivas, e especialmente em reparações ao
acionista minoritário”, comentou.
“A minha pretensão, muito ousada na época, era que a Justiça
americana compensasse ou indenizasse todos os acionistas, brasileiros e
estrangeiros. O Judiciário americano decidiu, no curso da ação, que ele
teria competência apenas para julgar as indenizações relacionadas aos
acionistas que investiram nos Estados Unidos. Não são [apenas]
americanos, são fundos, pessoas físicas ou jurídicas ou qualquer outro
veículo de investimento, mas que tenham comprado [ações da Petrobras] no
mercado americano.”
Na teoria, a desvalorização das ações da Petrobras na fase inicial da
Lava Jato tinha três componentes: a queda no preço do barril de
petróleo no mercado internacional, os danos à imagem provocados pelo
estouro da operação em Curitiba e a corrupção em si. Como separar esses
três elementos no cálculo do valor da ação?
Segundo Almeida, “para fazer um cálculo de quanto foi a perda, nós
temos de ter um marco zero. E o marco zero que desenhei para a class-action foi aquele, entre aspas, IPO [sigla
em inglês para “oferta pública inicial”, ou abertura de capital] que
ocorreu em 2010, que fez a Petrobras ser a quinta empresa mais valiosa
do mundo na época.”
“Ela tinha um market cap, um valuation de mais de
300 bilhões de dólares, em 2010. Foi um dado que a própria companhia
divulgou ao mercado e foi o número com que o próprio mercado avaliou a
companhia. Ao final de 2015, a companhia valia 30 bilhões de dólares, ou
seja, teve uma depreciação ao longo de quatro anos.”
Nesse
mesmo período, houve uma “queda abrupta no preço do petróleo”. Mas as
ações de grandes petrolíferas “bem administradas”, segundo Almeida, não
caíram tanto quanto as da Petrobras. “A ação da Exxon Mobil caiu 18%. A
ação da British Petroleum, 14%. A ação da Petrobras caiu 90%, e a ação
da PDVSA caiu 89%. Veja bem: a Petrobras conseguiu ter queda superior a
da PDVSA, que é a companhia [venezuelana] mais ineficiente do mundo.”
Essa diferença, na visão do advogado dos acionistas, só tinha uma
explicação: a Petrobras perdeu mais valor porque tinha problemas
internos de má gestão e desvios de conduta ética.
“Nada justifica uma empresa perder um valor de mercado de 90% em
quatro anos, e justificar isso com relação a perda de valor do mercado
de petróleo, quando, simultaneamente, outras empresas na realidade não
sofreram nada”, argumentou.
Mas para ressarcir os acionistas, o cálculo envolvendo os danos à
imagem da Petrobras e a corrupção alegada pela Lava Jato jamais foi
realizado.
“Não chegou-se no processo no momento em que houve uma conta para
verificar qual valor se deve à corrupção, qual valor se deve à
ineficiência, qual valor se deve ao uso político da empresa e qual valor
se deve à incompetência.”
A conta ao final não precisou ser feita, de acordo com Almeida,
porque a Petrobras optou pelo acordo e se obrigou a pagar 3 bilhões de
dólares em indenização aos acionistas, “o que dá um valor de mais ou
menos 1 dólar por ação.”
“A pretensão inicial era um ressarcimento no valor de 8 dólares a 9
dólares por ação, por isso é ‘a maior ação do mundo’ [título do livro
escrito por Almeida sobre o processo histórico contra a Petrobras], mas
um acordo é sempre um acordo.”
A PRESSÃO PELO ACORDO
“Você começa a perceber que há a metodologia de carrots and sticks [cenouras e porretes, em tradução livre], que é uma tática muito conhecida de lawfare”, explicou Valeska Teixeira.
“Você simplesmente, como disse Dallagnol, coloca a pessoa de joelhos e
oferece uma redenção. É basicamente isso. A pessoa [no caso, a
Petrobras] confessa, aceita a jurisdição [dos EUA], aceita a aplicação
do FCPA [a lei anticorrupção norte-americana], e isso tudo é negociado.
Não há revisão, não há escrutínio judicial nos Estados Unidos. Tudo
acontece lá, de forma negocial, na Justiça de lá.”
“A Petrobras se apresentou espontaneamente naqueles autos e começou a
compartilhar todas as provas, ou documentos, ou testemunhos”, comentou
Valeska.
“O curioso é que, nos acordos governamentais, por exemplo, o DOJ
[Departamento de Justiça dos EUA], quando faz o acordo [separado da class-action],
ele estimava uma perda no âmbito da Petrobras, por conta da corrupção,
de 1 bilhão de dólares. A SEC [Comissão de Valores Mobiliários dos EUA],
na mesma data, fala que deveriam ser reparados aos acionistas, global,
933 milhões de dólares. O fato é que fecham um acordo por quase 3
bilhões de dólares.”
A class-action foi finalizada oficialmente em janeiro de
2018. Em setembro daquele mesmo ano, a Petrobras fechou ao mesmo tempo
os outros dois acordos que faltavam nos Estados Unidos. Um deles com a
SEC, que estimou a multa de 933 milhões de dólares, como explicou
Valeska. Esse valor, contudo, foi descontado dos bilhões pagos na class-action. O terceiro acordo foi com o DOJ, que é bastante controverso dentro da comunidade jurídica.
Para o advogado e consultor André Motta Araújo, “é aceitável que a
SEC multe a Petrobras como multaria qualquer outra empresa. A SEC dá
embasamento à cobrança de multas porque ela considera que a corrupção
afeta a regular cotações das ações. O balanço, não refletindo a
corrupção, ele é falso, está adulterado, então passaram informações
inadequadas ou insuficientes para os acionistas. É nesse quadro que se
dá a multa da SEC.”
Já o acordo com o DOJ gera uma discussão sobre a legitimidade de
submeter uma empresa estratégica para o desenvolvimento do Brasil à
jurisdição norte-americana.
Além disso, é de se perguntas se o que aconteceu dentro da Petrobras
se enquadra no escopo da FCPA, que é a lei anticorrupção dos EUA.
Aqui
no Brasil a Petrobras não foi acusada de ter sido pagadora de propina.
Ao contrário: foi tratada como vítima e sua pessoa jurídica não só foi
poupada pela Lava Jato em Curitiba como trabalhou como assistente de
acusação.
A União, que é acionista majoritária, poderia então ter invocado
imunidade funcional para a Petrobras – uma estratégia embasada no
tratado de cooperação internacional com os Estados Unidos em matéria
penal, em vigor no Brasil desde 2001.
A ARMA DIPLOMÁTICA
“O Brasil bastaria invocar, através de seu canal diplomático, essa
cláusula de interesse nacional, [alegando] que a Petrobras não está sob
jurisdição [dos EUA] no que concede à lei anticorrupção de 1971, que é a
FPCA. O governo americano jamais criaria caso com o Brasil”, disse
Araújo ao GGN.
“Considero ainda absurdo pensar que o governo americano fosse pensar
em uma sanção contra a Petrobras, que é a maior cliente dos combustíveis
dos EUA. Quer dizer, o Brasil não usou nenhuma arma diplomática. O
governo teria todo o peso para fazer, e não fez por vergonha ou talvez
timidez. Isso é uma coisa que não se trata como subalterno. É de País
para País”, acrescentou Araújo.
A FUNDAÇÃO LAVA JATO
Curiosamente, os Estados Unidos abriram mão de 80% da multa de 853
milhões de dólares aplicada à Petrobras pelo DOJ. Eles determinaram a
devolução de 682 milhões de dólares, algo equivalente a 2,5 bilhões de
reais. O acordo previa expressamente que as “autoridades brasileiras”
deveriam decidir como utilizar esse dinheiro.
Mas em janeiro de 2019, a Petrobras assinou um contrato exclusivo com
os procuradores de Curitiba. A força-tarefa planejava criar uma
fundação bilionária que financiaria ações sociais e anticorrupção com
metade da multa da Petrobras. Os outros 50% seriam guardados para
indenizar acionistas brasileiros no futuro. A jogada foi barrada pelo
Supremo Tribunal Federal.
O PAPEL DOS PROCURADORES DE CURITIBA
Uma das dúvidas que ainda pairam sobre os processos que a Petrobras
enfrentou nos Estados Unidos diz respeito ao papel nebuloso exercido
pelos procuradores da Lava Jato.
“O Ministério Público Federal teve uma relação muito ambígua no caso.
Os promotores brasileiros em Curitiba achavam um absurdo a ação
judicial [class-action]”, disse Almeida, o advogado dos acionistas nos EUA.
“A teoria do Ministério Público era de que a empresa era vítima. E
essa teoria era contrária à minha, de que ela deu causa [à corrupção e
consequente desvalorização]. E o Ministério Público Federal brasileiro
queria que eu perdesse a class-action, porque se eu perdesse, quer dizer
que a teoria deles de que a empresa brasileira era vítima, era a
correta.”
“Agora me explica uma coisa: como é que a Petrobras pode ser
ao mesmo tempo responsável perante os promotores americanos e vítima
perante os procuradores brasileiros. Quem está errado?”, disparou Almeida.
“É, na minha visão, um grande enredo equivocado criado pelo
Ministério Público Federal pela sua conveniência. Porque era mais fácil
tratar a Petrobras como vítima e empresas como bandidas, do que o
contrário, juridicamente falando. Porque caso o MPF quisesse demonstrar
que a Petrobras foi autora dos ilícitos, assim como os fornecedores, ele
teria o trabalho de envolver o poder público, a União federal, no
processo. E eles não tiveram a capacidade, ou a vontade, ou talvez a
inteligência de separar uma coisa da outra”, esclareceu Almeida.
É claro que a Lava Jato não vai admitir isso, mas pode ter sido pura
estratégia processar a Petrobras como vítima no Brasil, e não como
culpada, como fizeram nos Estados Unidos. No fundo, o que estava em jogo
era manter o centro da operação em Curitiba, sem perder o controle para
tribunais superiores, algo que poderia acontecer a União fosse
arrastada para o caso.
A VIAGEM DE JANOT E A OPERAÇÃO RADIOATIVIDADE
Além de receber agentes do DOJ aqui no Brasil, os procuradores da Lava Jato também fizeram diversas viagens aos Estados Unidos.
Em fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos
Lima foram pedir ajuda das autoridades norte-americanas para investigar a
Eletronuclear, uma subsidiária da Petrobras.
Na mesma viagem, Rodrigo Janot, então chefe do Ministério Público
Federal, visitou Leslie Caldwell, procuradora-adjunta da Divisão
Criminal do Departamento de Justiça.
Leslie
tem ampla experiência. Participou do caso Enron e ficou marcada pelo
estilo implacável. Antes de atuar no DOJ, ela foi sócia do Morgan Lewis,
o maior escritório de advocacia a trabalhar para a indústria
eletronuclear nos EUA.
Cinco meses depois daquela viagem, a Lava Jato em Curitiba prendeu o
Almirante Othon Luiz Pereira da Silva, o pai do programa nuclear
brasileiro. As pistas provavelmente vieram das reuniões com o DOJ.
Ao longo de sua carreira, o Almirante Othon acumulou um conhecimento
único sobre um mercado que, no comércio mundial, equivale a 100 bilhões
de dólares ao ano.
Contra ele, usaram a delação de Dalton Avancini, que “ouviu dizer”
que a formação de cartel nas obras da usina de Angra 3 teve a suposta
anuência do Almirante, que foi presidente da Eletronuclear, a
contratante da obra.
Havia uma enorme desproporção entre as supostas propinas que o
Almirante e a empresa de tradução técnica de sua filha teriam recebido
em troca de supostamente beneficiar empresas do tal cartel. Além disso,
decisões usadas contra ele no processo eram de competência exclusiva da
Presidência da República, do Ministério da Defesa e das Forças Armadas.
O ex-juiz Sergio Moro até chegou a considerar que as “conhecidas
qualificações técnicas de Othon” justificavam os pagamentos sob
investigação. Mas no final, Moro alegou “um possível conflito de
interesses” para fundamentar a prisão.
Foi assim que a Lava Jato colocou o mais relevante cientista militar
brasileiro da atualidade atrás das grades, comprometendo o
desenvolvimento de uma tecnologia crítica para o País.
Moro depois transferiu a ação penal para o juiz Marcelo Bretas, que
cuida da Lava Jato no Rio de Janeiro. o Almirante Othon, já com 77 anos
de idade, foi então condenado a 43 anos de prisão. Atordoado com o que
estava acontecendo, ele tentou suicídio em sua própria cela.
Dois anos mais tarde, quando foi libertado, Othon avaliou que seu caso envolvia “interesses internacionais”.
Algum tempo depois, o governo Bolsonaro propôs o fim do controle
estatal sobre a exploração de urânio e a possibilidade de empresas
privadas atuarem no mercado brasileiro.
“Não há nenhuma dúvida de que o governo Trump está muito feliz com
Bolsonaro e o apoia fortemente ou irá tentar apoiá-lo da maneira que
puderem. Isso porque eles alinharam sua política externa. É por esse
motivo, eu acho, que os Estados Unidos quiseram se livrar do antigo
governo brasileiro”, disse o economista Mark Weisbrot.
“O que está acontecendo na Petrobras hoje é consequência da Lava
Jato. É privatização branca. ‘Quanto maior for a Petrobras, mais
corrupção vai ter. Vamos cortar um pedaço do boi para não dar
carrapato.’ Essa é a lógica que está sendo aplicada em consequência da
Lava Jato”, comentou Araújo.
A nossa equipe de reportagem questionou a Petrobras sobre os gastos
com escritórios de advocacia especializados na legislação
norte-americana e o uso dos canais diplomáticos em sua defesa. A empresa
não quis comentar esses pontos. Por e-mail, ela afirmou que os acordos
com o DOJ e a SEC, e também a class-action, “atendem aos
melhores interesses da Petrobras e de seus acionistas, e põem fim a
incertezas, ônus e custos associados a potenciais litígios nos Estados
Unidos.”
Já os procuradores de Curitiba afirmaram por e-mail que Janot não
participou das reuniões com o Departamento de Justiça. A força-tarefa
também disse que “não interferiu no processo da Petrobras junto ao DOJ e
à SEC, nem nas negociações entre eles. Contudo, realizou gestões
perante as autoridades norte-americanas para que parte significativa dos
recursos pudesse ficar no Brasil. O pedido se fundamentou especialmente
no fato de que a sociedade brasileira foi quem mais sofreu com a
corrupção político-partidária na estatal.”
Nota da redação: Esta reportagem faz parte do projeto “Lava Jato Lado B – A influência dos EUA e a indústria do compliance”,
produzido pelo GGN no último trimestre de 2019 e divulgado em janeiro
de 2020. Antes, portanto, das revelações feitas pelo dossiê “Vaza Jato”,
do The Intercept Brasil e veículos associados.