Gestão punitiva
Merval Pereira, O Globo
Raramente, quando se trata de gestão pública, encontra-se quem venha a público chamar a atenção para possíveis abusos acusatórios do ponto de vista técnico, e não meramente político.
Em meio a tantas denúncias de corrupção nas diversas áreas da gestão pública, o advogado Fábio Medina Osório, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor referenciado de vários livros sobre improbidade administrativa, introduz um novo elemento na discussão, aparentemente contramajoritário, mas no fundo um ponto positivo para o aperfeiçoamento de nossas instituições.
Ao questionar, em artigos e entrevistas, a pouca discussão que ele entende haver no Brasil sobre a medição da chamada “gestão punitiva”, apesar de sua brutal interferência na vida de todos os cidadãos e seu impacto direto nos direitos fundamentais, o advogado Fábio Medina Osório está ampliando o leque sobre a responsabilização dos erros na gestão pública.
O professor ressalta que, de um modo ou de outro, se trata de processos que produzem comoção na grande mídia e reflexos patrimoniais e morais aos acusados em geral, interferindo em complexas competições econômicas e, inclusive, políticas.
É necessário, segundo Medina Osório, medir a má gestão punitiva em nosso país, o que hoje é feito pela imprensa ou pelo volume de acusações que circulam pela mídia.
Segundo ele, essa é uma forma errada de medir a patologia, porque o volume de problemas pode aflorar a partir de uma atuação mais intensiva das instituições ou da própria liberdade de imprensa. Essa, aliás, é a tese do governo federal, que diz que não foi a corrupção que aumentou, mas a atuação repressora do Estado.
O advogado Fábio Medina Osório acha que a agenda de infraestrutura, por exemplo, depende, em grande medida, de segurança jurídica, o que envolve alguma uniformidade de critérios e certo grau de plausibilidade nos processos punitivos.
As estatísticas necessárias para medir a eficácia do sistema buscariam alcançar, fundamentalmente, dados a respeito das decisões judiciais definitivas envolvendo esses casos, pois os processos garantem direitos de defesa e podem culminar com o reconhecimento da inocência dos acusados.
A grande mídia pode medir num plano puramente político, mas não no plano científico-estatístico, diz Medina Osório.
Um crucial levantamento, portanto, que deveria ser discutido em todos esses processos é o padrão de eficiência acusatória atual: qual é o quantitativo de pessoas que são decretadas inocentes ao fim de um longo e penoso processo por improbidade ou determinados crimes contra a administração pública no Brasil?
Não raro, ressalta Fábio Medina Osório, debita-se ao Judiciário o tema da impunidade. Porém, uma pesquisa qualitativa poderia avaliar as causas reais das absolvições ou da improcedência das acusações ou das nulidades reconhecidas.
Pode haver falhas estruturais importantes, desde a própria etapa investigatória ou na formatação das ações. E, é claro, pode haver lacunas decisórias relevantes.
E esse tipo de levantamento, e discussão crítica, permitiria, diz ele, o aperfeiçoamento das próprias instituições fiscalizadoras, nos seus mecanismos repressores, um dado da maior relevância para qualificar nosso país em vista dos desafios das próximas décadas, que envolvem o combate à má gestão pública.
O que não se pode admitir, evidentemente, é o uso abusivo, e indiscriminado, do processo como antecipação da pena, ou até como penalidade autônoma, turbinado por sua divulgação midiática.
E tampouco se deveria tolerar inversão abusiva ou tumultuária de papéis entre as instituições. De outro lado, falhas estruturais do Estado acusador ou investigador não deveriam persistir se por acaso pudessem ser estancadas.
Um debate mais atualizado, e profundo, sobre o modelo de Estado acusador é necessário, ressalta Medina Osório.
O processo, e mesmo a investigação, acrescenta o professor, não pode ser visto como um conjunto de atos desprovido de consequências na vida das pessoas.
Ao contrário, o processo — e mesmo a investigação — acarreta efeitos nefastos no patrimônio moral e material de pessoas físicas e jurídicas.
Esse tipo de aperfeiçoamento tornaria o Estado brasileiro mais comprometido com a eficiência punitiva, o que revelaria postura republicana sintonizada tanto com os direitos fundamentais das vítimas dos atos de corrupção ou má gestão pública, quanto com os dos acusados em geral.
Uma medição sistemática como a proposta pelo advogado Medina Osório serviria também, acrescento, para que se tivesse uma ideia clara sobre como os acusados de desvios administrativos conseguem superar as denúncias sem às vezes nem mesmo responder a processos.
A desconfiança da maioria é que há nos trâmites legais atalhos e armadilhas que podem facilitar a vida de um acusado com bons advogados ou relacionamentos.
O mais comum é que, depois de um escândalo denunciado pelos órgãos de imprensa, a autoridade acusada deixe o cargo — às vezes até mesmo sob elogios do mandatário da vez — e nunca mais se fale sobre o processo a que deveria responder.
Muitas vezes, como ressalta o advogado Fábio Medina Osório, isso se dá porque as denúncias eram inconsistentes do ponto de vista jurídico, embora robustas politicamente.
Mas, em outros casos, seria possível constatar que o acusado contou com a boa vontade de seus pares para escapar do processo a que deveria ter sido submetido.
Esclarecer esses meandros jurídicos e estabelecer uma sistemática que pudesse abranger todos os casos de denúncias de má gestão pública seria fundamental para que a sensação de impunidade não permaneça como a principal consequência das denúncias.
E também para que as pessoas de bem que ainda se disponham a atuar como servidores públicos tivessem a proteção do sistema contra acusações de má-fé.
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