Há três meses, o humorista Danilo Gentili lançou em seu programa uma pseudocampanha chamada “Brasil Sem Drauzio Varella”. Era uma alusão irônica ao quadro “Brasil Sem Cigarro”, do programa Fantástico, da TV Globo, no qual o médico fazia uma campanha contra o tabagismo. “Essa mania de ficar enchendo o saco dos outros, dizendo o que as pessoas devem ou não fazer. É isso que me deixa doente”, vociferou. A blogosfera, atenta a polêmicas, dividiu-se. Parte saiu em defesa do doutor, como um rapaz que deixara de fumar havia um mês por causa dele ou uma menina que emagrecera, graças a ele. Outros como Gentili, diziam que o doutor passara dos limites ao ditar regras de saúde na tevê. Mas em um ponto o consenso era total: Drauzio assumira o papel de médico geral da nação, à frente de uma quixotesca batalha pela saúde nacional – como se o País fosse um indivíduo doente sem informação. Por que justamente ele personificara esse pai-de-todos, ao colocar sobre as próprias costas questões de saúde que deveriam ser enfrentadas por meio de políticas do poder público?
“O governo se acomoda. E milhares de meninas morrem por ano por não ter informação sobre aborto”, diz o homem de 1,85 metro de altura, 68 anos e 80 quilos que parecem menos na camisa simples como seus gestos, enquanto se ajeita no sofá em busca de uma posição menos incômoda. “Metade da população está acima do peso e não se fala disso. Os negros morrem mais de diabetes e não se alerta para isso.” As mãos discursam no ar, professor que já foi, a explicar o óbvio para uma plateia sedenta. A solução brilha nos olhos. “O Estado precisa esclarecer a população. Hoje falta mais informação que remédio. Honestamente, é como se o Sistema Único de Saúde (SUS) nunca tivesse sido implantado no Brasil.”
Do alto da autoridade de quem cansou de encontrar senhores idosos que nunca viram um especialista na vida, analfabetos quase cegos de catarata sem conhecer nem o nome da doença facilmente curável e mulheres com mais de cinco filhos ignorantes da chance de uma laqueadura gratuita pelo SUS, Drauzio, qual um porta-voz das carências médicas do País, diz que o peso de não aproveitar o acesso aos meios de comunicação conquistado por ele é grande demais. “Televisão é uma armadilha. Você entra, faz a sua parte, e todos acham que é importante demais para parar. Racionalmente, eu devia parar. Mas não posso. Virou um compromisso com a nação.” Um compromisso assumido da forma mais heterodoxa possível.
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Era 1967, quando se formou em medicina, já com a calva anunciando o domínio sobre o futuro personagem. O jovem Drauzio Varella sonhava enveredar pelo caminho da saúde pública. “Mas ser sanitarista àquela época era complicado.” Recém-casado, acabou especializando-se em moléstias infecciosas. Tornou-se oncologista. E, em 1983, quando foi a Nova York fazer um estágio em imunologia, viu-se no epicentro do que era pintado como a epidemia gay. Ao ouvir da boca de amigos homossexuais que nunca pegariam a doença, estacou. “Senti que sabia de uma tragédia e precisava fazer alguma coisa.” No Brasil, o governo de João Figueiredo não se interessou pelo assunto. Mas a Aids o traria de volta ao domínio da saúde pública, mas pelo tortuoso caminho da mídia. “Aqui é o doutor Drauzio Varella.” Assim dizia a voz, naturalmente confiável, que ganhou o rádio e a boca dos brasileiros no começo dos anos 1980. Tudo por obra de um homem que entraria para a história do jornalismo – mas cujo mérito se conta pela metade. Drauzio agora repara a dívida.
De volta ao Brasil, “enlouquecido” com as possibilidades devastadoras daquela doença misteriosa, o jovem doutor escreveu um artigo no jornal O Estado de S. Paulo. O texto abriu espaço para uma entrevista na Rádio Jovem Pan, do então diretor Fernando Vieira de Mello, que o convidou a gravar vinhetas sobre o tema. O doutor relutou o quanto pôde. Temia a repercussão entre os pares. “Naquela época, médico sério não aparecia no rádio ou na tevê.” Vieira foi assertivo. Era importante para a população, não para sua carreira. Assim deu as primeiras lições ao futuro médico mais midiático da história nacional. “Aqui é o doutor Drauzio Varella”, diria então a vinheta criada por ele, seguida do conselho de prevenção, paternal às vezes, agressivo, outras, mas sempre fluido. A simplicidade do vocabulário e o tom pausado do discurso, conquistados em 20 anos como professor do cursinho Objetivo, deram à voz grave uma clareza quase mística, por dez anos a fio. Um dia, vaticinou Vieira de Mello, certo outra vez, num corredor da Jovem Pan: ele “acabaria na tevê”.
Drauzio não queria dar rosto à voz. Desde 1997 como colaborador de CartaCapital, onde discorria sobre temas caros à saúde nacional, o doutor seguiu a atender os detentos do Carandiru, maior e mais polêmica cadeia do Brasil, bem longe das telas. Em 1999, tudo mudou. O relato da experiência rendeu o best seller Estação Carandiru, que vendeu mais de 450 mil cópias, foi transformado em filme e o impulsionou a mais um degrau na fama: o de bom escritor, vencedor, inclusive, do Prêmio Jabuti. Provam-no outros nove livros seus, como Por um Fio, no qual trata de forma delicada sobre o enfrentamento de doenças terminais – e que vendeu outras 200 mil cópias.
Mas foi depois do Carandiru que o rosto magro e calvo acabou por ganhar o Brasil. Ciente da imagem de bom moço advinda da publicidade do livro, a Globo o convidou para apresentar uma série sobre o corpo humano comprada da BBC e o encarregara de apresentá-la. O sucesso foi instantâneo. Drauzio começou a ser parado na rua para consultas relâmpagos por um exército de carentes de informação em saúde. E a Globo quis mais. “Eu não queria perder a privacidade, virar uma figura pública”, lembra. Até que passou a assinar uma coluna na Folha de S.Paulo com dicas sobre higiene e saúde e receber da Globo outra proposta. “É importante para a população”, teriam dito. “Eles ficaram loucos com a audiência”, complementa Drauzio. E lá foi ele fazer uma série sobre primeiros socorros, a primeira de mais de 30. Hoje ele grava até três delas por ano, com a qual tem contrato de exclusividade e onde recebe (“bem”) pelo que faz.
O que explica como uma única pessoa conseguiu, em termos de opinião pública, se transformar na maior autoridade médica do País, à frente de campanhas sobre tabagismo, aborto, higiene. É surgir um tema complexo e urgente ignorado pela inépcia do poder público e lá está Drauzio a dar conselhos e a responder dúvidas. “Existe realmente um vácuo em termos de informação em saúde que ele preenche”, diz Raphael Aguiar, especialista em saúde pública e educação e coordenador técnico da Universidade Aberta do SUS. “Como o Drauzio é uma entidade abstrata e carismática que surge sempre na televisão, com linguagem acessível, a pessoa não se sente pressionada. Ela ouve, presta atenção. É mais motivador do que uma campanha.”
O Ministério da Saúde oferece informações, até nos seus sites. Mas há problemas de linguagem. “Conheço gente que ouve que deve tomar uma colher de chá de remédio após o almoço e não toma por não ter colher de chá ou não ter almoçado.” Um paciente, explica Aguiar, deixa o consultório lembrando, em média, 60% das orientações do médico. Uma semana depois, a taxa cai para 15%. Certa vez, conta, ele viu num ambulatório um cartaz alertando para a doença celíaca, rara no País, e incentivando quem lesse a procurar um médico. Ao questionar o governo sobre a demanda desnecessária que recairia sobre o SUS, ouviu a seguinte resposta: fora pressão do lobby da associação dos celíacos. “Comunicação é um problema do SUS. Ele não é eficiente em informar as pessoas. O que o governo precisa fazer é ouvir a população sobre suas demandas reais e estabelecer uma política que promova essas informações.”
Não há dúvida no governo de que a promoção de saúde via educação popular é fundamental para permitir o melhor uso do SUS. Tanto que o Conselho Nacional de Saúde recriou, em 2005, a Comissão Intersetorial de Comunicação e Informação em Saúde, exatamente para fomentar tais políticas. “A área de saúde deveria ter um espaço maior garantido por lei na tevê aberta. Mas, enquanto isso não acontece, é louvável ter iniciativas que levem informações às pessoas”, diz Maria de Lourdes Rodrigues, coordenadora-adjunta da comissão. “Um exemplo é o programa que o SUS oferece de tratamento para parar de fumar. Nem todo mundo sabe disso. E muitos descobrem nesses programas.”
Com tanta unanimidade nacional, o nome surgiu como natural candidato a um cargo público. Em 2005, o então ministro das Relações Institucionais Jaques Wagner procurou-o para um convite. Lula o queria como ministro da Saúde. Mas ele disse não. Não seria a chance perfeita de trazer para a discussão pública as chagas que conhecia de cor, colhidas nos rincões mais carentes do País que visitara na esteira da mídia? “Num cargo como esse há pressões políticas e concessões. E eu não sei fazer esse jogo”, defende-se, citando o exemplo de Adib Jatene, médico de carreira exemplar que foi ministro duas vezes e acabou deixando o de Fernando Henrique Cardoso após perder a ilusão a respeito das possibilidades concretas da cobiçada pasta de orçamento bilionário. “Eu teria de fechar meu consultório, meu site, parar minhas colunas, meus programas de tevê. E tudo para fazer algo que não sei? Jamais.” Drauzio diz ser raramente procurado pelo governo. “Mas tento fazer o meu trabalho em consonância com as possibilidades deles.” Não há mais informação disponível, argumenta, porque o Estado não tem estrutura para atender tanta gente. “As mulheres com mais de 40 anos devem fazer mamografia. Mas o Ministério da Saúde vai mandar todas fazerem o exame amanhã no SUS? Não tem como.” Falta de investimento em saúde não é tudo. Ao elencar os maiores problemas em termos de políticas públicas de saúde, Drauzio não hesita: planejamento familiar está no topo. Numa de suas séries televisivas, ele entrou na sala de milhões de brasileiras para ensinar quais são os métodos anticoncepcionais. “Só nasce criança pobre neste País. Se você encontrar uma mulher presa, de 25 anos, sem filhos, ou ela é gay ou infértil. Mais filhos arruínam a vida dessas pessoas.” Drauzio suspira. Meses depois, quando a van da Globo parava em um posto de saúde da periferia para produzir mais um programa, um enxame de mulheres rodeou o doutor. Uma delas implorou por uma laqueadura. “Por que não se faz uma campanha explicando que a laqueadura é um direito a todas as mulheres com mais de 25 anos e dois filhos? Por medo de ser eugenista, claro. E por medo dos religiosos.” Ateu convicto, ele aponta a Igreja como dona do monopólio da informação, algoz de uma “ditadura moral que faz o governo calar”. Drauzio não se calou. O programa foi um sucesso. “Mas que eu tomei pancada desses demógrafos e padres, tomei.”
Filho de uma família humilde do Brás, bairro operário de São Paulo, Drauzio soube que queria ser médico desde pequeno, ao ver o padecimento da mãe por uma doença degenerativa que povoou sua memória infantil. Ficou órfão aos 4 anos. Aos 22, dava aulas em um cursinho com outros colegas, no que viria a ser o Objetivo, império da educação privada que hoje pertence ao ex-sócio João Carlos Di Genio. É ele quem patrocina, indiretamente, o projeto de pesquisa de antibióticos que leva Drauzio à Amazônia todo mês. Pai de duas filhas do primeiro casamento, e hoje marido da atriz Regina Braga sua rotina nunca foi pacata. Acorda por volta das 5 horas da manhã para correr (participou de várias maratonas). Às segundas, pela manhã, atende as detentas da Penitenciária Feminina. À tarde, grava para a tevê. Terças, quartas e quintas dedica-as aos pacientes de câncer em seu consultório, no terceiro andar de um prédio em frente ao Hospital Sírio-Libanês, do qual faz parte do staff. Às sextas, volta aos estúdios.
Sobra ainda, nas 24 horas diárias, espaço para uma faceta que completa a esfera de influência ímpar. Sempre que pode, Drauzio sobe do terceiro ao 15º andar para falar a 40 mil pessoas por dia, da sala com estúdio e laptops onde mais de cinco pessoas alimentam seu site. Assim ele ergueu silenciosamente, com dinheiro do próprio bolso, um pequeno monumento à promoção gratuita de informações sobre saúde. O www.drauziovarella.com.br começou tímido, com entrevistas com especialistas e dicas de prevenção. E acabou se transformando numa fonte de consulta para 1 milhão de pessoas por mês. Há artigos, entrevistas, vídeos, notícias e, mais acessada que tudo, uma “enciclopédia de saúde”, repleta de verbetes explicativos com informações sobre sintomas, diagnóstico, tratamento e prevenção, que cobre de doenças sexualmente transmissíveis a arroto, de botulismo a erisipela, secundados pelo lembrete: “Procure um médico”.
Sobre os limites de sua atuação quase oracular, de sua assertividade clínica que beira, para alguns, a intromissão nas liberdades individuais, Drauzio não titubeia. “O Estado precisa fazer muito mais para proteger o cidadão do mal de terceiros.” Defrontado com a opinião de filósofos de direita como Denis Rosenfield, para quem o Estado, “ao tentar disciplinar a vida dos cidadãos”, acaba por “impor a sua noção de bem”, ele leva a mão à cabeça. Prepara-se para responder. O telefone toca. Ele atende, muda o horário de um compromisso, dá instruções sobre outro. E retorna exatamente ao ponto do raciocínio que parou. “É burrice dizer que o Estado vai interferir na liberdade individual ao fornecer informações sobre saúde. O livre-arbítrio é um direito, assim como é um direito saber os males que o cigarro ou a obesidade fazem.”
Para quem fumou por 19 anos e perdeu primos e um irmão de câncer e doenças cardiovasculares, a frase choca mais. “Eu não tenho ilusão de que consiga mudar comportamentos. Mas quem fala uma bobagem dessas não percebe que milhões de pessoas que não têm informação alguma podem precisar daquele conselho para viver.” Com o dedo em riste, o médico extraoficial da nação desempenha impecavelmente o papel a ele atribuído pelas pessoas nas ruas das periferias, nas redes sociais e nos barcos da Amazônia. “Se o Estado não dá conta, qualquer ajuda é bem-vinda. Ter 50 milhões de pessoas, a maioria sem acesso a nada, prestando atenção na tevê, ali, em você, é um privilégio.” Ninguém pode acusar Drauzio Varella de não aproveitá-lo
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