Homenagem ao Tédio
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– 02/06/2012Deixar-se falar. Talvez tenhamos mais a dizer a nós mesmos que todos esses discursos de sucesso ou de salvação. Entediar-se
Por Maristela Bleggi Tomasini
Gosto de dispor de tempo para entediar-me à vontade. Entediar-se é fazer contato com a própria interioridade e abrir-se às nossas cismas. É romper relações com a mesmice do ambiente e entregar-se a um diálogo imaginário. É dar-se conta daquela multiplicidade de facetas tão nossas, que colocamos de lado, que não deixamos que venham à tona em um mundo que só tem tempo para desperdiçar. Entediar-se é não fugir à tristeza, é aceitar que existem, em nosso interior, dimensões escuras, estranhas aos outros e nós, mas nem por isso menos a gente mesmo. É olhar-se de frente no espelho mágico que não sabe mentir. Tédio é tempo de colar o que foi fragmentado, é tempo de arredondar os cantos lascados pela vida. Sem disfarces.
Entediar-se é ausentar-se dos outros. É tempo para ser vivido, e não para ser desperdiçado com gente que se esvazia de si, que vive de presentes. Sem passado que nos dê sentido, perde-se significado. Desaparecemos, assimilados pela opinião, compartilhando apenas o que é comunitário. A solidão aterroriza, mas não devia. Há tantas vozes disputando nossos ouvidos que não é difícil nos flagrarmos, em dado momento, a repetir alguma coisa simplesmente por repetir. Como se fôssemos obrigados a falar, mesmo sem ter nada a dizer. De algum modo, pressinto discursos que se constroem a partir do eco. Sua fonte se perdeu. Como se reflexos se tornassem autônomos. Dou com algumas imagens de mim por aí às vezes, mas nem por isso sou eu. Então percebo que é hora do culto. Que é hora de buscar conforto no tédio, na deriva de alma. Hora de imitar o flâneur, só que percorrendo minha própria interioridade.
Percebo como é difícil pensar a vida sem unidades de medida. É que antigos valores não há mais. Tudo tem preço. Instituíram-se moedas de troca que capitalizam relações entre diferentes tribos, estas que hoje se substituem às extintas classes sociais. Temos apenas faixas de consumo, cuja medida de escala é a quantidade de eletrodomésticos, de banheiros, de suítes, de metros quadrados disputados centímetro a centímetro. Também vale contabilizar maridos e mulheres que se substituem por modelos mais novos, mais adequados a um vir a ser midiático de efeito hipnótico, multiplicado pelos espelhos das vitrines, esses altares, onde os produtos, como os santos, são objeto de adoração. Cobiça e desejos nos guiam e amesquinham nossas ambições recheadas de sabores que ainda não provamos, de substâncias que ainda não tocamos, de brinquedos com que ainda não brincamos. Tudo isso nos afasta de nós, e nos aproxima de miragens que desaparecem, mal a gente consegue tocá-las. A saída é o tédio, a alternativa possível diante dessa fatalidade que se autorregula automaticamente.
Prescinde-se de valores que não sejam aqueles expressamente monetários. A atualidade nos põe preço, e isso sequer nos escandaliza, porque nosso tempo é tão-somente o tempo da emergência do sensacional, da manchete hiperbólica, da banalização de tudo. A fama e o prestígio legitimam qualquer conteúdo. Elas são a alquimia do sucesso. A ingenuidade torna-se cretina. Importa apenas o sensacional, o que pode ser taxado, comprado e vendido. Persegue-se a reparação indenizatória como forma de ajuste, numa atualidade que é sem ligação com o passado e que se vê apenas repetida no futuro, mecanicamente, produtivamente.
O presente é repetir-se, é copiar-se, é apropriar-se de experiências pré-formatadas. A atualidade traz o prêt-à-porter como traz o prêt-à-penser. Monetarizamos o valor da dor. Alguém deve pagar por nossos sofrimentos, por nossas angústias, por nossas frustrações. A Declaração Americana, desde 1948, quer que o homem alcance a felicidade. Como se ela fosse um objetivo a ser atingido. Recusar-se a tanto significa fracasso. O tédio é o refúgio dos fracassados, o exílio dos recalcitrantes, dos que desconfiam das pílulas que prometem a felicidade, o ego químico, o tesão eterno, a carne siliconada. Desconfio muito desse ambiente. Envelheço. Estranho este mundo que avança sobre a minha vida e que me convida a mudar de mim, a desviar-me de meu velho e conhecido eu, tão inadequado. Sou obsoleta. Escrevo este palavrão agora e não gosto. Mas o espelho mágico do tédio me reflete bem assim. Não consigo gostar muito dessas maravilhas todas que a gente só pode ter se comprar. Desconfio dessas coisas que nos tornam felizes, atraentes, inteligentes e que garantem nosso sucesso. Isso não me soa bem. É como perfume usado em demasia. Esses excessos são, definitivamente, faltos de elegância. O requinte costuma mostrar uma face aristocrática que é, sempre, um pouco decadente e blasé. Nada a ver com esses espetáculos pleonásticos que nos invadem a cada instante. Sem falar numa gente muito estranha que por aí.
Um garoto chinês vendeu um rim para poder comprar um iPad. Há uma jovem que investe seus melhores anos em sucessivas operações para substituir próteses mamárias por outras cada vez mais volumosas. Ela deseja ter os maiores seios do mundo. Não sei se conseguiu. Implanta-se tanta coisa no corpo! Ele está cada vez mais tatuado, colorido, transformado. Um rapaz cortou a língua, para que ela ficasse bifurcada como a de um lagarto. Descubro algo novo nisso. O tédio me faz pensar.
Ora, os artistas sempre representaram a figura humana conformada a valores de época. A rigidez das madonas medievais deu lugar às carnes rosadas da Renascença. A isso sobrevieram as sombras e os contrastes do Barroco. El Greco redimensionou as imagens, esticou as figuras para ao alto. A Arte nos conta a história dos homens, economizando palavras. Ah! Os impressionistas coloriram nossas sombras. O ser humano já perdia forma e diluía-se no fundo das telas. Aliás, desde então, fundo e forma se confundem, porque não mais se vai desvincular um do outro. Depois mudamos ainda mais. Desesperamos. Van Gogh resgata o louco. Os corpos começam a ser retorcidos. Basta folhear um livro de arte qualquer para dar-se conta disso. Na modernidade, Portinari conferiu a pés e mãos um peso excepcional, ao retratar um homem que era só força física empregada no trabalho braçal. Anita quase suprimiu a cabeça em Abaporu, um anencéfalo que sobreviveu perfeitamente bem; aliás, como muitos, até hoje.
Por que digo isso? Porque era só arte. Era uma figura humana limitada ao espaço plástico da tela ou do material tornado escultura. Era apenas faz de conta. Não passava de metáfora, de uma interpretação. A pós-modernidade inovou. Hoje é o corpo que recebe esses impactos. Não se trabalha mais a imagem em abstrato. Fazemos isso concretamente no próprio corpo-objeto. Confesso meu susto. Eu me refugio no tédio, bem aqui, entrincheirada por entre livros e velharias. De fato, olhando assim, parece que o corpo se transforma em suporte físico de manifestações só fazem sentido por muito pouco tempo. Percebo algo de assustador em tudo isso.
Por mais que essas intervenções corporais aconteçam como manifestações de ordem cultural na humanidade, historicamente, tratou-se de costumes e tradições inerentes a certos grupos humanos. Tudo tinha uma razão de ser, correspondendo a ritos de passagem. Eram formas de agir, pensar e fazer que se impunham como obrigatórias com vistas à manutenção de uma ordem social, conferindo estabilidade a um grupo. Sabemos de tatuagens tribais, pescoços alongados, lábios e orelhas alargados, mas em contexto que me parece muito diferente deste que estamos vivendo. Não se tratava do corpo pelo corpo, do corpo objeto de si, mas do corpo como identidade social. Esse viés, no entanto, se adensa na pós-modernidade, e não encontro paradigma que não seja ver aí o consumismo puro e simples. Nosso corpo se assimila a um objeto de consumo que precisa se transformar com a mesma rapidez com que sobrevém a novidade vanguardista que já nos chega como passado. As próprias tribos têm muita mobilidade. São instáveis. As modificações que se imprimem aos corpos, nem tanto. Isso indica que nosso agora é para sempre, um fim em si, como se não houvesse gerúndios, apenas particípios que se seguem uns aos outros, repetidos, reiterados, desconexos, desvinculados, que emergem como eventos.
Produzir, consumir, deixar-se assimilar corporalmente como fetiche. Percorrer o tempo esvaziando-o de significação. Ser o melhor, o maior, o mais ágil, o mais rápido, o recordista. Ser por ser. Bater um recorde qualquer. Cultura resumida a eventos descontínuos que exibem uma logomarca que vale mais que a assinatura do artista. Até livros se escrevem sozinhos na cultura do copy & past. A produção da palavra limita-se a discorrer apenas, e a criar vazios repletos de hermetismo, de pirotecnia literária, onde o efeito importa mais que o significado. Escreve-se com vistas ao utilitário. A moda se impõe também nas palavras, e elas se substituem umas pelas outras, depostas e exiladas, pela inquisição que se impõe ao nosso léxico, exigindo dele que se limite a discursos publicitários, que exercitam meramente a persuasão. O banal torna-se profundo. É preciso aplaudir e delirar, sob pena de ser decretada nossa insensibilidade. É preciso ser estúpido, para alcançar a profundidade inaudita do que é óbvio. Por isso talvez eu insista em permanecer tão superficial.
Confesso que fujo. Eu me entrego ao tédio, busco a solidão que me ensina a lidar com o tempo. Preciso fazer valer meu próprio ritmo e preservá-lo como algo profundamente individual. O meu tempo é o meu tempo, e eu gosto de conferir-me a prerrogativa de escolher como usá-lo. É um grande luxo gastar meu tempo com tédio. Saborear o meu café, sentir o cheiro de mofo de cada um dos meus livros, não fazer nada a não ser ouvir o que tenho a dizer a mim mesma.
Deixar-se falar. Talvez tenhamos mais a dizer a nós mesmos do que todos esses discursos de sucesso ou de salvação. Entediar-se. Permitir-se entristecer. Tédio é solitário, é lacônico, é modulado pelo silêncio. Nem alegre nem triste, mas existencial. Tédio é sem consolo, sem compreensão, porque nele não penetra a palavra divina que salva, nem a tentação do demônio que condena, nem a pregação do marqueteiro que quer vender aquilo que todo mundo já tem, menos a gente. Solidão é grátis. É despedida sem adeus. Sem nada. É apenas nossa presença, permanecendo ainda, não obstante todas as coisas que nunca foram aquilo que queríamos ou que pensávamos que elas fossem.
É bem quando descubro que, apesar de tudo, eu ainda sou eu.
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