segunda-feira, 4 de junho de 2012

Jornalismo desencapado - | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito

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Jornalismo desencapado

Por Washington Araújo em 29/05/2012 na edição 696
A reportagem de Veja desta semana é um primor de fios desencapados, mas inofensivos, uma vez que nestes não transita eletricidade real, capaz de impactar ou dar um choque. Informa que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, teria recebido pressão do ex-presidente Lula, em reunião realizada no dia 26 de abril de 2012, no escritório do ex-ministro Nelson Jobim, também ex-presidente do STF, para adiar o julgamento do processo do chamado mensalão. Mas deixa de informar que o anfitrião do encontro, Nelson Jobim, nega o conteúdo da conversa. Em frases curtas, em bom português, sem uso de metáforas, condicionais ou figuras de linguagem, Jobim colocou uma pá de cal no mais novo escândalo levado às bancas pela revista carro-chefe da Editora Abril, a mesma que, pelo andar da carruagem, deverá ter seu proprietário, Roberto Civita, e seu preposto na sucursal de Brasília, Policarpo Junior, como depoentes na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga o submundo do crime comandado pelo bicheiro Carlinhos Cachoeira.
O que diz Jobim, em notícia publicada no insuspeito O Estado de S.Paulo?
1. “O quê? De forma nenhuma, não se falou nada disso.”
2. “O Lula fez uma visita para mim, o Gilmar estava lá. Não houve conversa sobre o mensalão.”
3. “Tomamos um café na minha sala. O tempo todo foi dentro da minha sala, o Lula saiu antes, durante todo o tempo nós ficamos juntos.”
4. “Na conversa foram tratadas apenas questões genéricas, institucionais. Em nenhum momento Gilmar e o ex-presidente estiveram sozinhos ou falaram na cozinha do escritório.”
Qual foi a parte desses quatro tópicos que o leitor medianamente informado não conseguiria entender? Nenhuma. Todas são claras, assertivas, afirmativas, peremptórias.
Condições normais
A revista faz uso das habituais tintas do escândalo para alcançar seu maior intento: desqualificar a CPMI do Cachoeira, retirando sua legitimidade para investigar a fundo o teor de mais de 200 grampos conseguidos de forma legal e que têm como interlocutores próceres do esquema Cachoeira (bicheiro, arapongas, chantagistas, delinquentes) e o principal executivo de sua sucursal em Brasília, o jornalista Policarpo Junior. E, em assim procedendo, requentar a curiosa tese esposada na capa de sua edição nº 2271, de 18/4/2012, com o seguinte texto: “Mensalão – A cortina de fumaça do PT para encobrir o maior escândalo de corrupção da história do país”.
A revista informa o que seria um encontro de três pessoas, três personalidades com currículos vistosos: Nelson Jobim, o anfitrião do encontro, ex-deputado federal, ex-ministro do STF, ex-ministro da Defesa; Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder sindical, ex-deputado federal e ex-presidente da República; Gilmar Mendes, ministro e ex-presidente do STF. Não soa no mínimo estranho que dos três presentes ao encontro, a revista haja encampado como verdade única e inatacável, beirando a infalibilidade, o relato do ministro Gilmar Mendes? Por que optou por omitir a seus leitores o relato da mesma reunião feito pelos dois outros personagens? E o que ganha Gilmar Mendes, salvo se “vacinar” contra possíveis descobertas de grampos comprometedores envolvendo sua pessoa, o senador Demóstenes Torres e os personagens que vicejam no lodaçal criado por Cachoeira?
A resposta é simples: os relatos de Jobim e de Lula contradizem frontalmente a versão de Mendes. Não seria sensato esperar que uma publicação semanal, tradicional e com a tiragem de Veja, antes de alçar o assunto à sua editoria de escândalos tivesse o cuidado de ouvir os outros dois personagens? Falta de tempo não foi: a reunião ocorreu em 26 de abril e a revista passou a circular exatamente um mês depois, em 26 de maio. O que a revista da Abril não conseguiu apurar em 30 dias, O Estado de S.Paulo conseguiu em menos de 48 horas. O que nos leva a concluir que existe aqui um descompasso muito gritante para ser descartado sumariamente se nos propomos a produzir crítica da mídia. É o que chamo de jornalismo fundado em “informação desinformada”, aquele tipo de jornalismo que privilegia apenas a tese que deseja defender, independente se esta é fundada na verdade ou não passa de manobra diversionista, dessas que se impõem como contraponto a assunto incômodo.
E o assunto incômodo não é outro: a CPMI do Cachoeira não pode ofuscar o chamado escândalo do mensalão. Chega a ser patético imaginar que os assuntos possam interagir em condições normais de temperatura e pressão.
Debate milenar
A temperatura do mensalão se encaminha para seu ato final, dentro dos próximos meses – no mais tardar, no primeiro semestre de 2013. A temperatura da CPMI ainda tem muito espaço para entrar em ebulição: faltam os depoimentos dos governadores Marconi Perillo, Agnelo Queiroz e Sérgio Cabral, dos empresários Fernando Cavendish e Roberto Civita, do jornalista Policarpo Junior, do senador Demóstenes Torres e dos procuradores da República Roberto Gurgel e Claudia Sampaio Isto apenas para começar, porque até o momento a CPMI não conseguiu agregar nada de valor investigativo ao que já foi produzido pela Polícia Federal antes da instalação da Comissão.
A pressão sobre o mensalão, segundo a visão do ministro Gilmar Mendes potencializada por Veja, provém do ex-presidente Lula em favor dos 38 personagens a serem julgados pela Corte Suprema. A pressão sobre a CPMI provém da revista Veja, mas não é bem sobre a CPMI – antes, é sobre alguns dos ministros do Supremo Tribunal Federal em sua tarefa de julgar o mensalão. A reportagem da revista apresenta de forma inusitada suspeitas quanto à isenção dos seguintes ministros:
1. José Antonio Dias Toffoli, quando afirma que o ex-presidente Lula está convencido de que Toffoli “tem de participar do julgamento”. Para a revista, Toffoli deveria se declarar impedido por já ter advogado para o Partido dos Trabalhadores no passado;
2. Carmem Lúcia, quando afirma que o ex-presidente Lula falaria para o ex-ministro Sepúlveda Pertence “cuidar dela”, pois segundo Veja Pertence teria sido o responsável por sua indicação para o STF;
3. Ricardo Lewandowski, quando a revista atribuiu a seguinte frase ao ex-presidente Lula: “Ele só iria apresentar o relatório no semestre que vem, mas está sofrendo muita pressão”. Fica claro, óbvio, que ao atribuir tal frase ao ex-presidente da República, Veja assume seu papel de contrapressão, bem ao estilo: se Lula pressiona Lewandowski a não entregar seu relatório este ano, Veja o pressiona a fazê-lo já.
Aguardemos, nas edições subsequentes, quais os próximos ministros do STF a serem pressionados por Veja. Enquanto isso, nossa grande imprensa sempre tão pródiga em elogiar ritos e costumes europeus, seja em questões de política, comportamento, cultura ou de jornalismo, parece esquecer que o jornal inglês News of The World foi obrigado a encerrar suas atividades empresariais e jornalísticas por denúncias bem menos graves do que as que envolvem Carlinhos Cachoeira e o chefe da sucursal de Veja em Brasília. E que seu chefe, o capo midiático Rupert Murdoch, mesmo contando mais de 80 anos de idade, tem sido chamado a depor em várias instâncias investigativas. E por assim proceder não se ouviu uma única frase condenando a convocação de Murdoch ou invocando qualquer arranhão à liberdade de imprensa na velha Albion.
A diferença entre os casos é que, aqui, embora exista profusão de grampos conectando o esquema de Carlinhos Cachoeira com o jornalista de Veja Policarpo Junior, não existe, ao menos até o momento, qualquer jornalista da Abril indiciado em crimes. A revista alega em sua defesa que “até o delegado da Polícia Federal viu nos grampos não mais que relações entre jornalista e sua fonte”. Pois bem, a pergunta inescapável é: “Será o policial a pessoa mais qualificada para discernir entre o que seria uma ‘relação criminosa’ e uma ‘relação entre jornalista e sua fonte’?”
O debate milenar sobre a validade da máxima “os fins não justificam os meios” não pode ser interditado. É que, não importa a atividade humana, continua vedado o uso de meios espúrios para se atingir objetivos, sejam estes de natureza empresarial, política ou... jornalística.
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[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]

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