Janio de Freitas: Afastamento de Dilma é hipocrisia como jamais
houve no Brasil; do primeiro ato à conclusão de Anastasia, encenação
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04 de agosto de 2016 às 11h14Afastamento de Dilma é hipocrisia como jamais houve no Brasil
por Janio de Freitas,na Folha de S. Paulo, em 04/08/2016
Quem não aceita ver golpe partidário na construção do impeachment de
Dilma Rousseff pode ainda admitir, para não se oferecer a qualificações
intelectual ou politicamente pejorativas, que o afastamento da
presidente se faz em um estado de hipocrisia como jamais houve por aqui.
O golpe de 64 dizia-se “em defesa da democracia”, é verdade. Mas o
cinismo da alegação não resistia à evidência dos tanques na rua, às
perseguições e prisões nem aos crimes constitucionais (todos os
militares do golpe haviam jurado fidelidade à Constituição que acabavam
de trair: sem exceção, perjuros impunes).
Todos os golpes tentados ou consumados antes, incluída a Proclamação
da República, tiveram na formação aquele mesmo roteiro, com diferença de
graus. A força das armas desmoralizava a hipocrisia das palavras.
Os militares, hoje, não são mais que uma lembrança do que foi a maior força política do país ao longo de todo o século 20.
Ao passo em que a política afunda na degeneração progressiva, nos
últimos 20 anos os militares evoluíram para a funcionalidade o mais
civilizada possível no militarismo ocidental. A aliança de civis e
militares no golpismo foi desfeita. A hipocrisia do lado civil não tem
mais quem a encubra, ficou visível e indisfarçável.
Há apenas cinco dias, Michel Temer fez uma conceituação do impeachment de Dilma Rousseff.
A iludida elegância das suas mesóclises e outras rosquinhas faltou
desta vez (ah, que delícia seria ouvir Temer e Gilmar Mendes no
mesoclítico jantar que tiveram), mas valeu a espontaneidade traidora.
Disse ele que o impeachment de Dilma Rousseff é uma questão “política,
não de avaliação jurídica deles”, senadores.
Assim tem sido, de fato. Desde antes de instaurados na Câmara os
procedimentos a respeito: a própria decisão de iniciá-los, devida à
figura única de Eduardo Cunha, foi política, ainda que por impulso
pessoal.
Todo o processo do impeachment é, portanto, farsante. Como está
subentendido no que diz o principal conspirador e maior beneficiado com o
afastamento de Dilma.
Porque só seria processo autêntico e legítimo o que se ocupasse de
avaliação jurídica, a partir da Constituição, de fatos comprovados. Por
isso mesmo refere-se a irregularidades, crimes, responsabilidade. E é
conduzido pelo presidente, não de um partido ou de uma Casa do
Congresso, mas do Supremo Tribunal Federal.
As 441 folhas do relatório do senador Antonio Anastasia não
precisariam de mais de uma, com uma só palavra, para expor a sua
conclusão política: culpada. O caráter político é que explica a
inutilidade, para o senador aecista e seu calhamaço, das perícias
técnicas e pareceres jurídicos (inclusive do Ministério Público) que
desmentem as acusações usadas para o impeachment.
Do primeiro ato à conclusão de Anastasia, e até o final, o processo
político de impeachment é uma grande encenação. Uma hipocrisia política
de dimensões gigantescas, que mantém o Brasil em regressão descomunal,
com perdas só recompostas, se o forem, em muito tempo –as econômicas,
porque as humanas, jamais.
E ninguém pagará por isso. Muito ao contrário.
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