O primeiro escândalo
EXAME publica um trecho inédito do livro
Petrobras - Uma História de Orgulho e Vergonha, da jornalista Roberta
Paduan, que será lançado no fim de agosto. Leia como a interferência
política deu origem à corrupção que vergou a maior empresa brasileira
Petrobras - Uma História de Orgulho e Vergonha, da jornalista Roberta
Paduan, que será lançado no fim de agosto. Leia como a interferência
política deu origem à corrupção que vergou a maior empresa brasileira
Petrobras, Carlos Sant"Anna, chamou um grupo de funcionários para uma
reunião que começou com o seguinte discurso: "Precisamos de uma
estratégia para proteger a Petrobras". E continuou: "Não temos mais o
general daqui para resolver os problemas com o general de lá". Sant"Anna
referia-se à relação direta entre os militares que comandaram o país
após o golpe de 1964 e os presidentes da estatal, muitos dos quais
também foram militares. Até aquele momento, a Petrobras tinha sido
presidida por militares em 25 dos 35 anos de sua existência. E a maioria
dos presidentes civis que comandaram a petroleira até ali era altamente
identificada com a cultura militar. Sant" Anna era exceção. Formado em
geografia e história, começou a trabalhar na Petrobras como temporário
e, em 1958, foi efetivado ao passar num concurso público. Galgou cargos
até chegar à presidência em abril de 1989. Naquele ano, a
situação do país não era de ruptura, como em 1964, mas o cenário
mostrava-se altamente desafiador. O Brasil vivia um período de
efervescência política e de grave crise econômica. O presidente José
Sarney finalizava seu mandato e, depois de 25 anos, os brasileiros se
preparavam para votar novamente para presidente da República. Na
economia, o país beirava o caos. A inflação
fechou 1989 em inacreditáveis 1972%. Para a Petrobras, a explosão dos
preços e a desvalorização cambial eram ainda mais nocivas. O governo
impedia a estatal de reajustar o preço dos combustíveis, numa tentativa
inútil de segurar a inflação. A empresa perdia
100 milhões de dólares por mês devido à defasagem no preço de seus
produtos. Depois de ter registrado em balanço lucros acima do bilhão de
dólares (em 1986 e 1988), a Petrobras apresentou em 1989 um resultado
que se limitava a 160 milhões, muito pouco para uma gigante com mais de
80 000 funcionários na folha de pagamentos.
Nesse
ambiente, o que era um dos cargos mais cobiçados do Brasil, a
presidência da Petrobras, transformou-se num desafio não tão atraente.
Nos cinco anos de governo Sarney, a empresa teve cinco presidentes, uma
rotatividade inédita. Sant"Anna temia um futuro pouco venturoso para a
estatal, e ele não estava sozinho. Os funcionários com mais tempo de
empresa, principalmente os que ocupavam cargo de gestão, já tinham
percebido que a democratização aumentaria a exposição da empresa ao uso
político. "Os políticos civis vieram com um apetite danado para cima da
Petrobras", disse Roberto Villa, diretor industrial da Petrobras na
época.
O primeiro grande escândalo de corrupção envolvendo
a Petrobras veio a público no final de 1988 por meio de uma reportagem
da jornalista Suely Caldas, do jornal O Estado de S. Paulo. A reportagem
revelou que dirigentes de três bancos privados - Bradesco, BCN e Banco
Geral do Comércio - haviam procurado Armando Guedes Coelho, então
presidente da empresa, para fazer uma denúncia. Eles diziam que um
funcionário da BR Distribuidora estava por trás de um esquema montado
para saquear a estatal em conluio com instituições financeiras que
aceitassem operar a fraude.
O golpe se daria no serviço de
cobrança realizado por diversos bancos contratados pela BR e consistia
em receber o pagamento das duplicatas de inúmeros postos de combustíveis
que compravam produtos da BR. No trâmite normal, os bancos eram
remunerados com um percentual de cada cobrança realizada em nome da BR. O
banco que "colaborasse" no esquema seria privilegiado com uma fatia
maior das cobranças da companhia. Para isso, a instituição financeira
teria de fraudar a data de recebimento dos pagamentos, aplicar o
dinheiro - sem que a BR soubesse - e dividir os ganhos da aplicação com o
proponente do negócio ilícito. Num período de inflação
alta, os ganhos seriam altos. A pessoa que visitara os bancos propondo o
esquema garantia ter o aval de executivos do alto escalão da
subsidiária. A instituição financeira que não "colaborasse" trabalharia
menos ou não trabalharia para a empresa.
Ao receber a
denúncia, o presidente da Petrobras, Armando Coelho, afastou toda a
direção da BR e abriu uma investigação interna. A apuração, realizada em
dez dias, confirmou que bancos pouco expressivos, escolhidos sem
obedecer aos critérios normalmente utilizados pela estatal, vinham
recebendo depósitos milionários em razão das cobranças feitas para a BR.
A pessoa que visitava os bancos era Eid Mansur, que não trabalhava nem
lá nem na Petrobras. Entretanto, Mansur dizia ser diretamente ligado a
Geraldo Magela de Oliveira e Geraldo Nóbrega, dois assistentes do
presidente da BR, o general Albérico Barroso Alves, o Barrosinho, como
era conhecido nas Forças Armadas. O problema é que o general Barroso era
amigo e compadre do presidente José Sarney. Foi ele que o nomeou como
diretor industrial da Petrobras e presidente da subsidiária BR (os
diretores da petroleira costumavam acumular a presidência de uma das
subsidiárias do grupo).
Ao final, a comissão interna que
investigou o caso concluiu que Eid Mansur fazia parte de uma quadrilha
formada por Magela e Nóbrega, ambos levados para a BR Distribuidora
havia poucos meses por Barroso. Depois que a história foi parar no
jornal, o Legislativo criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Em
depoimento à CPI, Magela, Nóbrega e o general Barroso negaram conhecer
Mansur.
No dia seguinte aos depoimentos na CPI, porém, a
jornalista Suely Caldas recebeu um telefonema de um funcionário da
estatal que tinha um video que desmentia a versão dos três envolvidos.
Nas imagens captadas numa festa da BR, o general Barroso e seus
subordinados Magela e Nóbrega brindavam alegremente com taças de
champanhe com Mansur. Uma nova reportagem estampou uma sequência de
fotos que mostravam Mansur se dirigindo a Barroso, enquanto apoiava a
mão esquerda nas costas do general e apontava para Magela com a mão
direita. Nóbrega, o quarto elemento da foto, observava ao fundo. A
reportagem demoliu o falso testemunho dos três.
Os dois
assessores de Barroso foram demitidos, mas Armando Coelho não conseguiu
afastar o general presidente da BR. Ao telefonar para Sarney e pedir a
ele que demitisse Barroso, Coelho ouviu uma resposta desconcertante do
presidente. "Eu não demito amigos", teria dito Sarney ao então
presidente da Petrobras. Diante do argumento, Coelho entregou o cargo.
Alegou que não podia trabalhar com um diretor em quem não confiava, e
foi contratado por uma fábrica de catalisadores que pertencia à
Petrobras. Depois, aceitou o convite para dirigir a Suzano Petroquímica.
Barroso permaneceu ainda algum tempo na diretoria da Petrobras e na
presidência da BR, mas foi remanejado para a presidência da
Petrofér-til, subsidiária de fertilizantes do grupo, onde ficou por
poucos meses, logo deixando a empresa de vez. Mais tarde, descobriu-se
que Coelho teve total apoio de Ernesto Geisel, ex-presidente da
República e ex-presidente da Petrobras, para realizar a investigação.
Geisel, que ainda contava com alto prestígio político, convenceu os
militares a não proteger o general Barroso.
Atualmente,
Coelho não aceita falar sobre o diálogo que teve com Sarney. Mas também
não desmente a história contada por dois auxiliares que eram muito
próximos a ele na época. Ambos confirmam que ficaram estupefatos com a
justificativa do presidente da República, confidenciada pelo chefe no
calor dos acontecimentos. Ao comunicar sua saída da empresa aos
diretores e gerentes no auditório da Petrobras, Coelho foi aplaudido de
pé por quase 5 minutos. Mais do que uma homenagem ao presidente que
deixava o cargo, as palmas dos funcionários eram um protesto contra o
ataque à empresa e a saída de um presidente que não aceitou acobertar a
corrupção.
MAIS INTERFERÊNCIAS
Depois do
escândalo, o fato é que em 1989 a Petrobras não tinha um plano
estratégico. E era o que Carlos Sant"Anna pretendia mudar. Por quatro
meses, a equipe incumbida de elaborar o plano discutiu cenários
econômicos e políticos, nacionais e internacionais, com 40 executivos da
companhia. Ao final, chegaram à conclusão de que, nos novos tempos de
competição global que se anunciavam, a raiz nacionalista da empresa
deveria ser substituída por eficiência e competitividade perante as
maiores e melhores petroleiras do mundo. Só assim as empresas e os
países prosperariam. Essa foi uma das principais mensagens do plano.
Coordenado
pelo engenheiro José Paulo Silveira, superintendente da área de
planejamento da estatal, o trabalho foi finalizado em 15 de dezembro de
1989.0 plano foi aprovado pelo conselho da Petrobras em janeiro do ano
seguinte e divulgado por Sant"Anna aos gerentes num auditório lotado.
Quase dois meses depois, no domingo de 4 de fevereiro de 1990, o plano
foi parar no jornal O Estado de S. Paulo. O título era "Petrobras muda
para os anos 1990". A reportagem deixou o presidente eleito, Fernando
Collor, furioso. Ele ainda não havia tomado posse, o que aconteceria em
15 de março. Em sua interpretação, o tal plano estratégico era uma forma
de resistência ao seu governo. Assim que assumiu, destituiu não só o
presidente e os diretores como também metade do grupo de gestores logo
abaixo deles. Sant"Anna aproveitou para se aposentar. E o que seria o
primeiro plano estratégico da Petrobras acabou engavetado."
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