domingo, 19 de janeiro de 2020

É preciso que haja liberdade para confrontar religiões

É preciso que haja liberdade para confrontar religiões

As ideias e crenças podem ser atacadas; as pessoas não


Bernardo Carvalho

“Noite Italiana” foi escrita em 1931 pelo austro-húngaro de expressão alemã Ödön von Horváth (1901-38). Desde o ano passado faz parte do repertório do Schaubühne, um dos teatros mais prestigiosos de Berlim, numa encenação de Thomas Ostermeier.
A peça conta como, numa pequena cidade de província, enquanto os social-democratas planejam uma festa de confraternização (a “Noite Italiana” do título), grupos de extrema direita convergem para o local para comemorar o “Dia Alemão”, com desfile paramilitar e exercícios armados.
Ignorado pelos social-democratas ao tentar alertá-los sobre o perigo iminente, um militante de esquerda convence a namorada a se aproximar dos fascistas para descobrir seus planos. A moça é estuprada, e os social-democratas acabam a peça encurralados no bar onde comemoravam sua “Noite Italiana”, sem coragem de voltar para casa, sob a ameaça sinistra de vultos que os espreitam do lado de fora, como uma alcateia de lobos no fundo da noite.

Horváth foi obrigado a deixar a Alemanha em 1933, depois da chegada dos nazistas ao poder e de sua casa ser invadida numa batida policial. Nem é preciso dizer que o texto ganha um sentido ainda mais perturbador hoje (e não só para europeus, é claro), pelo reconhecimento de uma onda irrefreável, uma repetição reencenada como maldição apesar de todos os avisos. Também não causa surpresa que, no Brasil, essa onda seja insuflada pela manipulação religiosa.

Num artigo de 1933 (“A estrutura psicológica do fascismo”), o francês Georges Bataille enumerava três “formas imperativas” de autoridade fascista: a religiosa, a real (do rei) e a militar. Mas explicava que é a religião —e não o Exército— a fonte da autoridade social.
A religião costuma ser moralmente justificável até segunda ordem, até passar a se imiscuir na política e a almejar o poder, o que ela acabará fazendo de qualquer maneira se não houver leis para proteger o Estado e o cidadão.

O mais assustador no caso recente da tentativa de censura do especial de Natal do Porta dos Fundos, sob justificativa religiosa, é que a impostura já não precisa recorrer a nenhum disfarce.
Contra quem sugere que não há diferença entre questionar crenças e atacar minorias, entretanto, talvez seja bom lembrar alguns princípios civilizatórios muito simples. A liberdade de expressão diz respeito às ideias e à expressão das ideias. É o contrário da licença para calar ou eliminar quem é isto ou aquilo, quem pensa deste ou daquele modo, quem acredita nisto ou naquilo.

Segundo o princípio da liberdade de expressão, é permitido atacar as ideias, justamente porque não é permitido atacar os homens que as defendem. Isso significa que pôr crenças à prova não é igual a ameaçar gays, mulheres, negros, judeus, cristãos, muçulmanos ou humoristas. Para que os homens possam praticar suas crenças e existir com a liberdade de suas diferenças, é preciso que suas ideias possam ser debatidas e questionadas.
As ideias podem ser atacadas; as pessoas não. É preciso que haja liberdade para confrontar as religiões para que os homens que nelas acreditam também possam existir e praticá-las livremente. Uma coisa está ligada à outra.
Quando um idiota iguala gays, negros, indígenas e mulheres a ideologia, ele reproduz uma inversão abjeta que está tanto na base ideológica do fascismo como do governo Bolsonaro: é ilícito confrontar as ideias que interessam ao poder (transformadas em natureza divina), mas é lícito atacar e matar pessoas.
Que o ministro da Justiça não se manifeste quanto a essa inversão e, mais do que isso, que a endosse, que aceite posar ao lado de sua efígie formada por cartuchos de armas de fogo, mas silencie diante de um caso patético de censura (para não falar na indecência jurídica de premiar um ato terrorista), mostra exatamente o lugar onde estamos.
O fato de que, mesmo assim, parte significativa da população continue a apoiá-lo só confirma o poder evocatório da peça de Horváth. De todo modo, a incompreensão ou a má-fé de uma parcela da população que confunde sujeitos com ideias fala por si e só pode ter consequências desastrosas para todos, inclusive para essas mesmas pessoas.
As ideias que o princípio da liberdade de expressão não pode defender são justamente aquelas que têm como objetivo não mais o livre debate e o questionamento das ideias, mas o silêncio e a morte de homens e mulheres que as pensam ou praticam.
Fica a dica da peça de Horváth para quem ainda acha que está tudo bem e que vai conseguir voltar para casa incólume depois da festa.
 
Bernardo Carvalho
Romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

Bolsonaro insulta jornalistas em vez de dar respostas sobre seu governo


Bolsonaro insulta jornalistas em vez de dar respostas sobre seu governo


Presidente não dá explicação satisfatória às relações comerciais do seu secretário de Comunicação

"Cala a boca!". "Você tá falando da tua mãe?" Ainda não foi dessa vez. A repórter e o colega ficaram impassíveis, tal como outros jornalistas profissionais têm suportado as reações de Jair Bolsonaro a perguntas que não pode responder, apesar de legítimas e necessárias. Mas não está eliminada a possibilidade, um dia qualquer, de que um repórter não aceite ver sua mãe em frase de moleques, e reaja à altura. Pode ser outra a frase insultuosa, e sempre será uma situação sem precedente, porém não exótica.
Nada mais é exótico sob o regime bolsoneiro. Nem por isso é menor a curiosidade sobre o que sucederá. Certo é que haverá efeitos importantes. Nenhum deles capaz, por exemplo, de dar explicação satisfatória às relações comerciais que têm, em uma ponta e na outra, o secretário de Comunicação da Presidência —Fabio Wajngarten, empresário chamado a controlar os altos gastos de todo o governo em propaganda.

Esse agressivo mentor de ataques de Bolsonaro à imprensa diz que a Folha mente, ao noticiar o conflito de interesses, porque ele deixou o comando da empresa em questão. Mas não deixará de lado, quando partilhados os lucros, os 95% que tem da composição societária. Nem o dinheiro público que possa haver, também, no caldeirão dos ganhos empresariais. Essa é a origem de uma das respostas que Bolsonaro, não podendo dar aos repórteres, substituiu por insulto de moleques.
Os jornalistas até têm dado a Bolsonaro oportunidades, não aproveitadas, para criticar o jornalismo brasileiro. Ele prefere a falta de razão. Mas sempre se leu que o excesso de funcionários era um ônus a mais no rombo do INSS. Afirmação fácil de inúmeros economistas, ingerida, como de praxe, pelos jornalistas. Esse populoso INSS teve redução recente de 6.000 funcionários. E parou. Os pagamentos de aposentadorias e pensões estão com atrasos, desesperadores em muitos casos, e ninguém sabe quando voltarão ao normal. As filas são de milhares. Há dois meses não são despachadas aposentadorias.
Saíram 6.000, vão dar 30% de extra a 7.000 militares reformados para um quebra-galho temporário no instituto, reduzindo-lhe as filas. Por que militares, que ainda passarão por aprendizado, e não ex-funcionários, só se explica como outro presente de Bolsonaro à sua turma. E ninguém indaga dele e Paulo Guedes o que acham ainda, diante do INSS estagnado, da sua política de não substituição de aposentados no serviço público. Política, por sinal, bem vista na imprensa.
No estudo "Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil", agora divulgado pela Fenaj, a Federação Nacional de Jornalistas, os ataques a jornalistas e empresas de comunicação aumentaram 54% em um ano, de 135 para 208. Bolsonaro, só ele, é autor de 58% desses ataques, em pessoa ou pela internet. Tem razão em achar que, para ele, o insulto é livre. Até prova em contrário.

Poluições

A água imprestável que a Cedae fornece a parte do Rio e de vários municípios não é só caso de poluição. É também caso de polícia.
Incluída nas privatizações e já em fase de fixação do valor e condições para venda, à Cedae foi atribuída uma contribuição quase milagrosa para o cofre fluminense. A situação crítica alcançou-a de imprevisto, com uma queda de qualidade sem explicações convincentes e compras, de equipamentos e substâncias, repentinamente necessárias. Como repentina, mais ainda, foi a aparição da água não tratada com o resultado de sempre.
E então, antes que a semana acabasse, a informação preciosa: a despoluição do manancial, que é o rio Guandu, indispensável para o fornecimento de água limpa, custará R$ 1,4 bilhão. Ao menos. E por ora.
Pois é, o valor de privatização já diminuiu em um bilhão e meio. Antes mesmo de ser consolidado. E ficou fácil entender o que poluiu a água: foi a poluição da sua privatização.
Janio de Freitas
Jornalista

domingo, 12 de janeiro de 2020

Excessiva leniência do Judiciário com magistrados infratores está afetando seriamente a sua imagem

Dalmo Dallari: Excessiva leniência do Judiciário com magistrados infratores está afetando seriamente a sua imagem


12/01/2020 - 
Excessiva leniência dos órgãos de controle dos atos da magistratura está comprometendo a imagem do Judiciário
por Dalmo de Abreu Dallari, no Jota
Na tradição brasileira, o Poder Judiciário era visto e respeitado como o setor da organização política e jurídica constitucional mais merecedor de respeito e admiração, pelo alto nível ético de seus integrantes e por sua valiosa contribuição para a defesa e efetividade dos princípios e normas constitucionais.
Esse elevado prestígio começou a ser perdido quando magistrados, de todos os níveis, começaram a se manifestar pela imprensa, externando opiniões sobre questões jurídicas e políticas.
Um velho brocardo – que é um princípio jurídico – segundo o qual “Juiz só fala nos autos”, passou a ser desprezado por magistrados exibicionistas em busca de publicidade.
Com essa exposição fora dos autos esses magistrados começaram a comprometer seriamente o prestígio do Poder Judiciário, pois em muitos casos ficava evidente, além do exibicionismo, a manifestação de parcialidade política.
Uma denúncia recente tendo por base elementos concretos de comprovação de que magistrados estão “vendendo” suas decisões, compromete a boa imagem e o prestígio do Judiciário.
Esses juízes, afrontando princípios fundamentais da Ética e do Direito, decidindo em favor de acusados corruptos e comprovadamente culpados da prática de ilegalidades, são pagos pelos beneficiários dessas tremendas imoralidades.
A simples denúncia dessa prática já teve o efeito de comprometer a imagem e o prestígio do Judiciário e de seus integrantes, mas havia a expectativa de que os órgãos superiores do Poder Judiciário – legalmente responsáveis pelo controle da ética e da legalidade dos magistrados de todos os níveis – adotassem medidas rápidas para impedir a continuidade desses desvios, com a severa punição dos magistrados corruptos.
Não é o que vem ocorrendo.
A expectativa dos que tinham o Judiciário, em todos os níveis, como padrão de ética e de respeito aos preceitos jurídicos, vem sendo contrariada e, pode-se dizer, vem sendo agredida, por decisões dos órgãos do Judiciário legalmente competentes para o controle do comportamento dos integrantes da magistratura, para impedimento dos desvios e punição dos que infringirem os princípios éticos e jurídicos do Poder Judiciário.
Recentemente o jornal “O Estado de São Paulo” divulgou dados surpreendentes, demonstrando que em raros casos houve a punição devida, enquanto que na maioria dos procedimentos em que, comprovadamente, ocorreram graves desvios, os órgãos encarregados do controle dos atos e da punição dos infratores decidiram com absurda brandura, impondo punições suaves e deixando de aplicar as penas expressamente previstas em lei.
Na matéria jornalística aqui referida, intitulada “Em 11 anos, uma condenação por venda de sentenças”, informa-se que em apenas um caso, em que era acusada a ex-presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Maria do Socorro Barreto Penteado, foi imposta a prisão preventiva da acusada, além de seu afastamento do cargo.
Informa-se, em seguida, que dos 17 magistrados punidos pelo Conselho Nacional de Justiça entre 2007 e 2018, pela acusação, comprovada, de venda de sentenças, em apenas um deles foi imposta uma condenação criminal.
Quanto aos demais, houve apenas uma punição administrativa, com aposentadoria compulsória e manutenção de elevada remuneração pela aposentadoria.
É conveniente e oportuno assinalar que essa absurda suavidade da punição, além de eticamente reprovável implica também uma ilegalidade, por contrariar disposições expressas da Lei Complementar nº 35, de 14 de Março de 1979, que é a Lei Orgânica da Magistratura.
Com efeito, no capítulo II, que trata das “Penalidades aplicáveis aos magistrados”, dispõe a lei, no artigo 42, sobre as penas disciplinares.
E no inciso V se especifica: – “Aposentadoria Compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço”.
E no inciso VI está prevista a pena de demissão.
Entretanto –e este é um ponto de fundamental importância para os casos de venda de sentenças – dispõe expressa e claramente o artigo 26 da Lei Orgânica da Magistratura:
“Casos em que o magistrado vitalício perderá o cargo: II- em procedimento administrativo: b) recebimento, a qualquer título ou pretexto, de porcentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho ou julgamento”.
Nestes casos não tem aplicação a imposição de aposentadoria, mas a perda do cargo.
Paralelamente a essa punição administrativa, cabe a aplicação dos preceitos da legislação penal, mas para tanto é necessário que o caso seja remetido ao órgão judicial penal competente, o que habitualmente não se faz.
E, como informa a matéria jornalística acima referida, de todos os casos de punição administrativa por esses desvios de comportamento apenas um caso levou à punição criminal: o desembargador Carlos Rodrigues Feitosa, do Tribunal de Justiça do Ceará, foi condenado à pena de 13 anos e oito meses de prisão pelo crime de corrupção.
Em conclusão, a excessiva leniência dos órgãos do Judiciário encarregados do controle dos atos da magistratura está comprometendo seriamente a imagem do Poder Judiciário.
Essa grave omissão dos órgãos do Judiciário, deixando, inclusive, de adotar as providências para a punição legalmente prevista dos magistrados infratores, está afetando seriamente a imagem do Poder Judiciário como padrão de comportamento ético.
Urge que os órgãos de controle do desempenho dos integrantes da magistratura passem a atuar com rigor no controle do comportamento ético e jurídico dos magistrados de todos os níveis.
É preciso, inclusive, punir com o adequado rigor, aplicando sem leniência os preceitos legais. Isso é necessário para que os brasileiros voltem a ter confiança e admiração pela magistratura, como instrumento eficaz para assegurar o respeito e a efetividade dos princípios e das normas constitucionais.
*Dalmo de Abreu Dallari é jurista, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP.

Uma espécie de extinção

Uma espécie de extinção

por Janio de Freitas
Impor a subserviência ou o silêncio do jornalismo é parte essencial do plano de Bolsonaro
A satisfação de Jair Bolsonaro com a ideia de que “jornalistas são uma espécie em extinção” não é egoísta. Acaricia certo sentimento de incontáveis ressentidos. E, ao menos no que me toca, é comprovável até em dose dupla: tanto no jornal, onde as seis colunas por semana hoje ficam nesta única (e olhe lá), como na encaminhada extinção, mais tradicional, do meu prazo de validade geral.
A ideia de Bolsonaro, dessa vez exposta com mais ênfase, volta com o mesmo problema. Ei-la: “Vocês são uma espécie em extinção. Acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”. A formulação continua vaga, de imprecisão que chega a parecer deliberada.
“Vocês são uma raça em extinção” é uma dedução, sugerida pelas previsões alucinantes do futuro cibernético? Ou é constatação, facilitada pelo embate entre imprensa, internet, TV e que tais, com as visíveis crises de identidade e os desmaios financeiros? Ou é ameaça, ampliação dos ataques à Folha e seus anunciantes, à Globo e seu próximo vencimento da concessão?
A indefinição até parece um suspense inteligente, não fosse de Bolsonaro. O histórico das relações entre “mídia” e governos, no Brasil, é de capitulações muito mais frequentes, quase uma norma, do que enfrentamento das ameaças. Bolsonaro talvez ache, insensato, que vale a pena testar, faltando-lhe a experiência de ter pela frente a artilharia unida, como aconteceu a Lula, Collor e Dilma.
A gracinha da citação ao Ibama, tão desumorada, tem a ver com a vocação de Bolsonaro para o atraso, para o passado menos digno. Com o Ibama, traz de volta, sem saber, o tempo do jornalismo pendurado às escondidas nos cofres públicos. Assim eram as redações quando cheguei a uma delas. Havia até, em várias, jornalistas e dirigentes que podiam ganhar insignificâncias porque recebiam “contribuição” da ditadura portuguesa de Salazar. Como regra, os salários eram baixos e os empregos públicos, dispensada a frequência, eram apenas tão silenciados quanto possível.
No sempre citável Diário Carioca de meado dos anos 50, formamos um grupo de resistência a determinadas práticas, como o emprego público, e pela profissionalização real do jornalismo. Os que ainda não eram funcionários fantasmas aderiram, todos. Não tardou, porém, que Câmara de Vereadores, Correios, Casa da Moeda (imoralidade tão revoltante que inspirou uma crônica de Fernando Sabino), e outros cofres, ilustrassem seus quadros de fantasmas com entusiastas da profissionalização ética. Sobramos apenas uns cinco ou seis (quatro ainda ativos na teimosia).
De São Paulo, sempre se ouvia, no Rio, o quanto era generoso o Jockey local, o que, aliás, mais tarde levou o novo proprietário da Folha, Octavio Frias de Oliveira, a vetar seção de turfe. A “mídia” nos demais estados não estava mais distante dos cofres impróprios que a das grandes cidades. A ditadura agravou muito essa deformação, inclusive por meio do SNI. Com a chamada redemocratização, Brasília atualizou seus métodos. O que quer dizer que também jornalistas o fizeram, mas se tornaram uma parcela cada vez menor. Embora o surgimento, também em vários estados, de determinadas “assessorias de comunicação” e “agentes” praticantes dos métodos mais nefastos.
É claro que jornais, tevês e rádios privados são instrumentos políticos, com tal propósito ou não. Toda notícia, mesmo a isenta, contraria alguém ou os interesses de algum lado. Todo comentário, idem. O grau da reação a essas contraposições é um dos mais perceptíveis e úteis indicadores da sinceridade democrática de um governante, em qualquer nível. Nesse quesito, José Sarney e Itamar Franco, por mais que o íntimo lhes doesse com a brutal pancadaria, foram democraticamente perfeitos, quando presidentes. Lula e Dilma não contiveram queixas públicas, mas a ninguém ameaçaram e nada moveram para abrandar, calar ou vingar.
Impor a subserviência ou o silêncio do jornalismo é parte essencial do plano de Bolsonaro, e dos seus aliados fortes, para moldar o país à ignorância cascuda e antidemocrática que nos é mostrada por DamaresWeintraubRicardo Salles, Onyx, e demais reproduções miniaturizadas da nulidade humana com status de Presidência. Não enfrentar esse plano já é uma espécie de extinção.
*Publicado na Folha de S.Paulo

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Em defesa da República

Em defesa da República

por Oscar Vilhena Vieira
Desafio da sociedade em 2020 é iniciar concertação contra o milicianismo
milicianismo é uma espécie radical de antirrepublicanismo. Embora não confronte diretamente a ordem estatal, vive em suas dobras, cooptando seus agentes e corroendo lentamente a autoridade pública. O miliciano reivindica agir em nome da lei e da ordem no combate à criminalidade, mas, na realidade, não passa de um tipo de criminoso que explora as fraquezas do Estado, o medo das pessoas e as carências da comunidade com o objetivo de vender segurança e outros serviços.
Para o milicianismo não há cidadãos ou direitos. Há uma comunidade e indivíduos, por mais carentes que sejam, a serem economicamente explorados. Da venda de gás aos armamentos pesados, passando pelo acesso à televisão a cabo, coleta de lixo etc., as milícias fornecem tudo a quem paga. Os que não se curvam à extorsão nada recebem. Os que se insubordinam são eliminados, como ocorreu com Marielle Franco.
A ascensão de lideranças políticas que orbitam em torno do mundo das milícias, ou que partilham do seu ethos, estabelece novos desafios às nossas instituições políticas. Essas não foram moldadas para lidar com esse tipo de problema. Isso deveria ser uma questão de Justiça e de polícia.
Nossas instituições políticas foram desenhadas para coordenar a competição política e canalizar os conflitos entre setores que, embora divergentes, assumiram um compromisso básico com os valores da República, em especial com a cidadania e com o governo das leis. Não é o caso dos milicianos.
Nesse sentido, as instituições políticas conformadas pela Constituição de 1988 vêm cumprindo o seu papel ao assegurar a alternância no poder e certa lealdade dos diversos grupos políticos. Podem não ser as mais perfeitas instituições, mas vêm servindo, até o presente momento, para que a sociedade brasileira coordene suas disputas e resolva seus conflitos, de forma pacífica.
O desafio deste momento político, no entanto, não é lidar apenas com a dimensão reacionária e mesmo populista do governo Bolsonaro. Isso é parte do jogo. Como esse primeiro ano de mandato presidencial demonstrou, o sistema de freios e contrapesos, associado ao sistema de liberdades públicas, tem servido de anteparo às medidas mais estapafúrdias e contrárias aos pressupostos do regime republicano.
A questão que se coloca neste momento é como as instituições têm lidado com a dimensão mais corrosiva deste governo, contígua ao populismo reacionário, que é o milicianismo? Aqui a resposta parece não ser tão positiva assim.
A ampliação das invasões de terras indígenas, o aumento das queimadas na Amazônia, o crescimento das mortes pela polícia, os ataques à liberdade de expressão, a total negligência com o sistema educacional e o combate frontal à cultura não decorreram de mudanças propriamente institucionais. Ao contrário, foram consequência de uma ação paraestatal sistemática promovida pela dimensão miliciana do atual governo que provoca a erosão, captura e desgaste das instituições.
O grande desafio da sociedade brasileira em 2020 é dar início a uma ampla concertação político-institucional contra o milicianismo e em favor da República.
*Publicado na Folha de S.Paulo

A Fiesp é fascista?


A Fiesp é fascista? 

Bolsonarismo de Skaf amarra elite de SP ao que há de mais imundo na política 

Na Folha de São Paulo/06/01/2020
Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) está trabalhando pela organização do partido de Bolsonaro no estado. É uma vergonha para a indústria brasileira e para São Paulo.
Associando-se ao bolsonarismo, Skaf está amarrando a elite do estado mais dinâmico do Brasil ao que há de mais imundo e atrasado na tradição política brasileira.
A vanguarda de nosso empresariado defende o torturador Brilhante Ustra, que introduzia ratos nas vaginas das presas? A locomotiva da nação dá graças a Deus porque Pinochet matou o pai de Michelle Bachelet?
Há planos para projetar uma placa rasgada com o nome de Marielle Franco na fachada da sede na Paulista? As milícias de Rio das Pedras poderão se filiar à Fiesp?
A elite paulista, que já financiou a Semana de Arte Moderna de 1922, a USP e o Masp, agora patrocinará a doença mental de Olavo de Carvalho? Os empreendedores bandeirantes defendem o negacionismo climático? Aliás, que modelo de empreendedorismo os federados de Skaf pretendem oferecer aos jovens paulistas, a startup “Escritório do Crime”?
Os cidadãos brasileiros a quem o país permitiu ter mais dinheiro apoiam um novo AI-5, entusiasmam-se com os ataques ao STF, defendem a guerra de Bolsonaro contra a imprensa livre? A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo será a defensora do atraso e do coronelismo, do preconceito e do obscurantismo, da mais torpe e abjeta depravação autoritária?
Ao redor do mundo, segmentos econômicos que não se mostraram capazes de competir globalmente se aliaram ao populismo autoritário. Se o empresariado paulista seguir Skaf no bolsonarismo, terá também assinado sua desistência.
Talvez a indústria brasileira, em franco declínio, abrace o bolsonarismo como os antigos mineiros do norte da Inglaterra abraçaram o brexit. Vale lembrar, o bolsonarismo se distingue de outros autoritarismos da mesma safra pelo apoio que tem nas elites.
Se os industriais paulistas não protestarem contra Bolsonaro na qualidade de industriais, poderiam ao menos protestar na qualidade de paulistas.
Bolsonaro venceu em São Paulo, mas representa o contrário da visão que São Paulo já foi. Bolsonaro acha que desenvolvimento é plantar em cada vez mais terras e explorar cada vez mais minas. É o exato contrário do tipo de atividade econômica moderna e intensiva em conhecimento em que São Paulo é líder.
São Paulo é suas universidades, é o centro da ciência nacional, é a Fapesp. Bolsonaro é censura ao Inpe, guerra às universidades e negacionismo climático. São Paulo foi o berço dos dois melhores partidos que o Brasil já teve, PT e PSDB. Bolsonaro é uma infecção oportunista nascida das crises dos dois. São Paulo é um dos poucos estados em que dois grandes jornais sobreviveram. Bolsonaro pretende estrangulá-los financeiramente e substituí-los pelo jornalismo puxa-saco muito comum nas regiões mais pobres.
Ainda resta a esperança de que Skaf não seja representativo da indústria paulista como um todo. Matéria de Bruna Narcizo publicada nesta Folha em 3 de janeiro mostrou que há industriais insatisfeitos com os movimentos recentes do presidente da Fiesp. Tomara que sejam muitos e que estejam insatisfeitos pelo motivo certo.