Para o governo, pandemia não é tragédia,
mas oportunidade
MARCELO SEMER
Como diz José Simão, referindo-se à reunião de governo de 22 de abril: “o menos indecente no vídeo são os palavrões”.
À primeira vista, choca o fato de que as vítimas do
coronavírus
tenham sido as principais ausentes da reunião. Ninguém presta
solidariedade, nem alerta para a tragédia humana que, àquela altura, já
era bem visível: quase 50 mil pessoas infectadas e três mil mortos,
dobrando em menos de uma semana, em um assustador crescimento
exponencial.
Sobre as mortes, três curtas e inacreditáveis referências.
O então ministro da Saúde, que deixaria o cargo em semanas, declarou,
em tom ufanista, quase em celebração, que “em relação à mortalidade, o
Brasil era um dos melhores países em termos de números”; o presidente do
Banco do Brasil, último a falar, arriscou otimismo ao dizer que o
“pico já tinha passado” e o presidente da República criticou a nota de
solidariedade em que a Polícia Rodoviária Federal lamentara a morte de
um de seus agentes, insistindo para que a declaração de Covid como
causa mortis fosse minimizada, sempre acompanhada de todas as comorbidades da vítima.
Poderíamos dizer que foi isso, um quase silêncio entremeado de observações grotescas e descoladas da realidade.
Mas foi pior.
O que se constatou na reunião é que para o governo a pandemia não é uma tragédia, mas uma oportunidade. Um bom momento, enfim.
Agora dá para entender melhor quão pouco o governo federal lamenta,
por que evita prestar solidariedade e não para de trabalhar para
aumentar o risco.
Não é insanidade ou incompetência. É um projeto.
Ricardo Salles foi direto ao ponto: é preciso aproveitar o momento em
que a imprensa está voltada quase que exclusivamente para a Covid – e,
portanto, “está dando um alívio”- para fazer a desregulação ambiental.
Sugere que seja feita rapidamente, inclusive nas demais áreas:
aproveitar para “ir passando a boiada”, “de baciada”. Nada estranho,
diga-se de passagem, para um governo que se notabilizou desde o início
pelo aprofundamento das queimadas e desmatamento na Amazônia.
Salles pode ter sido o mais explícito, e certamente será o mais
comentando ao redor do mundo; mas está longe de ter sido o único.
O ministro do Turismo quer aproveitar o momento para passar a ideia
de “resort integrado”, eufemismo envergonhado com que pretende a
legalização do jogo no país, desde que “conversando com a bancada
evangélica”. Após as críticas de
Damares
de que seria um “pacto com o diabo”, Paulo Guedes a rebate aos gritos e
sem freios: “Damares, deixa cada um se foder do jeito que quiser”.
Guedes, aliás, o que mais falou na reunião e assim mesmo menos
apareceu na mídia, admitiu que o dinheiro transferido como ajuda aos
mais pobres “nem é tanto assim”. Deixa claro que o governo pode
dispender mais, mas com critérios: “nós vamos ganhar dinheiro usando
recursos públicos para salvar grandes companhias; nós vamos perder
dinheiro salvando empresas pequeninhas”.
Guedes se jacta de ter colocado a “granada no bolso do inimigo”,
aproveitando a pandemia para congelar reajustes de servidores públicos, e
ainda projeta que é o momento ideal para vender “a porra do Banco do
Brasil”. Mesmo afirmando que não se preocupa nada, zero, zero com a
reeleição, por via das dúvidas,
Bolsonaro adverte que este tema é para ser discutido só em 2023.
Vivendo em um universo paralelo, o chanceler usou um único minuto
para expor a sua megalomania de que o Brasil vai aproveitar esse momento
para influenciar “no desenho de um novo cenário internacional”. Mudança
necessária, diz ele, considerando que a globalização “cega de valores”
colocou no centro do mundo um país que não respeita a democracia e os
direitos humanos. Estava falando da China.
Verdade seja dita, Ernesto Araújo foi um dos mais diplomáticos nesse
assunto. Guedes, por exemplo, avisou que só quer a China comprando soja,
mas “não vamos vender a eles nossas partes críticas”. E resume a
situação: “a China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar”.
Bolsonaro foi ainda menos econômico ao mergulhar na teoria da
conspiração e revelar, como sempre sem provas, que existem espiões
chineses infiltrados nos ministérios.
O momento é propício também para ressignificar direitos humanos.
Elencando três ou quatro casos em que pessoas que teriam sido detidas
por romper o isolamento social, Damares assinalou com grandiloquência
que “vivemos a maior violação de direitos humanos dos últimos trinta
anos”, e instou o governo a prender governadores e prefeitos.
Suas palavras soaram como música ao ouvido do presidente, que quer
aproveitar o momento – urgente, afirma, aos berros – para “escancarar o
armamento”. “Eu quero todo mundo armado” emendou – sem mudar a lei,
registre-se. Como a
novilíngua
de 1984, Bolsonaro quer “armas em nome da liberdade” e deixa claro como
poderiam ser usadas contra os decretos de isolamento: “se o povo
estivesse armado ia para a rua”.
A passagem explicita uma invocação à resistência armada como método
de luta política, não mais para uma suposta defesa pessoal. Bolsonaro
quer aproveitar a pandemia, momento em que o “povo” estaria clamando por
liberdade (contra todas as pesquisas, ressalte-se), para armar seu
pessoal. É incrível como essa transposição da disciplina do Exército
para a lógica dos grupos paramilitares não provoca inquietação alguma
nas Forças Armadas. Nem mesmo o orgulho ferido.
Como todo mundo quer agradar o chefe, até o presidente da Caixa
Econômica admitiu que se fosse sua filha que tivesse sido colocada em um
camburão, pelo desrespeito ao isolamento, “ia pegar suas quinze armas e
sair para matar ou morrer”.
O homem da legalidade, o ícone da luta contra a corrupção, o símbolo popular de justiça, ficou quieto. Nenhuma crítica.
Durante sua passagem pelo governo,
Sergio Moro
deu apoio explícito às barbaridades do chefe (como na proposta
estapafúrdia da ampliação das excludentes de ilicitude) ou simplesmente
silenciou (como o desrespeito e provocações explícitas às orientações
sanitárias do próprio governo), sem contar o suporte efetivo que deu no
caso do porteiro, ao requisitar que ele fosse investigado pela prática
de crime contra o presidente, antes mesmo que o inquérito estivesse
concluído.
Na reunião, Moro jogou para uma suposta plateia. De braços cruzados e
cara emburrada, fitou a câmara várias vezes. Falou o mínimo possível,
coisas sem importância, mas viu o desfiar de ilegalidades sem fazer
qualquer observação. Permaneceu impassível mesmo quando
Abraham Weintraub
chamou os ministros do Supremo Tribunal Federal de vagabundos e diz que
deveriam ser os primeiros a serem presos. Todo o apreço pelo Judiciário
não mereceu uma única réplica.
A maioria dos líderes políticos mundiais cresceu em popularidade na
pandemia, porque a tragédia é um momento propício para a solidariedade.
Liderar o país na adversidade constantemente é objeto de reconhecimento.
O medo convida à união e as críticas partidárias costumam ser tratadas
como mero oportunismo.
Não por aqui.
O governo quer aproveitar a pandemia para realizar a sua própria
pauta. As vítimas que lutem, enquanto o presidente e os ministros estão
obcecados pelo desmatamento, privatização, legalização de cassinos,
fortalecimento das milícias e outros acobertamentos.
A cereja do bolo não foi dita, mas é um pressuposto. A pandemia
dificulta o impeachment, portanto, contraditoriamente, é um mecanismo de
sobrevivência.
Não é a toa que o Brasil se transformou no novo epicentro da
pandemia, batendo recorde atrás de recorde, superando mil mortes todo
dia, e se preparando, com a intensa interiorização da doença e o
previsível colapso da rede de saúde, para atingir a liderança absoluta
da morte no mundo.
Não tenho dúvida que muitos vão celebrar este feito.
Para usar a expressão de Bolsonaro que bem resume o espírito da reunião: “o que os caras querem é nossa hemorroida”.
MARCELO SEMER é juiz de direito e escritor. Doutor em criminologia pela USP, é membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia