domingo, 31 de maio de 2020

Quando cessa o diálogo, cessa a razão, irrompe a intolerância; basta!



Quando cessa o diálogo, cessa a razão, irrompe a intolerância; basta!

Controles sobre o poder são fundamentais para evitar que maiorias transitórias assenhorem-se do Estado com finalidades indevidas


*Sebastião Botto de Barros Tojal 
  Sérgio Rabello Tamm Renault 
  Igor Sant’Anna Tamasauskas 
 
Viver sob democracia significa aceitar diferenças, pressupõe submeter-se à regra da maioria, observados controles democráticos necessários para que essa maioria não aniquile os demais.
A maioria, expressa no ciclo eleitoral, é a magia desse sistema, que permite ao Estado ir se conformando às demandas da sociedade, reconfigurando seu papel, continuamente, porque o Estado não é um fim em si mesmo, mas expressão do Direito para organizar a vida em conjunto.
Os controles sobre o poder, portanto, são fundamentais para evitar que maiorias –transitórias por natureza– assenhorem-se do Estado com finalidades indevidas. Devemos cuidar para que esses controles operem com altivez e independência, guiados pelo Direito, para que os desviantes sejam coarctados.
Somente o Direito pode controlar e conduzir a força. A Constituição não é uma pessoa, nem uma seita: ela representa um consenso mínimo que nos faz a todos integrantes de um mesmo país. A interpretação de suas regras nos compete a todos; mas a última palavra é da Suprema Corte. E a revisão de suas decisões se faz por intermédio das próprias regras do Direito. Não podemos transigir com essas regras básicas.
Um sistema com essa conformação resiste à mudança. E resistir não é ruim, sobretudo quando se trata de limitar o poder.
Quando cessa o diálogo, cessa a razão, irrompe a intolerância. Matilhas salivam contra honras e reputações. Mudam ao sabor do vento a direção de seus ataques. Esse estado de coisas necessita de um basta. Basta!
O exercício diário da tolerância –sobretudo do diálogo– é o que permite convivermos com aquilo que não nos é familiar. Toleramos posição contrária à nossa na expectativa de que logo será a nossa vez, ou, ao menos, o momento de tentarmos, mediante eleições livres e justas, escolhermos os nossos pontos de vista.
Quais são nossos pontos de vista? Os mais diversos possíveis que se apresentem numa sociedade aberta. Com uma exceção: essa tolerância não pode admitir que atentem contra esse sistema, para ficar numa palavra em voga. Nisso reside o paradoxo da intolerância, formulado por Karl Popper: há uma fronteira para aceitar a diferença, e essa fronteira se estabelece justamente quando se coloca em risco a pluralidade que as nossas instituições, mesmo com todas suas falhas e defeitos, significam para nos garantir.
Não aceitaremos que esses limites sejam esgarçados, a que pretexto seja.
O poder do Estado, que funciona como um guia para produzir a força de uma nação, se mal-usado a conduzirá ao precipício. Assistimos atônitos a essa condução até este momento. Até.
Ombreemos as instituições –e seus representantes– que buscam confrontar o abuso. Confiremo-lhes apoio; façamo-lo às iniciativas de contenção da barbárie. Quis a história que fossem essas mulheres e homens que, investidos de autoridade, estivessem à frente dessa batalha. Estejamos com eles e ao lado de quem mais se dispuser a controlar o poder.
Pois há tempo de reversão, antes das “consequências imprevisíveis”.
Basta!



*Advogados, são integrantes do Basta!, manifesto lançado neste domingo (31) contra os ataques do presidente Jair Bolsonaro às instituições

Obsessão armamentista de Bolsonaro é necessária para conflagração contra perda do poder



 Obsessão armamentista de Bolsonaro é necessária para conflagração contra perda do poder

Janio de Freitas

Não vai acabar bem, não há como —começo, forçado pelas circunstâncias, com esta frase jornalisticamente velha, que ainda antes da posse de Bolsonaro gravei para o importante site de Bob Fernandes e aqui pôde ser encontrada nos primórdios do atual governo. Não era previsão, era só uma obviedade de que muitos olhares preferiram desviar, por diferentes motivos, desde temores talvez inconscientes à ganância já rica.
Situações com muitos componentes da tensão levam à imprevisibilidade intransponível, ou quase, sobre seu desfecho. Consegue-se formular umas poucas hipóteses, mas as variações imprevistas são sempre mais numerosas. É diante de hipóteses inumeráveis que estamos.
Bolsonaro, seu filho Eduardo e outros desatinados fizeram, contra o Supremo Tribunal Federal, novas ameaças golpistas. Os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto puseram nos seus currículos sucessivas negações de risco de golpe. Declarações de Augusto Heleno, porém, estão com sua autoridade moral cassada pelo próprio, que tanto ameaça com "consequências imprevisíveis" como diz que risco de golpe é só invenção da imprensa.
Apesar de que mentir em depoimento processual seja falta grave e punível, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto foram inverdadeiros nos depoimentos sobre a reunião vergonhosa, pretendendo proteger Bolsonaro. Condutas são mais eloquentes do que palavras.
As de Bolsonaro, mesmo quando restritas a uma gravata com figurinhas de fuzis —como o fotógrafo Joédson Alves, da EFE, percebeu e O Globo publicou—, bastam para sabermos o que e quanto nos ameaça. O seu berro de "acabou!", referindo-se à liberdade do Supremo para decidir contra o bolsonarismo, não foi reação momentânea e isolada.
Seu empenho em desmoralizar o tribunal revela-se como um plano de ação na escalada desde a campanha eleitoral. Com o "cabo e um soldado" suficientes para fechar o tribunal, por exemplo, ou com os prometidos dez integrantes a mais, como desqualificação dos 11 atuais. O que há hoje é uma investida mais coerente com ameaça. Por força do momento.
Esse avanço está em relação direta com outra escalada, a das armas para a população, também iniciada na campanha. Vai agora ao paroxismo como sua companheira, e pelos mesmos motivos.
Bolsonaro tem ciência e domínio, tanto quanto seus filhos maiores, dos comprometimentos que os põem sob riscos judiciais extremos. Sabem desses riscos desde as investigações da estrutura negocista de Sérgio Cabral e do assassinato de Marielle Franco. Este, para agravar os riscos, com implicação de milícias.
As relações e práticas que sujeitam Flávio Bolsonaro a inquéritos criminais foram herdadas de seu pai, eleito para a Câmara Federal quando o filho ocupava seu lugar na Assembleia Legislativa fluminense. Não seria correto, portanto, que o interesse das investigações terminasse em Flávio.
O estado de exasperação constatável em Bolsonaro corresponde à sua situação crítica. Agir, em tal caso, é a sua urgência. Desmoralizar o Supremo, com o decorrente enfraquecimento do Judiciário; dominar o Ministério Público, valendo-se das ambições do procurador-geral da República; submeter a Polícia Federal para conduzi-la, comprar apoiadores parlamentares com cargos públicos e benesses, são providências que marcham, aceleradas, para a primeira frente de combate defensivo de Bolsonaro. A frente desarmada.
A outra é a única explicação possível para a obsessão armamentista, há pouco agraciada com duas medidas tratadas sem a atenção merecida: uma, a liberação da compra de munições; em seguida, o fim da já duvidosa fiscalização, pelo Exército, da posse de armas militares. Essas medidas, como as liberações anteriores e as esperadas para breve, são partes do necessário para uma conflagração contra a perda do Poder. A defesa final.
Ainda não se sabe a favor de quem o tempo corre. Mas não há dúvida de que, contra a insegurança opressiva que nos subjuga, está faltando um grande exemplo de dignidade.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Quando a pátria é pária


Quando a pátria é pária

Como o Brasil virou um maluco estúpido, motivo de pena e deboche

Sérgio Rodrigues


Entre o pária e a pátria há uma letra de distância na grafia, mas não na cartografia política e moral do mundo. Nesta, que desde o fim da União Soviética não passava por redesenhos tão profundos, aconteceu de se fundirem.
Os sinais amarelos de que o Brasil estava a caminho de se tornar um pária global —um país sem amigos, sem educação, inconveniente, motivo de pena ou deboche e por todos evitado— começaram a piscar quando uma pequena maioria de seus eleitores achou boa ideia eleger Jair Bolsonaro.
Com um deputado do baixo clero alçado a presidente populista de extrema direita, o gigante sul-americano —quase sempre visto com simpatia, embora rude e às vezes meio atrapalhado— exibia os primeiros sintomas de desequilíbrio.

Aos olhos do mundo, ainda não havia motivo para pânico. Muita gente quis acreditar que um homem que já tinha ido à TV pregar uma guerra civil que matasse "uns 30 mil" poderia dar ao país uma estabilidade política —autoritária, e daí?— propícia ao bom andamento dos negócios.
Desse modo, entregue a uma cepa especialmente virulenta de gente desclassificada e disposta a tudo, o Brasil terminou 2018 na zona de rebaixamento do mundo, caindo da série B para a C.
A terceira divisão do planeta é aquela onde se agrupam as ditaduras e as nações instáveis, de democracia relativa ou sob ataque, nas quais a violência pode explodir a qualquer momento.
Contudo, embora a carta da tragédia social tenha entrado no jogo naquela hora, ainda era cedo. Foi preciso esperar mais de um ano até rolarem os dados que, virando a mesa, fizessem a trama amadurecer.
Com a entrada em cena do Sars-CoV-2, ficou claro que aquela não seria mais uma história de meios-tons, de oscilações reversíveis no caráter e no destino de uma nação. Seria uma história trágica, um fracasso épico, da série C para série nenhuma.
A história de como o Brasil —tão chucro e cheio de problemas, mas também de recursos, de lampejos, de uma certa alegria e portanto de esperança— degenerou de vez num maluco estúpido que mata seu próprio povo em massa e com indiferença.
 
 
Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Para o governo, pandemia não é tragédia, mas oportunidade


Para o governo, pandemia não é tragédia, mas oportunidade

MARCELO SEMER

Como diz José Simão, referindo-se à reunião de governo de 22 de abril: “o menos indecente no vídeo são os palavrões”.
À primeira vista, choca o fato de que as vítimas do coronavírus tenham sido as principais ausentes da reunião. Ninguém presta solidariedade, nem alerta para a tragédia humana que, àquela altura, já era bem visível: quase 50 mil pessoas infectadas e três mil mortos, dobrando em menos de uma semana, em um assustador crescimento exponencial.
Sobre as mortes, três curtas e inacreditáveis referências.
O então ministro da Saúde, que deixaria o cargo em semanas, declarou, em tom ufanista, quase em celebração, que “em relação à mortalidade, o Brasil era um dos melhores países em termos de números”; o presidente do Banco do Brasil, último a falar, arriscou otimismo  ao dizer que o “pico já tinha passado” e o presidente da República criticou a nota de solidariedade em que a Polícia Rodoviária Federal lamentara a morte de um de seus agentes, insistindo para que a declaração de Covid como causa mortis fosse minimizada, sempre acompanhada de todas as comorbidades da vítima.
Poderíamos dizer que foi isso, um quase silêncio entremeado de observações grotescas e descoladas da realidade.
Mas foi pior.
O que se constatou na reunião é que para o governo a pandemia não é uma tragédia, mas uma oportunidade. Um bom momento, enfim.
Agora dá para entender melhor quão pouco o governo federal lamenta, por que evita prestar solidariedade e não para de trabalhar para aumentar o risco.
Não é insanidade ou incompetência. É um projeto.
Ricardo Salles foi direto ao ponto: é preciso aproveitar o momento em que a imprensa está voltada quase que exclusivamente para a Covid – e, portanto, “está dando um alívio”- para fazer a desregulação ambiental. Sugere que seja feita rapidamente, inclusive nas demais áreas: aproveitar para “ir passando a boiada”, “de baciada”. Nada estranho, diga-se de passagem, para um governo que se notabilizou desde o início pelo aprofundamento das queimadas e desmatamento na Amazônia.
Salles pode ter sido o mais explícito, e certamente será o mais comentando ao redor do mundo; mas está longe de ter sido o único.
O ministro do Turismo quer aproveitar o momento para passar a ideia de “resort integrado”, eufemismo envergonhado com que pretende a legalização do jogo no país, desde que “conversando com a bancada evangélica”. Após as críticas de Damares de que seria um “pacto com o diabo”, Paulo Guedes a rebate aos gritos e sem freios: “Damares, deixa cada um se foder do jeito que quiser”.
Guedes, aliás, o que mais falou na reunião e assim mesmo menos apareceu na mídia, admitiu que o dinheiro transferido como ajuda aos mais pobres “nem é tanto assim”. Deixa claro que o governo pode dispender mais, mas com critérios: “nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias; nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequeninhas”.
Guedes se jacta de ter colocado a “granada no bolso do inimigo”, aproveitando a pandemia para congelar reajustes de servidores públicos, e ainda projeta que é o momento ideal para vender “a porra do Banco do Brasil”. Mesmo afirmando que não se preocupa nada, zero, zero com a reeleição, por via das dúvidas, Bolsonaro adverte que este tema é para ser discutido só em 2023.
Vivendo em um universo paralelo, o chanceler usou um único minuto para expor a sua megalomania de que o Brasil vai aproveitar esse momento para influenciar “no desenho de um novo cenário internacional”. Mudança necessária, diz ele, considerando que a globalização “cega de valores” colocou no centro do mundo um país que não respeita a democracia e os direitos humanos. Estava falando da China.
Verdade seja dita, Ernesto Araújo foi um dos mais diplomáticos nesse assunto. Guedes, por exemplo, avisou que só quer a China comprando soja, mas “não vamos vender a eles nossas partes críticas”. E resume a situação: “a China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar”. Bolsonaro foi ainda menos econômico ao mergulhar na teoria da conspiração e revelar, como sempre sem provas, que existem espiões chineses infiltrados nos ministérios.
O momento é propício também para ressignificar direitos humanos.
Elencando três ou quatro casos em que pessoas que teriam sido detidas por romper o isolamento social, Damares assinalou com grandiloquência que “vivemos a maior violação de direitos humanos dos últimos trinta anos”, e instou o governo a prender governadores e prefeitos.
Suas palavras soaram como música ao ouvido do presidente, que quer aproveitar o momento – urgente, afirma, aos berros – para “escancarar o armamento”. “Eu quero todo mundo armado” emendou – sem mudar a lei, registre-se. Como a novilíngua de 1984, Bolsonaro quer “armas em nome da liberdade” e deixa claro como poderiam ser usadas contra os decretos de isolamento: “se o povo estivesse armado ia para a rua”.
A passagem explicita uma invocação à resistência armada como método de luta política, não mais para uma suposta defesa pessoal. Bolsonaro quer aproveitar a pandemia, momento em que o “povo” estaria clamando por liberdade (contra todas as pesquisas, ressalte-se), para armar seu pessoal. É incrível como essa transposição da disciplina do Exército para a lógica dos grupos paramilitares não provoca inquietação alguma nas Forças Armadas. Nem mesmo o orgulho ferido.
Como todo mundo quer agradar o chefe, até o presidente da Caixa Econômica admitiu que se fosse sua filha que tivesse sido colocada em um camburão, pelo desrespeito ao isolamento, “ia pegar suas quinze armas e sair para matar ou morrer”.
O homem da legalidade, o ícone da luta contra a corrupção, o símbolo popular de justiça, ficou quieto. Nenhuma crítica.
Durante sua passagem pelo governo, Sergio Moro deu apoio explícito às barbaridades do chefe (como na proposta estapafúrdia da ampliação das excludentes de ilicitude) ou simplesmente silenciou (como o desrespeito e provocações explícitas às orientações sanitárias do próprio governo), sem contar o suporte efetivo que deu no caso do porteiro, ao requisitar que ele fosse investigado pela prática de crime contra o presidente, antes mesmo que o inquérito estivesse concluído.
Na reunião, Moro jogou para uma suposta plateia. De braços cruzados e cara emburrada, fitou a câmara várias vezes. Falou o mínimo possível, coisas sem importância, mas viu o desfiar de ilegalidades sem fazer qualquer observação. Permaneceu impassível mesmo quando Abraham Weintraub chamou os ministros do Supremo Tribunal Federal de vagabundos e diz que deveriam ser os primeiros a serem presos. Todo o apreço pelo Judiciário não mereceu uma única réplica.
A maioria dos líderes políticos mundiais cresceu em popularidade na pandemia, porque a tragédia é um momento propício para a solidariedade. Liderar o país na adversidade constantemente é objeto de reconhecimento. O medo convida à união e as críticas partidárias costumam ser tratadas como mero oportunismo.
Não por aqui.
O governo quer aproveitar a pandemia para realizar a sua própria pauta. As vítimas que lutem, enquanto o presidente e os ministros estão obcecados pelo desmatamento, privatização, legalização de cassinos, fortalecimento das milícias e outros acobertamentos.
A cereja do bolo não foi dita, mas é um pressuposto. A pandemia dificulta o impeachment, portanto, contraditoriamente, é um mecanismo de sobrevivência.
Não é a toa que o Brasil se transformou no novo epicentro da pandemia, batendo recorde atrás de recorde, superando mil mortes todo dia, e se preparando, com a intensa interiorização da doença e o previsível colapso da rede de saúde, para atingir a liderança absoluta da morte no mundo.
Não tenho dúvida que muitos vão celebrar este feito.
Para usar a expressão de Bolsonaro que bem resume o espírito da reunião: “o que os caras querem é nossa hemorroida”.
MARCELO SEMER é juiz de direito e escritor. Doutor em criminologia pela USP, é membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia

sábado, 23 de maio de 2020

Ives Gandra está errado: o artigo 142 não permite intervenção militar!


Ives Gandra está errado: o artigo 142 não permite intervenção militar!

 

Prefiro pecar pelo excesso. Até porque circula nas redes (sempre elas) matéria de O Globo de 2018 (aqui) na qual o General Mourão, nosso vice-presidente, falava do malsinado artigo 142 da Constituição. E ele dá ao artigo 142 da CF a interpretação que o estimado professor Ives Gandra vem dando.
Por isso, exercendo minha chatice epistêmica e o meu zelo democrático, volto ao assunto. Pela quarta vez. Retomo o tema também porque jornalistas, jornaleiros, juristas e militares parecem não saber o que é interpretação do Direito.
Há limites na interpretação. Não podemos, no Direito, agir como o personagem Humpty Dumpty (imagem acima da capa do livro Alice Através do Espelho) e dizer: “— eu dou ao artigo 142 da CF o sentido que quero”.
Lembra o jurista Michael Stolleis que, quando da edição das leis de Nuremberg, em 1935, os nazistas utilizaram-se exatamente do sistema jurídico como ferramenta de poder, fazendo com que ele fosse nada mais que um instrumento do Führer e seus objetivos. Instrumentalizam as leis e a Constituição. Aplicação da lei aos objetivos do regime. Qual é o ponto? Exatamente a expressão utilizada por Michael Stolleis1, que o faz recorrendo à obra de Bernd Rüthers, para definir o que ocorreu naquele período: a interpretação do Direito não fora constrangida (limitada). E cita o livro de Rüthers, denominado justamente Die unbegrenzte Auslegung uma interpretação não-constrangida.2 No Brasil isso pode se encaixar perigosamente como uma luva.
Por isso, insisto: a interpretação dada por Ives Gandra ao artigo 142 da CF aqui no Conjur (há também um vídeo que circula nas redes) é, sendo um pouco eufemista e generoso com o estimado Professor paulista, muitíssimo perigosa. Para ele, as forças armadas poderiam intervir para restaurar a ordem democrática. Todavia, o que diz o artigo 142?
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Não encontrei aquilo que Gandra quis mostrar. Aliás, o artigo cheirou a uma ameaça ao STF, do tipo “cuidado com as decisões, porque isso pode dar problema”. Permito-me, com toda lhaneza, dizer: isso não é adequado em termos acadêmicos.
O pior de tudo é termos que insistir no fato de que a interpretação do Direito não comporta relativismos. Ora, se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais Poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Seria um haraquiri institucional.
Ou seja, as interpretações simplificadoras-distorcidas do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. O artigo 142 não permite intervenção militar. Qualquer manual de direito constitucional ensina o que é o princípio da unidade da Constituição. Por qual razão o constituinte diria que todo poder emana de povo, com todas as garantias de sufrágio etc. e, de repente, dissesse: ah, mas as forças armadas podem intervir a qualquer momento, como uma espécie de “poder moderador”.
Como funciona essa Unidade da CF? Simples. O artigo 142 diz que As Forças Armadas, sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Pois bem. O dispositivo trata simplesmente da exceção na missão das FA, isto é, elas — as forças armadas — podem ser usadas também na segurança pública. Nada mais do que isso!
E tem mais uma coisa: para que as FA possam ser usadas na segurança pública, têm vários requisitos. Isso se depreende dos artigos 34, III, 136 e 137 da CF. Na verdade, essa “intervenção das FA” está já regulamentada pela GLO, que tem justamente o nome de Garantia da Lei e da Ordem, bem assim como diz o artigo 142 (basta ver a LC 97/99 e o Decreto 3.897). Simples assim. Ademais, há sempre possibilidade de rigoroso e amplo controle legislativo e jurisdicional. Basta ler, com boa vontade, os dispositivos. Portanto, não basta “chamar as FA” para intervirem, como querem fazer notar Ives Gandra, Mourão e alguns outros políticos e pessoas da área jurídica.
Portanto, muita calma na interpretação da Constituição. Quando o personagem Humpty Dumpty disse à Alice que ela poderia ter “364 desaniversários” em vez de um aniversário e, assim, receber 364 presentes em vez de apenas um, Alice respondeu: não pode ser assim. E deve ter brandido a Constituição do reino nas barbas de Humpty Dumpty. Na “Constituição” do reino de Alice estava escrito que cada habitante tem só um aniversário por ano.
Recuperando o sentido original do diálogo de Alice com Humpty Dumpty:
“— Quando eu uso uma palavra — disse Humpty Dumpty num tom escarninho — ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique ... nem mais nem menos.
— A questão — ponderou Alice — é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes”.

Por aqui, no reino brasileiro, temos de repetir que x é x. Por quê? Porque parte da comunidade jurídica pensa que se pode dar às palavras o sentido que bem pretender.

1 STOLLEIS, Michael. The Law Under the Swastika: Studies on Legal History in Nazi Germany. Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 8.
2 Ver meu Dicionário de Hermenêutica, verbete Constrangimento Epistemológico.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Gana de Bolsonaro armar 'todo mundo' vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia


Gana de Bolsonaro armar 'todo mundo' vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia

Vídeo mostrou reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos

Ninguém, nem o próprio Bolsonaro, sabia que nele se escondia, até agora, uma vontade stalinista de exterminar fisicamente os ricos e os bem remediados. Sabê-lo foi, a meu ver, o mais importante efeito do vídeo —liberado em decisão retilínea do decano Celso de Mello no Supremo— da reunião de gente do governo. Como ato, a reunião está acima e abaixo de qualquer qualificativo.
A exibição justificou a expectativa, mas não pelo pretendido esclarecimento entre as versões de Bolsonaro e Moro sobre manipulações do primeiro na Polícia Federal. Tivemos o privilégio de ver e ouvir um fato, mais do que sem precedente, sem sequer algo assemelhado no que se sabe dos 520 anos brasileiros.
Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos como o então ministro Nelson Teich. E alguém que se divertiu, sem dar descanso ao ríctus irônico, às vezes insuficiente para deter o sorriso —o vice Mourão, um general, ora veja, com senso de humor.

A exibição do ambiente de alta cafajestada, enfeitado pelo idioma doméstico de Bolsonaro, seguiu-se a uma sessão preparatória, da lavra do general Augusto Heleno e convalidada pelos generais palacianos. Resumido de corpo e ressentido típico, Augusto Heleno é dos que não falham: onde esteja, sua soma de arrogância e agressividade frutificará em problemas.
Exemplo definitivo: sua única missão propriamente militar levou a ONU ao ato inédito de pedir ao governo brasileiro a sua retirada do Haiti, onde manchou com operações desastradas e numerosas mortes o comando brasileiro de uma força internacional contra a violência local.
A nota de Augusto Heleno contra Celso de Mello e o Supremo é uma dupla consagração da ignorância que nunca deveria estar no generalato. Nesse nível, tomar uma tramitação judicial corriqueira por uma medida “inaceitável e inacreditável”, de “consequências imprevisíveis” sobre a “estabilidade nacional”, é ameaça criminosa. Essas consequências silenciadas por covardia resumem-se a uma, que conhecemos. Por um acaso preciso, apenas horas antes da nota obtusa e ameaçadora a Folha trazia este título: “Militares não vão dar golpe no país”. Nota e declaração do general Augusto Heleno.

O vídeo não nega, nem reforça, a intenção de manipular a PF, já clara em fatos anteriores e posteriores à reunião. Mas o confessado propósito de proteção policial também para amigos, além de familiares, não é bondade ilegal de Bolsonaro. É necessidade e recado.
Com dois balaços, o capitão PM Adriano Nogueira deixou de ser amizade preocupante, mas para o sumido Fabrício Queiroz, e sabe-se lá para quantos outros, continua a preocupação protetora e mútua. Isso vale vidas, em meios peculiares como milícias, gangues e tráficos.
As vidas que nada valem são outras. “Eu quero todo mundo com arma!”, “eu quero todo brasileiro armado!”, “eu quero o povo armado!”, berrou o chefe aos seus generais impassíveis e paisanos desossados.

Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta.
Em quase três décadas no Congresso e ano e meio com o título de presidente, Bolsonaro só teve atos e posições prejudiciais aos assalariados, aos trabalhadores aposentados, aos que sobrevivem do trabalho informal —à larga maioria brasileira, ao povo.
Para isso tem Paulo Guedes na orientação do que pode fazer para destruir os ralos programas sociais, a educação, o arremedo de assistência à saúde. A gana de armar “todo mundo” não vem de insuspeitada e extremada revolta de Bolsonaro com a desumanidade dominante no Brasil. Vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia, até mesmo por meio de um vírus.
O desespero de Bolsonaro por certo corresponde à gravidade do que teme, se levadas com decência as investigações que o envolvam e a seus filhos maiores. Daí que a figura de Bolsonaro no vídeo seja a de quem não está longe da implosão.​
  • quarta-feira, 13 de maio de 2020

    Toffoli dança com Regina Duarte no precipício


    Toffoli dança com Regina Duarte no precipício

    Do STF deve brotar juízo jurídico corajoso, não acordos de pacificação

    Conrado Hübner Mendes

  • Entre a falta de ideia e a má ideia, Toffoli costuma preferir a má ideia. Essa é a marca que ficará de sua gestão histórica na presidência do STF. Histórica porque desprovida de direção e de apego à independência institucional. Ou porque a ausência de vigor moral e intelectual restará como exemplo a nunca ser seguido.
    São muitas as más ideias de Toffoli. Funcionam tão bem quanto a cloroquina contra o coronavírus ou a camisa de força militar contra os instintos primitivos de Bolsonaro. Gozam de respeito equivalente na comunidade dos pares.

    No plano das ideias, Toffoli recita desde sua posse um coquetel de palavrinhas mágicas: o STF como “poder moderador”, numa “nova separação de Poderes”, onde prevalece o “diálogo”, dentro de um “pacto republicano”, contra a “excessiva judicialização”.
    Na prática, Toffoli inventa delegacia de polícia contra fake news num gabinete do tribunal e se atribui poder de cassação de liminar monocrática de colega; hospeda generais em seu gabinete; frequenta bastidores dos poderes político e econômico e lá faz consultoria de constitucionalidade e promessas em nome do tribunal, coisa que foge de sua competência. Tenta cumprir essas promessas oficiosas obstruindo a pauta da corte.
    Bom jurista sabe fazer as distinções que importam, separa alho de bugalho e junta lé com cré. Mau jurista se esbalda na eloquência dos conceitos abstratos e fica lá embriagado. Não suja as mãos para conectar aquelas abstrações às nuances dos casos reais. Para o mau jurista, “tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado”. Assim Machado de Assis retratou o medalhão. Toffoli é deste tipo e compensa o vácuo pelo gogó.
    Para ele, não há diferença entre o Porta dos Fundos fazer sátira e o governo celebrar golpe militar, tortura e torturador. Tudo cabe na caixinha indistinta da liberdade de expressão. Tirou da cartola a liberdade de expressão do Estado, que seria igual a do indivíduo. Na sua sensibilidade libertária, dá na mesma, Estado e indivíduo são livres para falar. “Vambora pra frente, sempre houve tortura, por que olhar pra trás”, disse-lhe Regina no ouvido.
    Toffoli também aprendeu que liberdade de expressão “tem limites”. Por isso abriu inquérito extravagante, indicou sem sorteio colega de tribunal para delegado e disse que fake news é abuso. Concordamos, um abuso. Mas se quiser saber como se define fake news e o papel judicial a respeito, melhor não perguntar para ele.
    Segundo Toffoli, juiz deve negociar. Negocia constitucionalidade e até mesmo a história. Se for para acalmar generais, vale dizer que em 1964 houve um “movimento”, não golpe ou revolução. Entre dois extremos, acha um meio-termo. Eureka! E se bobear, vai citar Aristóteles para justificar a busca do meio como virtude.
    Salpicar lugares comuns sobre Aristóteles no meio das frases (ou Hannah Arendt, ou Lévi-Strauss, ou qualquer nome do abecedário do pensamento, tanto faz) é a marca do bacharel.
    O STF não é poder moderador, instituição que existia na Constituição do Império. Nem na aparência. É uma casa de deliberação constitucional onde se deve tecer jurisprudência para solucionar casos de hoje e de amanhã em coerência com casos de ontem. Mas o ônus da coerência jurídica é para os fracos, Toffoli deve pensar.
    “Poder moderador” é uma analogia anacrônica e conceitualmente imprópria da imaginação jurídica brasileira. É condescendente com a subjugação do direito constitucional. Toffoli se apropriou dela para se livrar do peso de respeitar a Constituição. Para se respeitar a Constituição, não basta mencionar a Constituição. A analogia é também irônica, dada a irreparável vocação tensionadora do STF.
    Do STF deve brotar juízo jurídico ponderado e corajoso, não acordos de pacificação entre as partes. Para isso, melhor chamar o Celso Russomanno. Ou o centrão, com quem a magistocracia tem tanta afinidade de princípio e de espírito.

    Conrado Hübner Mendes
    Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

    quarta-feira, 6 de maio de 2020

    Guia prático para defender o STF


    Guia prático para defender o STF

    Se ministros não ajudam tribunal a sobreviver, ajuda externa não vai bastar

    Conrado Hübner Mendes
  • Bolsonaro reitera toda semana a intenção de fechar o STF (e o Congresso, as investigações de corrupção, as liberdades civis etc.). Era o que pediam apoiadores que chutavam jornalistas e agrediam profissionais de saúde na frente do Palácio do Planalto. Até profissionais de saúde. Numa pandemia.
    “Fechar”, você sabe, é uma metáfora. O novo AI-5 é uma metáfora. Os meios operam nas sombras enquanto o bufão nos ofende e nos furta a serenidade. A leitura do que se passa exige mais atenção. Os tempos são outros e nos porões já se veste terno e gravata.
    O tribunal vai fechando enquanto ministros cantam suas virtudes e asseguram não haver risco de ruptura. O tribunal vai fechando enquanto esperamos o cabo e o soldado. A Polícia Federal acabou de fechar e poucos notaram. Rio das Pedras celebrou. A Procuradoria-Geral da República fechou faz tempo. Ibama e Funai fecharam.
    É preciso proteger o STF contra as ameaças de uma pessoa pública infame que há 30 anos viola a lei sem maiores consequências. Aprendeu tão bem que, na Presidência, comete crimes comuns e de responsabilidade. Mas também é urgente defender o STF de alguns dos ministros e seus maus costumes.
    Bolsonaro não pode abrir mão de um tribunal, desde que fraco e servil. Um tribunal que Dias Toffoli se dispôs a entregar quando rabiscou em poucas linhas o retorno à “clássica separação dos Poderes”, uma teoria cheia de garranchos que lhe autoriza a frequentar bastidores do Planalto e negociar constitucionalidade. Resolver “pelo diálogo”, como diz.
    Um guia prático para defender o STF é, entre outras coisas, um guia de bom comportamento para ministros do STF. Bom comportamento não é só mandamento de ética judicial, é estratégia de sobrevivência. E sobreviver não é deferir à vontade dos outros, é reforçar cada vértebra do projeto constitucional.
    Alguns ministros perdem a democracia mas não perdem a chance de soltar uma monocrática; de palestrar sobre segurança jurídica e contribuir para um tribunal promotor de insegurança; de palestrar em defesa das reformas quando lhes cabe apreciar a constitucionalidade das reformas; de oferecer opiniões privilegiadas em eventos com empresários interessados nas posições do STF; de confundir a instituição judiciária com a corporação magistocrática.
    Fosse só violação da ética judicial, seria muito grave. Só que é também imprudência política. A promiscuidade e a vocação monocrática reduzem a capacidade de o tribunal se fazer respeitar, mesmo quando acerta.
    O país precisa conhecer a opinião do STF, não do ministro fulano ou beltrano. Não são a mesma coisa. Essa contenção individual não se confunde com contenção do tribunal, que deve interferir o quanto for juridicamente exigível. E não banalizemos a expressão “ativismo judicial”, um conceito vazio que mais atrapalha do que ajuda na análise do tribunal.
    Entrar em modo emergência começa por aí: despersonalizar a corte. Isto é, tratar o colegiado como regra, não como exceção. E a agenda do colegiado não pode pertencer ao arbítrio do presidente da corte, mas a um procedimento também colegiado.
    Errar e acertar é da vida das instituições. O boicote contumaz à autoridade do tribunal, não. Exceto das instituições suicidas. Difícil perdoar ministro que põe tudo a perder na tentativa de matar no peito e resolver sozinho, nessa lógica obtusa pela qual o STF vem funcionando há anos.
    Vão esperar o cabo para disparar o alarme? Ou só quando o soldado chegar para trancar a porta? “Cabo e soldado” é figura de linguagem que se refere a vocês mesmos, ministros. Aqui de fora, muitos tentam ajudar. Ajudar a corte é a parte que lhes cabe.
    Nem sempre a força respeita o que a lei proíbe. Foi o que Bolsonaro quis dizer quando falou que vai “cumprir a Constituição a qualquer preço”. Mais um aviso. “A Constituição sou eu.” Precisa ser mais claro?

    Conrado Hübner Mendes
    Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

    Ataques do Bolsonazo à imprensa passam de 'arroubos' a tática consciente




    Ataques do Bozonaro à imprensa passam de 'arroubos' a tática consciente

    Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas


    Rodrigo Guimarães Nunes
    Já se observou que a política brasileira hoje é algo entre “Sexta-Feira 13” e “Feitiço do Tempo”. Os domingos são nosso Dia da Marmota, o momento pré-agendado para que o presidente apareça com apoiadores para defender uma ruptura da ordem institucional que renegará no dia seguinte, mas dali a dois dias sugerirá de novo.
    Quando as referências ao nazismo provocaram a demissão do secretário da Cultura Roberto Alvim, comentei nesta Folha que ele caíra não por suas preferências políticas, mas por ser pego manifestando-as. A punição não fora pelo conteúdo de sua performance, mas porque ele perdera a mão num jogo que praticamente todo o entorno de Jair Bolsonaro joga diariamente há tempos.
    Houve quem entendesse “perder a mão” como uma minimização do ocorrido, mas o sentido era outro.
    Tratava-se de indicar que, nesta série de repetições, não estamos lidando com “arroubos” que serão depois “corrigidos” “quando a cabeça esfriar”, mas com uma tática consciente que se aproveita da disposição dos outros de seguir tratando tais momentos como exceções para continuar disseminando sua mensagem.
     
    Os compartilhamentos indignados na internet, os editoriais e as notas oficiais de repúdio não impõem limites a este mecanismo, eles são parte já contabilizada do mesmo. Se a grita for alta, basta emitir um desmentido ou queixar-se das más interpretações —e voltar à carga dias depois.
    O erro de Alvim foi ter ido tão longe que deixou de ser possível fingir que ele se excedera ou enganara. Ele quebrou o pacto de plausibilidade que permite que um lado finja não querer dizer aquilo que efetivamente diz enquanto o outro finge acreditar quando eles pedem desculpas; ele não ajudou as instituições a ajudá-lo.
    A questão é: se cada vez mais gente sabe que esta é a natureza da brincadeira, por que continua brincando?
    A pergunta tem voltado com força porque o tom e a a frequência dos “arroubos” vindos do Palácio do Planalto têm subido a olhos vistos. Especialmente em relação à imprensa, já que, nos últimos três dias apenas, vimos um jornalista agredido por uma turba bolsonarista e o próprio Bolsonaro atacar a Folha e um de seus funcionários.
    Uma primeira resposta poderia apontar para a “falha no sistema” que a extrema direita aprendeu a explorar. Nas vacas magras do jornalismo contemporâneo, conteúdo “polêmico” (preconceituoso, calunioso, falso etc.) vende, e quem oferecer este tipo de conteúdo receberá cobertura midiática grátis.
    Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas, e uma indústria para prover este serviço em troca de cliques e publicidade. Isto faz com que, em países onde a extrema direita avança, a imprensa se comporte como um viciado, incapaz de dizer não àquilo que sabe poder matá-lo.
    É uma escolha difícil, entre o imperativo do lucro e o instinto de autopreservação. Mas assim como o problema do viciado é confiar que com ele será diferente, talvez falte às empresas de comunicação convencer-se que os riscos são reais e seu status atual não necessariamente as protegerá da degradação do ambiente democrático.

    Só isto explica que as Redações ainda não tenham tornado obrigatórias medidas que têm se tornado mais comuns nos últimos tempos. Medidas como jamais dar o título (que todos leem) para uma afirmação falsa que será desmentida no corpo do texto (que pouca gente lê) sem deixar clara sua falsidade.
    Ou como nunca divulgar o “outro lado” de um debate sem deixar claro, quando for o caso, que trata-se de uma posição minoritária, desacreditada pela maioria dos membros de uma comunidade de pares, alvo de críticas e suspeitas etc.
    O dever jornalístico de oferecer todos os ângulos não pode dar peso igual àquilo que é praticamente consenso e o que é erro ou fabricação.
    Mas talvez seja hora de um pouco mais de ousadia. Circulou recentemente no Twitter que diversas redes de TV nos EUA haviam decidido não mais divulgar os pronunciamentos do presidente Donald Trump sobre a Covid-19 por entender que isto deixara de ser de interesse público.
    Ironicamente, a notícia era falsa, embora baseada no fato que muitas emissoras não dão espaço ao vivo ao presidente sem checadores à mão.
    Mas ela gera um bom experimento de pensamento, especialmente quando um estudo aponta correlação entre declarações de Bolsonaro e a queda de adesão à quarentena. E se os principais meios de comunicação deixassem de cobrir o “cercadinho” do Alvorada? E se decidissem parar de divulgar afirmações que servem para criar confusão e diminuir a eficácia das medidas sanitárias já tomadas?
    O crescimento recente da extrema direita repete um padrão observado nos anos 1930: uma grande crise financeira seguida por uma crise de legitimidade em que as elites, incapazes de chegar ao poder com forças políticas próprias, se convencem que podem usar a extrema direita contra a esquerda e a favor de seus privilégios.
    Sabemos como a história acabou da primeira vez: as elites só descobriram tarde demais que eram elas que estavam sendo usadas.
    Penso nisso sempre que, diante do último abuso de poder do atual governo, os jornais se contorcem para encontrar equivalente nos governos do PT e reforçar a ideia de uma polarização simétrica entre esquerda e extrema direita.
    Não percebem que estão reforçando a narrativa bolsonarista na qual tudo, inclusive o ataque à imprensa e às liberdades democráticas, se justifica contra uma ameaça fantasma comunista? Ou acreditam poder seguir explorando-a indefinidamente? Espero que em breve não descubramos da pior maneira que estavam errados.

    Rodrigo Guimarães Nunes
    Professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio