Ataques do Bozonaro à imprensa passam de 'arroubos' a tática consciente
Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas
Rodrigo Guimarães Nunes
Já se observou que a política brasileira hoje é algo entre “Sexta-Feira 13” e “Feitiço do Tempo”.
Os domingos são nosso Dia da Marmota, o momento pré-agendado para que o
presidente apareça com apoiadores para defender uma ruptura da ordem
institucional que renegará no dia seguinte, mas dali a dois dias
sugerirá de novo.
Quando as referências ao nazismo provocaram a demissão do secretário da Cultura Roberto Alvim, comentei nesta Folha que ele caíra não por suas preferências políticas, mas por ser pego manifestando-as. A punição não fora pelo conteúdo de sua performance, mas porque ele perdera a mão num jogo que praticamente todo o entorno de Jair Bolsonaro joga diariamente há tempos.
Houve quem entendesse “perder a mão” como uma minimização do ocorrido, mas o sentido era outro.
Tratava-se de indicar que, nesta série de repetições, não estamos
lidando com “arroubos” que serão depois “corrigidos” “quando a cabeça
esfriar”, mas com uma tática consciente que se aproveita da disposição
dos outros de seguir tratando tais momentos como exceções para continuar
disseminando sua mensagem.
Os compartilhamentos indignados na internet, os editoriais e as
notas oficiais de repúdio não impõem limites a este mecanismo, eles são
parte já contabilizada do mesmo. Se a grita for alta, basta emitir um
desmentido ou queixar-se das más interpretações —e voltar à carga dias
depois.
O erro de Alvim foi ter ido tão longe que deixou de ser possível fingir que ele se excedera ou enganara. Ele quebrou o pacto de plausibilidade que permite que um lado finja não querer dizer aquilo que efetivamente diz enquanto o outro finge acreditar quando eles pedem desculpas; ele não ajudou as instituições a ajudá-lo.
A questão é: se cada vez mais gente sabe que esta é a natureza da brincadeira, por que continua brincando?
A pergunta tem voltado com força porque o tom e a a frequência dos “arroubos” vindos do Palácio do Planalto têm subido a olhos vistos. Especialmente em relação à imprensa, já que, nos últimos três dias apenas, vimos um jornalista agredido por uma turba bolsonarista e o próprio Bolsonaro atacar a Folha e um de seus funcionários.
Uma primeira resposta poderia apontar para a “falha no sistema” que a extrema direita aprendeu a explorar. Nas vacas magras do jornalismo contemporâneo, conteúdo “polêmico” (preconceituoso, calunioso, falso etc.) vende, e quem oferecer este tipo de conteúdo receberá cobertura midiática grátis.
Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas, e uma indústria para prover este serviço em troca de cliques e publicidade. Isto faz com que, em países onde a extrema direita avança, a imprensa se comporte como um viciado, incapaz de dizer não àquilo que sabe poder matá-lo.
É uma escolha difícil, entre o imperativo do lucro e o instinto de autopreservação. Mas assim como o problema do viciado é confiar que com ele será diferente, talvez falte às empresas de comunicação convencer-se que os riscos são reais e seu status atual não necessariamente as protegerá da degradação do ambiente democrático.
Quando as referências ao nazismo provocaram a demissão do secretário da Cultura Roberto Alvim, comentei nesta Folha que ele caíra não por suas preferências políticas, mas por ser pego manifestando-as. A punição não fora pelo conteúdo de sua performance, mas porque ele perdera a mão num jogo que praticamente todo o entorno de Jair Bolsonaro joga diariamente há tempos.
Houve quem entendesse “perder a mão” como uma minimização do ocorrido, mas o sentido era outro.
O erro de Alvim foi ter ido tão longe que deixou de ser possível fingir que ele se excedera ou enganara. Ele quebrou o pacto de plausibilidade que permite que um lado finja não querer dizer aquilo que efetivamente diz enquanto o outro finge acreditar quando eles pedem desculpas; ele não ajudou as instituições a ajudá-lo.
A questão é: se cada vez mais gente sabe que esta é a natureza da brincadeira, por que continua brincando?
A pergunta tem voltado com força porque o tom e a a frequência dos “arroubos” vindos do Palácio do Planalto têm subido a olhos vistos. Especialmente em relação à imprensa, já que, nos últimos três dias apenas, vimos um jornalista agredido por uma turba bolsonarista e o próprio Bolsonaro atacar a Folha e um de seus funcionários.
Uma primeira resposta poderia apontar para a “falha no sistema” que a extrema direita aprendeu a explorar. Nas vacas magras do jornalismo contemporâneo, conteúdo “polêmico” (preconceituoso, calunioso, falso etc.) vende, e quem oferecer este tipo de conteúdo receberá cobertura midiática grátis.
Há um público para se comprazer ou se indignar diariamente com declarações de Bolsonaro e seus asseclas, e uma indústria para prover este serviço em troca de cliques e publicidade. Isto faz com que, em países onde a extrema direita avança, a imprensa se comporte como um viciado, incapaz de dizer não àquilo que sabe poder matá-lo.
É uma escolha difícil, entre o imperativo do lucro e o instinto de autopreservação. Mas assim como o problema do viciado é confiar que com ele será diferente, talvez falte às empresas de comunicação convencer-se que os riscos são reais e seu status atual não necessariamente as protegerá da degradação do ambiente democrático.
Só isto explica que as Redações ainda não tenham tornado obrigatórias medidas que têm se tornado mais comuns nos últimos tempos. Medidas como jamais dar o título (que todos leem) para uma afirmação falsa que será desmentida no corpo do texto (que pouca gente lê) sem deixar clara sua falsidade.
Ou como nunca divulgar o “outro lado” de um debate sem deixar claro, quando for o caso, que trata-se de uma posição minoritária, desacreditada pela maioria dos membros de uma comunidade de pares, alvo de críticas e suspeitas etc.
O dever jornalístico de oferecer todos os ângulos não pode dar peso igual àquilo que é praticamente consenso e o que é erro ou fabricação.
Mas talvez seja hora de um pouco mais de ousadia. Circulou recentemente no Twitter que diversas redes de TV nos EUA haviam decidido não mais divulgar os pronunciamentos do presidente Donald Trump sobre a Covid-19 por entender que isto deixara de ser de interesse público.
Ironicamente, a notícia era falsa, embora baseada no fato que muitas emissoras não dão espaço ao vivo ao presidente sem checadores à mão.
Mas ela gera um bom experimento de pensamento, especialmente quando um estudo aponta correlação entre declarações de Bolsonaro e a queda de adesão à quarentena. E se os principais meios de comunicação deixassem de cobrir o “cercadinho” do Alvorada? E se decidissem parar de divulgar afirmações que servem para criar confusão e diminuir a eficácia das medidas sanitárias já tomadas?
O crescimento recente da extrema direita repete um padrão observado nos anos 1930: uma grande crise financeira seguida por uma crise de legitimidade em que as elites, incapazes de chegar ao poder com forças políticas próprias, se convencem que podem usar a extrema direita contra a esquerda e a favor de seus privilégios.
Sabemos como a história acabou da primeira vez: as elites só descobriram tarde demais que eram elas que estavam sendo usadas.
Penso nisso sempre que, diante do último abuso de poder do atual governo, os jornais se contorcem para encontrar equivalente nos governos do PT e reforçar a ideia de uma polarização simétrica entre esquerda e extrema direita.
Não percebem que estão reforçando a narrativa bolsonarista na qual tudo, inclusive o ataque à imprensa e às liberdades democráticas, se justifica contra uma ameaça fantasma comunista? Ou acreditam poder seguir explorando-a indefinidamente? Espero que em breve não descubramos da pior maneira que estavam errados.
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