vladimir safatle
ESTE GOVERNO TEM DE CAIR. PRESERVÁ-LO É SER CÚMPLICE
Na última 6ª feira (19), a imprensa noticiou que um homem, um idoso morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina.
O homem
apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca
disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele
morreu de parada cardíaca.
Sua
foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se
consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável
por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si
um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de
aberração.
O homem
em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de
Teresina, o Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer
dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama.
Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: um homem, um idoso.
Não teve direito à descrição de sua luta pela vida, nem da dor em entes queridos. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, um homem não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero.
Dele,
vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma
enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no
chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade
entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade
hospitalar.
Enquanto um homem morria
no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando
para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da
cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio ou medidas duras caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados.
Não
se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de
combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais
da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora
fornecidas a menos de 5% da população geral.
Tratava-se,
na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para
preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do
que ocorreu em Teresina com um homem.
Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma
ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.
Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio.
Ou
seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e
dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária
cujo foco principal são as classes vulneráveis do país.
Um
governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas
que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos
serve goela abaixo.
Não por outra razão, genocídio apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.
Um
governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a
mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será
insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não
sair do poder mesmo se perder a eleição.
Vimos
isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário
ainda pior, já que este é um governo das Forças Armadas.
Cabe
a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e
mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal,
gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim
como a estrutura que o suportou e ainda o suporta.
"toda ação contra um governo ilegítimo é legítima" |
A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias.
Um
governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que
trabalha deliberadamente para aprofundar a catástrofe não pode ser
preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age
para fortalecer aqueles que nos atacam.
Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição.
Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que um homem morra
no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita
de forma reiterada, perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto
algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação
legítima.
Na
verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição
farsesca cujos capítulos agora vêm a público. Uma eleição baseada no
afastamento e prisão do candidato indesejável através de um processo no qual se forjaram até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram.
Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem, influenciando as eleições.
Há
um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de
Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que,
ao contrário, era momento de o Brasil unificar-se diante dos desafios
da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a
vida política nacional, entre outros.
Um
ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira
crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a
pandemia com Bolsonaro no governo.
Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.
A
primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja
derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não
procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que
compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas
ações produzem a morte em massa da população.
Há
um setor da população brasileira, envolto numa identificação de tal
ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já
deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro.
Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia. (por Vladimir Safatle, no jornal global El Pais)
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