Um juiz parcial e o país destruído
por Mário Montanha Teixeira filho
Juiz que não tenha condição de apreciar uma causa com imparcialidade precisa ser substituído por outro juiz. Esse mandamento, simples em sua formulação, está nas leis processuais, e pretende garantir ao cidadão comum julgamento não contaminado por motivações subjetivas. Uma das alternativas previstas no Código de Processo Penal para evitar limites indevidos ao direito de defesa está no artigo 254, que determina que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes”, […] “se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles” (inciso I), ou “se tiver aconselhado qualquer das partes” (inciso IV).
Percebe-se, então, que, ao reconhecer a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá, no dia 23 de março, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou o óbvio: a condenação de Lula estava acertada previamente, fossem quais fossem as provas obtidas no curso da ação criminal. Moro foi suspeito desde o início, mesmo antes da exibição grotesca da peça de acusação elaborada pelo chefe da Lava Jato, o procurador da República Deltan Dallagnol, em 2016, que reuniu em “powerpoint” os principais fundamentos da sentença que determinou a prisão de quem se apresentava como candidato a presidente da República em 2018.
A construção da imagem da dupla Moro & Dallagnol como salvadora da pátria, alimentada por setores da imprensa interessados em golpear o resultado das eleições de 2014, valeu-se de técnicas de convencimento que confundiram processo penal com disputa esportiva ou trama de revista em quadrinhos. Moro apareceu ao grande público como enxadrista hábil e capaz de encurralar seu oponente com movimentos estratégicos fatais. Ou como lutador de boxe a massacrar um adversário cambaleante. Também lhe emprestaram a fantasia de super-homem, guardião da justiça, defensor do “povo”, ou de um Batman tropical acompanhado do amigo Robin, vulgo Dallagnol.
Inacreditavelmente, a distorção que colocou em cantos opostos um juiz e o “seu” réu, sobre o qual exerceu poderes coercitivos extravagantes, foi aclamada como símbolo do combate à corrupção. A mídia e as instituições “que funcionam” não apenas sustentaram esse desequilíbrio processual – essa mentira, seria mais correto dizer –, mas exigiram dos atores da farsa judiciária vereditos imediatos e eficazes. Receberam o que queriam, e o País, livre do “perigo vermelho”, ficou com Bolsonaro, de quem Moro se aproximou para virar ministro, com a promessa de um cargo vitalício – que não veio – no STF.
Para quem teve a curiosidade de ler a sentença de Moro que provocou a prisão de Lula, fica fácil notar, desde a primeira linha dos 962 parágrafos distribuídos em 218 páginas de um texto repetitivo e truncado, que a condenação havia sido decidida externamente aos autos, inspirada em razões de pouca juridicidade e muita ideologia.
O subscritor da peça condenatória, já então apontado como parcial pela defesa do réu, fez algum esforço retórico na tentativa de dizer que sempre agira com isenção, indicando estar melindrado – expressão de que parece gostar – com as dúvidas sobre sua conduta. Entre os parágrafos 58 e 152, arriscou explicações, como a que segue: “Na linha da estratégia da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva de desqualificação deste julgador, por aparentemente temerem (sic) um resultado processual desfavorável, medidas questionáveis foram tomadas por ela fora desta ação penal”. A realidade não era bem essa. Naquele momento, a defesa não temia o resultado desfavorável, mas tinha a certeza de que ele já estava decretado.
“Mais uma vez”, continuou Moro, “trata-se de mero diversionismo adotado como estratégia de defesa”. Isso porque, “ao invés de discutir-se o mérito das acusações, reclama-se do juiz e igualmente dos responsáveis pela acusação”. E mais: “Nesse contexto de comportamento processual inadequado por parte da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, é bastante peculiar a reclamação dela de que este julgador teria agido com animosidade contra os defensores em questão”.
Para desgosto do herói provinciano e especialista em platitudes, o tempo cuidou de revelar que foi ele, e não os advogados de Lula, o centro do que chamou de “comportamento processual inadequado”. Ao se prestar ao papel de inimigo do acusado, em troca de uma celebridade traiçoeira, o ex-juiz da ex-república de Curitiba contribuiu para a destruição das bases da frágil democracia brasileira. Essa interferência, admitida com excessiva demora pelo STF, reveste de gravidade excepcional os seus atos. Ao que tudo indica, mais do que impulsionado por preferências pessoais e políticas, Moro cumpriu funções ditadas por um esquema que tem outros responsáveis, acima dele na escala hierárquica do poder.
De toda essa tragédia-quase-burlesca, a figura do justiceiro desapareceu, abandonada num canto poeirento da história. Ficou o País devastado pelos delírios terraplanistas de um capitão feito presidente, agradecido aos bons préstimos da Lava Jato e de outras falsidades.
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