Tibau do Sul (RN) - Por que falamos tanto em igualdade e lutamos, com unhas e dentes, para sermos tratados de forma diferente? Bem, antes que a turma que tem problemas com interpretação de texto chie, vou ser mais explícito: todos nós somos diferentes e dessa diferença surge a graça de viver. Minha indagação se refere ao desejo tresloucadamente esquisito de ter privilégios e, consequentemente, de lutar para que seu grupo ou classe social os tenha.
Em outra vida, trabalhei com jornalismo de turismo. E essa discussão ganha contornos dramáticos nessa área. Pois há muitas belezas naturais tupiniquins que você só poderá ver, caro leitor, se tiver muito dinheiro no bolso. E não estou falando de passagens aéreas e hospedagem custosas. Entradas caras, taxas de permanência abusivas, taxas de visitação altas, monopólio na operação de determinado sítio de interesse – há várias formas de fazer com que só a “gente de bem” tenha acesso a certos patrimônios que, pelo menos em tese, pertencem à coletividade. Dessa forma, tornam-se destinos de luxo, quando não precisariam ser.
É mais ou menos o que acontece com uma roupa. Não importa que o seu preço de custo seja menor que um saquinho de jujubas coloridas, afinal foi produzida por escravos bolivianos. Coloca-se um preço de patê de foie gras a fim de que apenas um grupo social tenha acesso a ela, tornando-a exclusiva dele. Nós que trabalhamos com investigação de cadeias produtivas nos divertimos ao ver como o mesmo produto, com etiquetas diferentes, se torna xepa de baciada no Brás ou ícone fashion nos Jardins. E como tem gente com nariz empinado arrotando arrogância do alto de sua ignorância dentro de um roupa de jujubas…
Ou seja, com o preço lá em cima, afunila-se o acesso a um bem que se torna, por isso, posse de poucos. Pelo fato de estar na praia, me lembro de exemplos que envolvem água: Abrolhos (BA), Bonito (MS), Fernando de Noronha (PE), mas não só. Ah, japonês maluco, isso é uma forma de trazer renda para um lugar com baixo impacto para o meio, devido ao reduzido número de visitantes. Sou a favor de limitar o acesso de turistas de acordo com o plano de manejo estabelecido, mas radicalmente contra fazer isso de forma financeira. Até porque não significa que dinheiro venha junto com consciência ambiental. E, enfim, Mar, rios e parques nacionais pertencem à União. Eu, tu, eles, nós.
Antes do plano de manejo do Atol das Rocas, o único do Atlântico Sul, a 25 horas da costa do Rio Grande do Norte, ser aprovado em 2009, tentou-se incluir o turismo entre as atividades previstas para esse bercário de aves, mamíferos e quelônios, sistema frágil e extremamente relevante para a pesquisa e para o ecossistema marinho. Mas não um turismo qualquer e sim um “turismo diferenciado” (essa foi a expressão adotada), de pessoas com alto poder aquisitivo, que topassem pagar horrores para ir até lá. Felizmente a idéia de jerico foi derrubada, mas pode ser reincluída na revisão do plano em 2014.
Nesse caso, muita gente chiou. Gente que tem dinheiro e acha que pode comprar tudo, gente que trabalha para quem tem dinheiro e acha que tem a procuração para comprar tudo. Construiu uma pousada de luxo em uma área de preservação em Noronha? Sem problema, sou importante, amigo de gente importante. Dá-se um jeito. Se eu fosse um pé-rapado, erguendo a segunda laje no meu casebre na beira da Represa Billings aí eu teria com que me preocupar.
Lembrei-me com tudo isso do churrascão de “gente diferenciada”, protesto realizado em Higienópolis, organizado pelas redes sociais, contra declarações preconceituosas de membros da elite local insatisfeitos com os “impactos” da construção de uma estação do metrô no bairro rico. A idéia é a mesma: a separação do que é público e do que é privado desaparece para alguns mesmo que a lei estabeleça direitos iguais para todos os que nascem nesta porção de terra do planeta. O espaço que seria do coletivo se torna meu quintal ou meu jardim de inverno e posso decidir o que quiser sobre ele. Pô, afinal de contas, para que dou dinheiro para campanhas eleitorais?
Os mecanismos de desigualdade institucionalizada são sutis, mas existem aos borbotões. Se eu fosse vocês, brigava pelo direito de seus filhos terem acesso mais barato a aquilo que pertence a todos. E quando ninguém tiver acesso a um patrimônio natural por uma boa razão (e não estou falando do Zé Ninguém – que é como muitos de cima olham os de baixo), isso tem que significar ninguém mesmo. Mesmo o pessoal que paga preço de grife por calça diferenciada do Brás.
PS: Não gosto muito da idéia de ter heróis e segui-los. Acho que o Zé Ninguém, que mantém a família com um salário mínimo por mês, indo contra todas as previsões racionais, é quem mereceria ganhar uma medalha todos os dias. Mas há exceções. Sou fã do trabalho de Zélia Brito, funcionária pública e guardiã do Atol das Rocas há muitos anos. Acho, que outras pessoas deveriam ser. Nós da mídia somos muito bons em ajudar a construir heróis vazios, que se tornam referência por nadar rápido, chutar forte, dirigir veloz ou cantar mal (ganhando muito bem para isso), quando tem gente guiada pelo seu senso de Justiça, que toma conta do nosso futuro e é constantemente ameaçada por isso. Prometo voltar a escrever sobre ela aqui, mas tinha que deixar o registro.
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