Leitura partitiva?
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
A diminuição da taxa básica dos juros, na semana passada, deu o que falar. O resumo pode ser o seguinte: os suspeitos de sempre (os ligados à banca, como diria Elio Gaspari) acharam que o Copom arriscou demais ou que cedeu às pressões do governo. Ou as duas coisas. Os outros, não menos suspeitos (os ligados à indústria), acharam que o Copom fez bem. Até o Serra, em entrevista relativamente longa, apoiou a decisão (o que deixa os tucanos sem discurso ou Serra sem candidatura).
Curiosa é a posição dos jornais. Como quase sempre, eles fazem a liçãozinha de casa, ouvindo mais um lado do que outro (eles afagam seus especialistas, os suspeitíssimos de sempre!). Bem a sua maneira. A marca mais clara de seu ponto de vista é também a mais previsível: as manchetes sempre são contrárias à decisão do "governo" - do atual, pelo menos.
Exemplar é pequena matéria da Folha de S. Paulo (PODER A6, de 02/09/2011). A chamada é ECONOMISTAS CRITICAM BC E PREVEEM INFLAÇÃO MAIOR. O texto reproduz rapidamente todas as posições possíveis: contra a decisão, a favor da decisão, a favor com pedidos de melhores explicações, a favor desde houvesse desaceleração de fato (o economista em questão acha que não há; logo, é contra) etc. Então, por que a manchete é a que é, e não, por exemplo, ECONOMISTAS DIVERGEM SOBRE DECISÃO DO BC?
Se a manchete fosse essa, a Folha não seria a Folha (não sei se posso generalizar e dizer "mas então jornais não seriam jornais"). Pode ser que seja filosofia: alguém disse que imprensa é de oposição ou não é imprensa (se isso for verdade, durante muito tempo quase não tivemos imprensa no Brasil). Mas pode ser interesse circunstancial (água mole em pedra dura etc.).
Vou destacar um dado que me parece interessante, e que a Folha poderia invocar em sua defesa, contra minha tese. Como se deve (ou pode) ler a manchete, tal como está, ou seja, sem o artigo definido? É fato que, se o título fosse OS ECONOMISTAS etc. a interpretação de que se dá a entender que houve unanimidade contra a decisão do BC seria mais segura. Mas assim, sem artigo, de onde viria a interpretação universalizante?
O português não tem partitivo, como o francês (des économistes...), ou seja, uma marca gramatical que faz com que um nome se aplique apenas a parte de uma classe. Claro, temos os quantificadores (alguns, diversos, vários, muitos), mas isso é outra coisa. Aliás, o tal partitivo sobrevive, mas apenas marginalmente. Em "bebeu do vinho da adega" ou "comeu do pão da mamãe", esse "de" significa que não bebeu nem comeu todo o vinho ou todo o pão.
Mas como interpretar "bebeu (o) vinho da adega"? Eventualmente, imaginaremos que não se bebeu o vinho todo. Mas esta interpretação se deve provavelmente ao fato de que nunca imaginamos que uma adega guarde tão pouco vinho que alguém possa bebê-lo todo de uma vez.
"Economistas criticam" quer dizer "todos os economistas criticam"? Diria que a primeira interpretação é esta. Se não se evita a generalização, convida-se a fazê-la. Além disso, "cães ladram" quer dizer que todos os cães ladram (se X é cão, X ladra), e o mesmo vale para "presidentes erram", "reis dormem", "atletas sofrem".
Num texto, uma construção como "os economistas" se refere apenas aos já mencionados. Em "Conheço dois economistas e um arquiteto americanos. Os economistas são Chicago boys e estão andando para nossos problemas. Já o arquiteto parece mais interessado", "os economistas" são apenas os dois mencionados antes. Complicados são os casos em que uma afirmação aparece fora de qualquer texto. Valem os textos anteriores, dos dias e semanas, até de anos, passados?
Vou fazer perguntas aos amigos semanticistas. Enquanto isso, fico remoendo a pergunta: por que a manchete tem que ir em uma direção e a matéria em outra? Seria porque muita gente só lê manchetes?
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