Encalhe, destruição: a superprodução de livros no Brasil - A biblioteca de Raquel - Estadao.com.br
Encalhe, destruição: a superprodução de livros no Brasil
A reportagem de capa de hoje do Sabático começou a se desenhar muitos meses atrás na minha cabeça, ou, hm, talvez fosse melhor dizer que começou a se esparramar na minha mesa de trabalho. A ideia decorreu da percepção de que nunca tantos livros foram enviados para divulgação no jornal, impressão sobre a qual já escrevi aqui e que aproveitei para confirmar na entrevista que Rinaldo, Bira, Toninho e eu fizemos com o Luiz Schwarcz. Como disse na semana passada o Rinaldo, meu editor, se o Sabático tivesse uma carta ao leitor, ela poderia vir com uma foto das nossas baias, nas quais os livros se juntam numa coluna que se pode ver do outro extremo da redação.
Ficavam faltando números, então esperei sair a pesquisa anual de comportamento do mercado editorial, realizada pela Fipe, e trabalhei em cima dos resultados – como escrevi por aqui, a pesquisa tem lá suas limitações, mas é a mais detalhada que se tem desse mercado no Brasil. A apuração começou a ficar interessante mesmo foi depois que o Sergio Machado contou do dilema do armazém que a Record precisa desocupar nos próximos meses – se já não é simples, questões contratuais e de “sobrevivência” da cadeia produtiva, por assim dizer, tornam a coisa quase inviável.
A escrita da reportagem é que foi meio caótica, com direito a voo aqui para o Rio perdido quando eu deveria chegar cedo para terminar o texto e um laptop que me deixou na mão 95% do tempo. Vi entre outras coisas um Harry Potter com um t só na versão impressa e pensei em me matar, mas achei melhor corrigir no online e fingir que estava tudo bem.
Enfim, taí.
A eliminação de sobras de livros é tema abordado com cautela por empresários, mas a prática de “transformar em aparas”, como eles preferem, é bem menos rara do que se possa pensar, em especial neste momento em que o mercado editorial brasileiro produz muito mais do que consegue vender. A mais recente pesquisa de produção e vendas do setor, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), dá a dimensão. Em 2010, as editoras produziram quase 23% mais exemplares de livros que em 2009, enquanto o crescimento no número de cópias vendidas foi de apenas 13%. Conforme a estimativa, ao longo do ano foram produzidos 55 milhões de livros a mais do que se comercializou para o mercado e o governo, mantendo uma tendência à superprodução já percebida nos últimos anos. Num momento em que o digital domina o debate sobre o futuro do livro, o presente é feito de encalhe de livros em papel.
Os números confirmam a percepção unânime de editores e livreiros desse fenômeno que, mais cedo ou mais tarde, repete-se em vários países. “Há uma superprodução. Trabalho na área desde 1984 e nunca vi coisa igual. De uns dois anos para cá, deu um salto”, diz Ricardo Schil, gestor de negócios da Livraria Cultura. Atuando nos dois lados do segmento, o editor e livreiro Alexandre Martins Fontes diz não ter dúvida de que hoje se produz muito mais do que o mercado pode consumir. “E me pergunto onde isso vai parar. Em algum momento o mercado terá de se autorregular. Porque, se você publica e não vende, uma hora você quebra.”
O inchaço na produção teve como estímulos o aumento das compras pelo governo, o maior poder aquisitivo da classe C e o crescimento de um público leitor mais jovem, decorrência do sucesso de Harry Potter. Mas, mais do que o número de compradores em potencial, o que impulsionou essa superprodução foram as facilidades tecnológicas. “Antigamente, para editar um livro eram necessários equipamentos caros e sofisticados. Aquilo era uma espécie de filtro. Com as novas possibilidades de edição e impressão ficou tudo mais viável”, diz Sérgio Machado.
Entre edições e reedições, publicaram-se em 2010 no Brasil quase 55 mil títulos, numa média de 210 diferentes obras chegando ao mercado por dia útil. Só o Grupo Record, adepto de uma agressiva estratégia de publicar muito para que os sucessos compensem os fracassos, coloca no mercado todo mês 80 novos títulos. Nem uma esfriada nas vendas, como a percebida nos últimos meses pela diretora editorial da casa, Luciana Villas-Boas, prejudica a produção do grupo, que imprime 600 mil exemplares por mês. “Se caem as vendas, acabamos publicando mais títulos, porque as máquinas ficam menos tempo ocupadas com reimpressões.”
Esse tipo de pensamento incomoda editoras menores. “Se por um lado essa variedade de títulos parece boa, ao final, quando o gargalo é a distribuição, o problema fica ainda maior. A disputa por espaço nas livrarias torna-se inviável”, diz Cristina Warth, editora da Pallas.
Com cerca de cem associadas, a Libre, entidade que reúne pequenas e médias editoras, entende que o excesso de oferta prejudica a bibliodiversidade. Foi o que constatou também uma recente pesquisa divulgada na Espanha pela FGEE, a maior entidade editorial local: naquele país, um novo título tem no máximo 30 dias para chamar a atenção do público leitor antes de dar lugar a títulos ainda mais novos nas estantes das livrarias.
O excesso de oferta pode parecer positivo para o leitor, mas não é bem assim. No Brasil, desde 2004 as pesquisas apontam para uma queda no preço do livro, mas mais lenta do que fariam supor as facilidades de impressão e a concorrência acirrada. Como as editoras publicam muito mais do que as livrarias conseguem estocar, os gastos com marketing e estratégias de exposição aumentam os custos o investimento. “Com o exagero na produção de títulos, algumas coisas boas, autores ou títulos, já nascem mortas, pois não conseguirão o mesmo espaço para divulgação na imprensa ou nas livrarias”, diz Warth, da Pallas.
Estocagem. Há algum tempo, o escritor amazonense Márcio Souza recebeu do governo do Pará a sobra de uma HQ baseada em seu romance Galvez, o Imperador do Acre, editada com financiamento público. Era algo em torno de 300 exemplares, que Souza começou a distribuir entre amigos. “Acho que seria mais fácil eu me livrar de um cadáver do que dessa sobra. Ainda tenho aqui uns cem. Ninguém tem tanto amigo.”
Doar é sinônimo de dor de cabeça. Para editoras, preparar kits com poucos exemplares de cada livro e distribuir entre instituições sairia mais caro que estocar e não resolveria a questão da quantidade; tampouco interessa às instituições receber mil exemplares de um livro só. “A doação existe, mas não resolve. Além disso, dependendo do contrato, você não consegue doar sem pagar direitos autorais. Daí precisa de documentação para fins de doação do autor e do governo”, diz Roberto Feith, diretor da Objetiva.
Maria Zenita Monteiro, coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo, responsável por mais de cem pontos na cidade, diz que iniciativas de doações são raríssimas. “Quase 100% dos livros que as bibliotecas têm são comprados. Este ano, recebemos uma única doação de uma editora, a 34, que teve uma sobra de livros que publicaram pelo governo.”
Junta-se a isso o fato de que estocar é muito mais caro que destruir o encalhe, mesmo que a destruição implique perder o dinheiro da edição. No caso dos 2 milhões de livros para os quais a Record precisa achar uma solução, até fazer um saldão seria difícil, já que, segundo Machado, os autores teriam de autorizar os descontos. Logisticamente seria complicado. Só de autores nacionais, ele imagina, são cerca de 1.200, num universo de 3 mil títulos que figuram no armazém.
Feith acredita que a seleção cada vez maior de títulos será imprescindível. “Tudo tem o seu ponto de equilíbrio, o mercado editorial precisa descobrir o seu. Vamos ter de descobrir quando começar a existir prejuízo.” É claro que, no mercado editorial, até o conceito de ponto de equilíbrio é de difícil definição, já que um único best-seller sempre poderá compensar toda a aposta em títulos que encalham.
Ficavam faltando números, então esperei sair a pesquisa anual de comportamento do mercado editorial, realizada pela Fipe, e trabalhei em cima dos resultados – como escrevi por aqui, a pesquisa tem lá suas limitações, mas é a mais detalhada que se tem desse mercado no Brasil. A apuração começou a ficar interessante mesmo foi depois que o Sergio Machado contou do dilema do armazém que a Record precisa desocupar nos próximos meses – se já não é simples, questões contratuais e de “sobrevivência” da cadeia produtiva, por assim dizer, tornam a coisa quase inviável.
A escrita da reportagem é que foi meio caótica, com direito a voo aqui para o Rio perdido quando eu deveria chegar cedo para terminar o texto e um laptop que me deixou na mão 95% do tempo. Vi entre outras coisas um Harry Potter com um t só na versão impressa e pensei em me matar, mas achei melhor corrigir no online e fingir que estava tudo bem.
Enfim, taí.
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Expansão em ritmo aceleradoRaquel Cozer – O Estado de S.Paulo
Por alto, Sergio Machado calcula que sejam mais de 2 milhões de livros. Isso considerando só o excesso, “algo de que a gente poderia se desfazer sem afetar em nada a editora”. Estão estocados há cinco, seis anos, num armazém alugado próximo à sede da Record, grupo editorial que Machado preside, ali junto ao estádio do Vasco, na zona norte do Rio. Lá seguiriam indefinidamente não fosse o recente pedido de desocupação do lugar. Agora o dono da maior editora de obras de interesse geral do País tem poucos meses para dar destino às pilhas que abarrotam o lugar. “Estamos alugando outro espaço, menor e mais caro, e avaliando alternativas”, diz Machado. “É provável que alguma coisa seja destruída.”A eliminação de sobras de livros é tema abordado com cautela por empresários, mas a prática de “transformar em aparas”, como eles preferem, é bem menos rara do que se possa pensar, em especial neste momento em que o mercado editorial brasileiro produz muito mais do que consegue vender. A mais recente pesquisa de produção e vendas do setor, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), dá a dimensão. Em 2010, as editoras produziram quase 23% mais exemplares de livros que em 2009, enquanto o crescimento no número de cópias vendidas foi de apenas 13%. Conforme a estimativa, ao longo do ano foram produzidos 55 milhões de livros a mais do que se comercializou para o mercado e o governo, mantendo uma tendência à superprodução já percebida nos últimos anos. Num momento em que o digital domina o debate sobre o futuro do livro, o presente é feito de encalhe de livros em papel.
Os números confirmam a percepção unânime de editores e livreiros desse fenômeno que, mais cedo ou mais tarde, repete-se em vários países. “Há uma superprodução. Trabalho na área desde 1984 e nunca vi coisa igual. De uns dois anos para cá, deu um salto”, diz Ricardo Schil, gestor de negócios da Livraria Cultura. Atuando nos dois lados do segmento, o editor e livreiro Alexandre Martins Fontes diz não ter dúvida de que hoje se produz muito mais do que o mercado pode consumir. “E me pergunto onde isso vai parar. Em algum momento o mercado terá de se autorregular. Porque, se você publica e não vende, uma hora você quebra.”
O inchaço na produção teve como estímulos o aumento das compras pelo governo, o maior poder aquisitivo da classe C e o crescimento de um público leitor mais jovem, decorrência do sucesso de Harry Potter. Mas, mais do que o número de compradores em potencial, o que impulsionou essa superprodução foram as facilidades tecnológicas. “Antigamente, para editar um livro eram necessários equipamentos caros e sofisticados. Aquilo era uma espécie de filtro. Com as novas possibilidades de edição e impressão ficou tudo mais viável”, diz Sérgio Machado.
Entre edições e reedições, publicaram-se em 2010 no Brasil quase 55 mil títulos, numa média de 210 diferentes obras chegando ao mercado por dia útil. Só o Grupo Record, adepto de uma agressiva estratégia de publicar muito para que os sucessos compensem os fracassos, coloca no mercado todo mês 80 novos títulos. Nem uma esfriada nas vendas, como a percebida nos últimos meses pela diretora editorial da casa, Luciana Villas-Boas, prejudica a produção do grupo, que imprime 600 mil exemplares por mês. “Se caem as vendas, acabamos publicando mais títulos, porque as máquinas ficam menos tempo ocupadas com reimpressões.”
Esse tipo de pensamento incomoda editoras menores. “Se por um lado essa variedade de títulos parece boa, ao final, quando o gargalo é a distribuição, o problema fica ainda maior. A disputa por espaço nas livrarias torna-se inviável”, diz Cristina Warth, editora da Pallas.
Com cerca de cem associadas, a Libre, entidade que reúne pequenas e médias editoras, entende que o excesso de oferta prejudica a bibliodiversidade. Foi o que constatou também uma recente pesquisa divulgada na Espanha pela FGEE, a maior entidade editorial local: naquele país, um novo título tem no máximo 30 dias para chamar a atenção do público leitor antes de dar lugar a títulos ainda mais novos nas estantes das livrarias.
O excesso de oferta pode parecer positivo para o leitor, mas não é bem assim. No Brasil, desde 2004 as pesquisas apontam para uma queda no preço do livro, mas mais lenta do que fariam supor as facilidades de impressão e a concorrência acirrada. Como as editoras publicam muito mais do que as livrarias conseguem estocar, os gastos com marketing e estratégias de exposição aumentam os custos o investimento. “Com o exagero na produção de títulos, algumas coisas boas, autores ou títulos, já nascem mortas, pois não conseguirão o mesmo espaço para divulgação na imprensa ou nas livrarias”, diz Warth, da Pallas.
Estocagem. Há algum tempo, o escritor amazonense Márcio Souza recebeu do governo do Pará a sobra de uma HQ baseada em seu romance Galvez, o Imperador do Acre, editada com financiamento público. Era algo em torno de 300 exemplares, que Souza começou a distribuir entre amigos. “Acho que seria mais fácil eu me livrar de um cadáver do que dessa sobra. Ainda tenho aqui uns cem. Ninguém tem tanto amigo.”
Doar é sinônimo de dor de cabeça. Para editoras, preparar kits com poucos exemplares de cada livro e distribuir entre instituições sairia mais caro que estocar e não resolveria a questão da quantidade; tampouco interessa às instituições receber mil exemplares de um livro só. “A doação existe, mas não resolve. Além disso, dependendo do contrato, você não consegue doar sem pagar direitos autorais. Daí precisa de documentação para fins de doação do autor e do governo”, diz Roberto Feith, diretor da Objetiva.
Maria Zenita Monteiro, coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo, responsável por mais de cem pontos na cidade, diz que iniciativas de doações são raríssimas. “Quase 100% dos livros que as bibliotecas têm são comprados. Este ano, recebemos uma única doação de uma editora, a 34, que teve uma sobra de livros que publicaram pelo governo.”
Junta-se a isso o fato de que estocar é muito mais caro que destruir o encalhe, mesmo que a destruição implique perder o dinheiro da edição. No caso dos 2 milhões de livros para os quais a Record precisa achar uma solução, até fazer um saldão seria difícil, já que, segundo Machado, os autores teriam de autorizar os descontos. Logisticamente seria complicado. Só de autores nacionais, ele imagina, são cerca de 1.200, num universo de 3 mil títulos que figuram no armazém.
Feith acredita que a seleção cada vez maior de títulos será imprescindível. “Tudo tem o seu ponto de equilíbrio, o mercado editorial precisa descobrir o seu. Vamos ter de descobrir quando começar a existir prejuízo.” É claro que, no mercado editorial, até o conceito de ponto de equilíbrio é de difícil definição, já que um único best-seller sempre poderá compensar toda a aposta em títulos que encalham.
Ainda sobre a superprodução de livros no Brasil
Eu estava fora de São Paulo quando fechei a reportagem sobre superprodução de livros no Brasil, capa do Sabático da semana retrasada. Tinha pautado, com a autorização da Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, fotos dos livros estocados no armazém que a Record precisa desocupar nos próximos meses – tanto Luciana quanto Sergio Machado, dono do grupo, sabem a dimensão do problema, para o qual ainda não encontraram solução, e falaram sobre ele mais abertamente do que eu poderia pensar e do que outros editores teriam coragem de falar. São as imagens do armazém, na zona norte do Rio, que ilustram este post. Não houve tempo de incluí-las na edição impressa.
Durante a conversa, o Sergio Machado lembrou que, nos EUA, acontecem leilões de obras encalhadas para empresas que as distribuem para venda em saldões. Algo importante a se lembrar nessa questão é a força da cadeia produtiva em decisões como essa – a avaliação de livreiros é a de que saldões pode estrangular o mercado. A tradutora Denise Bottman argumentou ainda que a venda de sobras para reciclagem gera faturamento para as editoras, ao contrário da doação (por engano, escrevi “lucro”, palavra que ela não usou, mas está devidamente corrigido).
Com certeza, a questão de perder menos dinheiro entra nessa conta, mas não se pode negar que não é fácil achar instituição disposta a receber esse tanto de livros das imagens – vale destacar que essa é só uma parcela de uma quantidade muito, muito maior de livros encalhados no País. Lembro que o Toninho, meu colega na cobertura de literatura do Estadão, comentou meses atrás ter ouvido sobre escolas públicas que têm caixas e caixas de livros doados fechados, sem ter o que fazer com eles.
Por último, é sempre bom ressaltar que incinerar, em vez de reciclar, é um método também usado. É a busca pelo menor prejuízo: entre estocar e jogar tudo fora, jogar tudo fora sai mais em conta.
Para quem quer ler mais sobre o assunto, o juiz Marcelo Semer repercutiu a discussão dias atrás em sua coluna no Terra Magazine. Nos comentários do post com a reportagem também há muitas opiniões e argumentos que valem a leitura.
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