PLANETA DIGITAL
Dúvidas sobre o Twitter
Por Umberto Eco em 03/07/2012 na edição 701
Reproduzido do Estado de S.Paulo/The New York Times, 2/7/2012; intertítulos do OI; intertítulos do OI
No mês passado, circularam centenas de notas online sobre o suposto falecimento de Gabriel García Márquez. Algumas fontes chegaram a afirmar que euforaoautor da primeira notícia sobre a morte do autor, via a minha conta no Twitter. Evidentemente, pouco depois, as mesmas fontes – e outras, inclusive algumas totalmente fidedignas – descobriram e informaram que, na realidade, eu sequer estava inscrito no Twitter, e que alguma outra pessoa estava enviando tweets com o meu nome.
Houve até alguns idiotas que se apoderaram da primeira informação e,semse dar ao trabalhode verificá-la, continuaram moralizando sobre a minha suposta brincadeira (vocês sabem comosão os escritores, com seus conflitos e rivalidade dramáticas); mensagens posteriores revelaram que foram criadas várias contas n Twitter com o meu nome, sem o meu conhecimento.
Não se trata de algo fora do comum– em muitos sites, qualquer um pode se inscrever como “Leonardo da Vinci” e ninguém o impedirá. Portanto, é fácil imaginar o que acontece com os nomes de escritores contemporâneos. Neste caso, alguns sugeriram que o verdadeiro autor da invencionice foi Tommaso De Benedetti, o criador de várias brincadeiras do gênero. Ele faz este tipo de coisa justamente para demonstrar, como revelou certa ocasião ao jornal The Guardian, que “a mídia social é a fonte de informação menos passível de verificação no mundo”.
Verdade essencial
Evidentemente, todo sabem disso há muito tempo – basta pensar no típico sujeito que se apaixona por uma linda jovem pela internet, e depois descobre que ela na realidade é um idoso funcionário da Alfândega aposentado, com um grave problema de herpes. Ou, pior ainda, o pedófilo que usa um perfil inventado para seduzir um menor ingênuo e crédulo.
O episódio do Twitter me lembrou do que aconteceu no final dos anos 60 – antes da existência dos e-mails e do fax –quando alguém enviou um artigo ao jornal italiano Corriere della Sera, com a assinatura do cineasta Pier Paolo Pasolini.O artigo foi publicado e gerou um enorme escândalo por ser um falso, uma pilhéria de mau gosto, que Pasolini desconhecia totalmente. A primeira reação foi de terror: a partir daquele momento, de que modo os jornais poderiam ter a certeza de que uma colaboração tinha sido escrita de fato pela pessoa cujo nome constava no papel, se não fosse entregue pelo próprio autor?
Na época, escrevi um artigo no qual assegurava os leitores que não deveriam temer. A sociedade pode aceitar a existência de mentiras e de falsos, mas ela se baseia em um acordo mútuo de que, em geral, as pessoas dizem a verdade.
Do contrário, jamais poderíamos fazer planos para apanhar um trem, porque não saberíamos se o horário das ferrovias estava cheio de mentiras ou não; quando chamássemos os bombeiros na nossa casa, eles poderiam suspeitar que se tratava de um trote e não atenderiam ao nosso pedido de socorro; talvez não depositássemos o nosso dinheiro no banco, por medo de que este fosse uma encenação, planejada para nos enganar (como o local da jogatina preparado com esta finalidade no filme Golpe de Mestre); poderíamos achar que o nosso médico conseguiu seu diploma em algum país onde estas coisas podem ser compradas, ou que nossa mãe tivesse mentido quando disse que tínhamos nascido dela. (Não importa de que maneira a Virgem Maria reagiu à notícia do anjo Gabriel de que ela estava grávida).
Como escrevi na época, a sociedade sabe que o compromisso recíproco com a verdade essencial para todos nós, e que se deixar de existir, estaremos todos perdidos. É por isso que pilhérias como o falso artigo de Pasolini podem ser usadas uma vez, mas depois, por uma espécie de instinto societário, as pessoas param. E, de fato, foi o que aconteceu.
Mundo fictício
Hoje,com o advento da internet, há uma ampla aceitação da comunicação com o propósitodo logro, e as pessoas estão se tornando cada vez mais desconfiadas. É verdade que o Twitter e o Facebook já hospedam inúmeros políticos e outras figuras públicas dos quais em geral desconfiamos.
Mas com o passar do tempo, até os solitários que recorrem à internet para preencher sua necessidade absoluta de contato humano começarão a se dar conta de que vivem num universo de desconfiança generalizada – e de que deveriam duvidar de todos os que os cercam. Seria como viver no mundo fictício das histórias em quadrinhos, no qual uma pessoa só poderá contar consigo mesma para defender-se na eventualidade de, a qualquer momento, uma pessoa recém conhecida revelar-se uma diabólica vilã.
***
[Umberto Eco, para The New York Times]
Houve até alguns idiotas que se apoderaram da primeira informação e,semse dar ao trabalhode verificá-la, continuaram moralizando sobre a minha suposta brincadeira (vocês sabem comosão os escritores, com seus conflitos e rivalidade dramáticas); mensagens posteriores revelaram que foram criadas várias contas n Twitter com o meu nome, sem o meu conhecimento.
Não se trata de algo fora do comum– em muitos sites, qualquer um pode se inscrever como “Leonardo da Vinci” e ninguém o impedirá. Portanto, é fácil imaginar o que acontece com os nomes de escritores contemporâneos. Neste caso, alguns sugeriram que o verdadeiro autor da invencionice foi Tommaso De Benedetti, o criador de várias brincadeiras do gênero. Ele faz este tipo de coisa justamente para demonstrar, como revelou certa ocasião ao jornal The Guardian, que “a mídia social é a fonte de informação menos passível de verificação no mundo”.
Verdade essencial
Evidentemente, todo sabem disso há muito tempo – basta pensar no típico sujeito que se apaixona por uma linda jovem pela internet, e depois descobre que ela na realidade é um idoso funcionário da Alfândega aposentado, com um grave problema de herpes. Ou, pior ainda, o pedófilo que usa um perfil inventado para seduzir um menor ingênuo e crédulo.
O episódio do Twitter me lembrou do que aconteceu no final dos anos 60 – antes da existência dos e-mails e do fax –quando alguém enviou um artigo ao jornal italiano Corriere della Sera, com a assinatura do cineasta Pier Paolo Pasolini.O artigo foi publicado e gerou um enorme escândalo por ser um falso, uma pilhéria de mau gosto, que Pasolini desconhecia totalmente. A primeira reação foi de terror: a partir daquele momento, de que modo os jornais poderiam ter a certeza de que uma colaboração tinha sido escrita de fato pela pessoa cujo nome constava no papel, se não fosse entregue pelo próprio autor?
Na época, escrevi um artigo no qual assegurava os leitores que não deveriam temer. A sociedade pode aceitar a existência de mentiras e de falsos, mas ela se baseia em um acordo mútuo de que, em geral, as pessoas dizem a verdade.
Do contrário, jamais poderíamos fazer planos para apanhar um trem, porque não saberíamos se o horário das ferrovias estava cheio de mentiras ou não; quando chamássemos os bombeiros na nossa casa, eles poderiam suspeitar que se tratava de um trote e não atenderiam ao nosso pedido de socorro; talvez não depositássemos o nosso dinheiro no banco, por medo de que este fosse uma encenação, planejada para nos enganar (como o local da jogatina preparado com esta finalidade no filme Golpe de Mestre); poderíamos achar que o nosso médico conseguiu seu diploma em algum país onde estas coisas podem ser compradas, ou que nossa mãe tivesse mentido quando disse que tínhamos nascido dela. (Não importa de que maneira a Virgem Maria reagiu à notícia do anjo Gabriel de que ela estava grávida).
Como escrevi na época, a sociedade sabe que o compromisso recíproco com a verdade essencial para todos nós, e que se deixar de existir, estaremos todos perdidos. É por isso que pilhérias como o falso artigo de Pasolini podem ser usadas uma vez, mas depois, por uma espécie de instinto societário, as pessoas param. E, de fato, foi o que aconteceu.
Mundo fictício
Hoje,com o advento da internet, há uma ampla aceitação da comunicação com o propósitodo logro, e as pessoas estão se tornando cada vez mais desconfiadas. É verdade que o Twitter e o Facebook já hospedam inúmeros políticos e outras figuras públicas dos quais em geral desconfiamos.
Mas com o passar do tempo, até os solitários que recorrem à internet para preencher sua necessidade absoluta de contato humano começarão a se dar conta de que vivem num universo de desconfiança generalizada – e de que deveriam duvidar de todos os que os cercam. Seria como viver no mundo fictício das histórias em quadrinhos, no qual uma pessoa só poderá contar consigo mesma para defender-se na eventualidade de, a qualquer momento, uma pessoa recém conhecida revelar-se uma diabólica vilã.
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[Umberto Eco, para The New York Times]
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