sábado, 28 de dezembro de 2013

Discípulos de Simão Bacamarte — CartaCapital

Discípulos de Simão Bacamarte — CartaCapital

Nossa visão simplista da realidade faz acreditar que, no Brasil, encarceramos pouco e que só por este motivo nossas ruas são inseguras 
 
por Matheus Pichonelli publicado 18/04/2013 11:58, última modificação 28/12/2013 01:47 
 
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Imagem da capa do livro O Alienista, de Machado de Assis
Dias após o assassinato de um estudante por um jovem menor de 18 anos, em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin foi a público anunciar que seu partido, o PSDB, encaminharia ao Congresso um projeto para endurecer o Estatuto da Criança e do Adolescente. A ideia era impedir que jovens infratores completassem 18 anos e permanecessem sob custódia de entidades como a Fundação Casa, a antiga Febem. Não é exatamente uma proposta para reduzir a maioridade penal, hoje fixada em 18 anos. A ideia é que o adolescente que cometa crimes graves, como homicídios qualificados, estupro e extorsão mediante sequestro, seja transferido para um regime especial quando completar 18 anos. Não iria para uma penitenciaria, segundo o governador, mas ficaria separado de outros “menores”. Outra mudança seria o agravamento da pena para o adulto que usa criança como um “escudo” para cometer o crime. São propostas de mudanças pontuais que, de uma forma ou outra, colocam o dedo em um vespeiro – pode-se concordar ou discordar da proposta, mas o debate está aberto e a bola, com o Congresso.
Fora de lá, o calor da hora parece ter destampado um outro apelo. Na quarta-feira 17, uma pesquisa Datafolha revelou que nada menos do que 93% dos moradores de São Paulo, onde aconteceu o crime, aprovam a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. O instituto ouviu 600 pessoas em um único dia – a segunda-feira 15. A margem de erro é de quatro pontos, para mais ou menos. Se tivesse feito a pesquisa uma semana antes, talvez o resultado fosse outro. De toda forma, a confusão entre uma eventual proposta para reduzir a maioridade penal e outra para enrijecer as normas do ECA parece inevitável – e nem de longe é casual.
O apelo para uma solução definitiva sobre a infância e a juventude escancara mais uma mania do que uma convicção. Em tempos de comoção, bandeiras radicais são erguidas como respostas aparentemente capazes de resolver num passe de mágica questões imediatas. É um intuito humano natural, mas não deixa de representar uma vocação à simplificação, como se o radicalismo fosse capaz de conter o caos, a desordem e as agressões irracionais.
Em primeiro lugar, há de se ter em conta que o criminoso, de qualquer idade, sabe que pode ser pego quando comete uma agressão à lei. Ainda assim, arrisca – e isso não é privilégio de adolescente. A possibilidade de punição coíbe, mas não anula a vocação do criminoso. Para cada barreira legal haverá sempre alguém disposto a desafiá-la, na idade que for. Para muita gente, com ou sem lei, matar ou morrer faz parte do cálculo. A vida em estado bruto tem a validade de um risco. Esse desprezo pela vida não tem idade, não tem cor, não tem classe social. E está manifestado em todos os cantos, inclusive por quem acredita que a anulação do crime passa pela anulação do possível criminoso, por meio do fuzilamento, do linchamento ou do encarceramento desumano - basta ver a reação de alguns leitores indignados durante o julgamento dos PMs do Massacre do Carandiru, segundo eles uma ação legítima e purificadora.
Uma outra questão é o pressuposto de que não há punição suficiente para adolescente infratores – como se, ao serem encaminhados a um sistema correcional, passassem as tardes e as manhãs jogando Playstation, enquanto os adultos são penalizados como criminosos de fato. Há, nos sistemas de correção do País, centenas de jovens cumprindo penas por delitos diversos. Nenhum deles se diria privilegiado. Sistema de correção, ao que consta, não é colônia de férias.
Mas a opinião pública, que quer respostas rápidas para problemas só aparentemente solucionáveis na caneta, não parece se dar conta desse emaranhado. Para ela, tudo seria facilmente resolvido se houvesse mais vagas em penitenciárias para mais pessoas presas. Assim, quanto mais presos, mais segurança para quem anda nas ruas. É como se vivêssemos numa grande Itaguaí, a cidade onde Simão Bacamarte, personagem do conto O Alienista, de Machado de Assis, trancafiava todos os habitantes em seu manicômio ao menor sinal de insanidade. Simões Bacamartes que somos, imaginamos que o problema no Brasil é liberdade demais e punição de menos – sem nos dar conta de que a proporção de jovens na Fundação Casa encarcerados por homicídios é mínima, e que o sistema prisional brasileiro está abarrotado, inclusive por gente que já cumpriu a pena e deveria estar solto. Um levantamento publicado pela Folha de S.Paulo no último fim de semana apontou, por exemplo, que apenas 1,5% dos internos da Fundação Casa cumpre medidas socioeducativas após cometer o crime de latrocínio – são 134 adolescentes em um universo de 9.016 jovens. A maioria está ali por roubo ou associação com o tráfico de drogas – que, é bom lembrar, é alimentado não apenas por jovens, nem só da periferia, embora a maioria dos encarcerados seja basicamente da periferia.
Mas o nível da discussão joga à inexistente inimputabilidade adolescente um peso maior do que a realidade. O jovem que assassinou o estudante em São Paulo não saiu de casa em um belo dia pensando em aproveitar seus últimos momentos de impunidade. Saiu de casa para roubar. Para matar, se fosse o caso. A prisão, especial ou comum, o tirará de circulação por um tempo. Nunca saberemos se será tempo suficiente para pensar no que fez e se arrepender. Mas ele não será o primeiro nem o último, e não seria nem deixaria de ser com medidas simplistas. Se a regra for essa, vale reproduzir a questão que um internauta atento manifestou nas redes sociais: a redução da maioridade penal servirá também para os nossos condomínios?
É aqui que a discussão se desnuda. Ao longo da semana, quem tentava ponderar sobre a questão era logo interpelado por dois argumentos recorrentes: “se você fosse vítima, você não defenderia bandido” ou “está com dó do bandido, leva pra casa”.
A retórica parece clara: o sujeito se reconhece como uma vítima em potencial, mas o crime está sempre fora de casa, fora de sua órbita de influência. É o raciocínio que permite aos pais de quem agrediu uma prostituta quase até a morte, no Rio, entrarem nas delegacias com o dedo ao alto para avisar que os filhos não eram bandidos.
Culturalmente, só a prisão do filho “do outro” garante a sensação de segurança: no País da indignação seletiva, ninguém pede redução da maioridade penal quando a prostituta é espancada pelo playboy. Ou quando o filho de um diretor de uma importante emissora de televisão, também menor de idade, é envolvido num caso de estupro contra uma garota. Ou quando os amigos se juntam em turmas para explodir o banheiro da escola. Ou ameaçam professores. Ou provocam incêndios criminosos. Invasões criminosas. Ou quando tomam a arma ou o carro dos pais e provocam tragédias noticiadas como acidentais.
Nesses casos não são “menores”, mas jovens imaturos, carentes de atenção e dispostos a aprender com os erros. A nomenclatura é diferente, mas a situação-limite, nem sempre. A lei e a punição, portanto, já existem. Podem até recrudescê-las, mas de nada servirá se só enquadrar o filho do outro.

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