quinta-feira, 7 de julho de 2016

O ESTADO-NAÇÃO COMO PATOLOGIA



 Por Vladimir Safatle



O ESTADO-NAÇÃO

 COMO PATOLOGIA
Muito
já foi dito a respeito da decisão inglesa de sair da União Europeia.
Ela é certamente um dos fatos mais importantes deste curto século por
aquilo que explicita.
A União Europeia nasceu com a promessa de ser o início de uma era
pós-nacional, na qual os Estados-nação se submeteriam paulatinamente a
uma engenharia institucional capaz de garantir a existência de sujeitos
políticos pós-nacionais.
Aos poucos, atribuições dos parlamentos nacionais passaram ao Parlamento
Europeu, a criação de uma moeda única levou a um banco central
transnacional, as universidades criaram sistemas de intercâmbio contínuo
tendo em vista a formação de cidadãos europeus.
Nesse sentido, não se tratava apenas de um espaço de livre comércio, mas
da tentativa de criação de um espaço político que deixaria para trás as
estruturas dos Estados nacionais. Diferente da Organização das Nações
Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum de debates, a União
Europeia representou, pela primeira vez, um processo efetivo de
transferência de poder.
No entanto, mais de 20 anos depois de sua instauração, a ira de parcelas
expressivas de populações do velho continente contra a União Europeia é
visível. A decisão inglesa, por mais suicida que seja do ponto de vista
econômico e político (com a saída iminente da Escócia do Reino Unido), é
apenas a ponta do iceberg. 
A razão de tal ira talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua maior invenção, a saber, o euro. 
Há uma certa ironia em perceber como as notas de euro não representam
seres vivos (personagens históricos, animais, flora), mas objetos
mortos, como pontes, viadutos e outras construções de infraestrutura. A
ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a circulação de
riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática, nestas
representações não há pessoas.
De fato, durante todos estes anos a União Europeia foi uma engenharia
institucional que só esteve de acordo em dois pontos: organizar
políticas massivas de salvamento do sistema financeiro combalido desde a
crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de circulação
de imigrantes. 
Os projetos iniciais de criação de uma Europa social, com estruturas
transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social, naufragaram
rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia demonstrou
toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante anos
com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem
disposição alguma para corrigir seus equívocos.
No entanto, o voto britânico foi um dos mais impressionantes passos na
direção errada da história recente. Ele foi animado por dois fatores: a
crença de que o fortalecimento do Estado-nação serviria de contrapeso a
estas políticas que levaram à pauperização do continente e o medo
diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores da imprensa
local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).
O primeiro fator é apenas a tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O
Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado
de vez. Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores
patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão
das fronteiras, a paixão pelo isolamento.
O Estado-nação não decide mais nada, mesmo quando ainda tem o controle
de sua moeda, como no caso inglês. Apenas implementa políticas decididas
por um sistema econômico global. Por isso, ele será usado todas as
vezes que for o caso de desviar o eixo do descontentamento não para
cima, ou seja, em direção àqueles que realmente decidem, mas para o
lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode expiatório da
vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.
Freud não explica. É o Monty Python quem explica...
Nos últimos dias, os ingleses descobriram uma obviedade: sair da
Comunidade Europeia é impossível, daí esta situação digna de Monty
Python de um país tentando adiar a implementação de uma decisão que ele
mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.
Por essa razão, a luta pela defesa contra a espoliação econômica não
passa pelos Estados nacionais, mas pela politização das decisões
econômicas impostas por organismos transnacionais, como a União
Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte de uma certa gestão da
política atual desviar continuamente os eixos reais dos problemas para
espaços imaginários.

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