sábado, 31 de dezembro de 2016

Como tornar desejada a dominação

Como tornar desejada a dominação. Por Sylvia Moretzsohn - TIJOLAÇO | .”

Por Sylvia Moretzsohn

No clássico A psicologia de massas do fascismo, escrito em 1933 – portanto, no processo de ascensão do nazismo na Alemanha –, Wilhelm Reich perguntava-se por que, até então, não se haviam estudado as razões pelas quais, há milênios, as pessoas aceitam a exploração, a humilhação, a escravidão. Não se trata, naturalmente, de indagar por que se submetem contra a vontade a uma força mais poderosa, mas de saber por que aceitam a dominação, a ponto de naturalizá-la. Mais ainda: por que participam ativamente do processo que resultará na própria submissão.

É uma questão que não pode ser respondida apenas com a abordagem tradicional sobre o poder da ideologia. Ou melhor: é uma questão que exige articular essa abordagem a algo mais profundo, que são as estruturas psicológicas das pessoas numa determinada época. Ao estudar o fenômeno do fascismo, Reich observou que ele só poderia prosperar num ambiente social e psicológico receptivo àquele tipo de propaganda, e que expressava a mentalidade do “Zé Ninguém”, um ser subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Assinalou a habilidade de Hitler em manejar as emoções desse público, através da tática – expressa no Mein Kampf – de evitar ao máximo uma argumentação objetiva: o fundamental era explorar frustrações e ressentimentos e martelar o grande objetivo final como recompensa. Precisamente, aliás, o que fez Donald Trump quase um século depois, ao prometer “make America great again”, e ganhar a Casa Branca.

(…) Perguntar por que acreditamos no que acreditamos, perceber a força do auto-engano é o ponto de partida para tentarmos entender e buscar superar a nossa tendência a viver num mundo feito de sombras. Dependendo da qualidade da nossa formação e da informação que recebemos, estaremos mais ou menos habilitados para o exercício dessa crítica. Pois, como Laerte sintetizou numa de suas notáveis charges, “em terra de cego ninguém se importa se o rei está nu”. A quem interessa produzir essa cegueira?

O Brasil é um país em que a maioria da população tem baixa escolaridade e se informa basicamente pela TV, pelo rádio e pela internet, esse ambiente que não apenas radicaliza a mistura de entretenimento e informação mas promove a circulação ininterrupta de informações falsas e verdadeiras, que chegam a confundir mesmo quem tem formação adequada para distingui-las. As redes sociais poderiam ser um espaço de debate e esclarecimento, mas tendem a reproduzir guetos de autoconvencimento, num contexto social de rejeição ao diálogo. Sobretudo quando são operadas por certos movimentos organizados, interessados em instrumentalizá-las para atingir seus objetivos.

(…) Desde que estourou o caso do Mensalão, em 2005, esta mídia veio identificando a corrupção ao PT, como se “nunca antes na história deste país” tivéssemos vivido situação semelhante. (…) O vínculo “corrupção = PT”, que ganhou força adicional por atingir um partido que surgiu e cresceu com a promessa de inaugurar “outra história” na política brasileira, foi trabalhado ao longo de uma década e produziu o antipetismo cego, componente essencial do discurso de ódio que se espalhou nas manifestações pelo impeachment. (…)

Despolitizar a questão da corrupção, transformá-la numa cruzada moral, instilar o medo e excitar o ódio sempre formaram o roteiro para desestabilizar governos minimamente comprometidos com as causas sociais. O processo que resultou no golpe atual envolve dois elementos novos: o primeiro é o próprio mal-estar causado pela ascensão de um ex-retirante nordestino ao cargo mais alto da República, algo que a elite jamais engoliu. O outro são a ampliação e a melhoria das condições econômicas da “classe C” durante os tempos de prosperidade dos governos petistas: a exploração da frustração da classe média diante da perda de certas distinções – ter de compartilhar espaços antes exclusivos em aeroportos e universidades, por exemplo – fez brotar aquilo que o famoso deputado detonador do Mensalão chamou de “instintos mais primitivos”, extravasados nas maciças manifestações de rua, nas varandas gourmet e nas redes sociais.

(…) Perceber como a mídia, sobretudo os meios eletrônicos, manipula as emoções do público é fundamental para entender o ponto a que chegamos. Mas, se, como afirmava Espinosa, uma paixão – no caso, o ódio – só pode ser vencida por outra paixão mais forte, é preciso trabalhar sobre elas e quebrar resistências para tentar reverter esse quadro.

Como sabemos, os princípios clássicos do jornalismo derivam do ideal iluminista de esclarecimento. Oferecer informações verdadeiras, contextualizá-las, abrir espaço ao confronto de ideias é fundamental para a formação da opinião. Mas essa aposta na razão sempre se frustra se não há a disposição de ouvir.

Professora de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense. Artigo publicado originalmente no Suplemento Pernambuco, condensado pela autora para o Tijolaço.

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