A violência dos últimos anos, que culminou nas
eleições de 2018, tampou os ouvidos para o que poderia ser considerado o outro lado. Os gritos acusavam a impossibilidade de votar em
Jair Bolsonaro (PSL) depois de ouvir o discurso de ódio que ele pregava. Gritou-se até quase acabar a voz. O fato é que a maioria dos eleitores que escolheu um dos candidatos escolheu Bolsonaro, e ele está eleito e já começou a governar desde o dia seguinte ao segundo turno, embora só assuma oficialmente em janeiro. Desde então, ou mesmo muito antes disso, os grupos que se opõem a Bolsonaro se limitam a reagir. A cada declaração, a cada ministro, a cada indício de corrupção amontoam-se mais gritos. É necessário reagir. Mas só reagir é exaustivo. Como o espaço público está saturado de gritos, a reação se esgota em si mesma. Numa época em que se vive de espasmo em espasmo, cada vez mais rápidos, o que parece movimento com frequência é paralisia. A paralisia do tempo da velocidade cria a ilusão de movimento exatamente porque é feita de espasmos. Como parar de apenas reagir e se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do
MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o
aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de
Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista
Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela. Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na
Amazônia uma versão das grandes obras da
ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela
Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de
Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.
Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as contradições do PT no poder
A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou.
O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo.
O que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia.
Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de
Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o
Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.
Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora
A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.
Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.
É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e todos sabem qual é a vida que estão vivendo.
A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.
Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?
Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto para o país
A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.
No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a
ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os manifestantes, muitos deles estudantes, “
walk for life”. Esta é possivelmente a interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à estratégia dos apoiadores do regime de opressão.
Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada, finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus heróis e suas revoluções.
As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, e de
Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.
Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada
Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.
Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos, defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição. Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.
Em artigo no The Intercept,
a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a
greve dos caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”, na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:
“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas
redes sociais. Os protestos ocorrem mais como
riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem, muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito de ‘basta”.
Ao voltar a entrevistar
os jovens que participaram dos “rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.
Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder
Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.
Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem mesmo aquilo que não é?
No caso dos
“coletes amarelos”, na França, há um ponto que também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se sabe, o presidente francês,
Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico” sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar. A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas medidas urgentes.
O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até 2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5 graus Celsius.
O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir o déficit orçamentário da
França, pagando credores ricos. Na prática, o “imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.
Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.
A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade
Cito o caso francês não só porque está se desenrolando nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda, principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos. Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos,
Estados Unidos na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta. Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais pobres. É o que já está acontecendo.
Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em massa da
América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata.
Ao serem entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram, causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.
Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.
Quando
Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.
Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT, nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro,
em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma “esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.
Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e causador de desigualdades.
Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os grandes produtores de
combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer análise do momento atual.
Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta que viverão. São adolescentes
como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por ela.
Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem
a maior porção da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais biodiverso do mundo.
Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm barquinhos de papel.