quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Previdência e regime de capitalização



Previdência e regime de capitalização 

Em 1956 Shichigoro Fukuzawa escreveu "A Balada de Narayama", uma lenda de um Japão pré-industrial e pobre: abandono dos idosos aos 70 anos. O tema da Balada é um filho que deve levar nas costas a mãe que chegou aos 70 anos saudável, vibrante, e de personalidade luminosa, a uma montanha onde, sozinha e sem recursos, deverá esperar a morte. Este sistema de aposentaria é inevitável num mundo pré-industrial sem recursos para manter o nível de consumo da população idosa. A história deu origem a um filme artístico em 1956 e outro mais cinematográfico em 1983 (Palma de Ouro de Cannes).
A introdução de um regime de capitalização para reformar a Previdência tem atraído muita discussão. A Balada ilustra mitos que permeiam estas discussões, quatro em particular:
1. Num regime de capitalização o benefício de cada trabalhador é custeado pelas suas próprias contribuições e dos seus contratantes no passado: são contribuições pessoais a um fundo de poupança individual, às vezes subvencionado pelo governo.
O mito é que aposentadoria passa a depender do que as pessoas pouparam. Na realidade, como em qualquer regime de aposentadoria, as pessoas inativas consomem o que as pessoas ativas produzem. Os aposentados são portanto sempre financiados pelos trabalhadores ativos, independentemente do sistema previdenciário. Se número e produtividade dos ativos não forem suficientes, a produção não poderá atender a demanda. A solução será a da "Balada de Narayama". Um regime de capitalização pode ser atuarialmente equilibrado, mas economicamente inviável.
Um regime de capitalização tem dois outros problemas. Quem garante que os recursos serão bem aplicados? E quem garante que a poupança será suficiente? Se os poupadores investiram mal terão uma renda insuficiente para manter seu padrão de vida e correm o risco de empobrecimento. Se tiverem pouco anos de vida depois de aposentados deixarão um fundo a seus herdeiros. Se tiverem muitos anos de vida a poupança poderá acabar antes do tempo. Estes dois riscos: risco de investimento e risco de longevidade recaem sobre o indivíduo. Num regime de participação estes riscos são absorvidos pela coletividade.
2. Segundo mito: o problema de aposentadorias no Brasil pode ser resolvido sem crescimento.
Taxas de natalidade em queda fazem com que a realidade demográfica brasileira seja de uma população onde os ativos devem sustentar um número crescente de inativos: 5 ativos sustentam hoje 1 inativo. Estes 5 deverão sustentar 2 inativos em 2040 e 3 em 2060. Ha poucas dúvidas sobre estas projeções.
Ignorar o crescimento na reforma da Previdência é um erro estratégico tão grave quanto ignorar a evolução demográfica
Ignorando a repartição da renda entre trabalho e capital, uma maneira de resolver o problema seria aumentando a produtividade dos 5 ativos. Se os 5 ativos produzirem R$ 100 hoje, terão que dividir estes R$ 100 entre 6. Cada um terá uma renda de R$ 16,6. Para a renda per capita permanecer a mesma os 5 ativos terão que produzir 116 (7 vezes 16,6) em 2040 e 132.8 (8 vezes 16,6) em 2060. A implicação é que a taxa de crescimento do PIB per capita entre 2020 e 2060 deveria ser de 0,7% ao ano. Esta taxa de crescimento surpreendentemente baixa reflete o efeito cumulativo do crescimento em 40 anos e um envelhecimento da população que é gradual.
Mas sem crescimento a queda de consumo é inevitável e a tragédia de Narayama se torna realidade. Para que os ativos possam manter seu nível de consumo, deverão sacrificar o consumo dos idosos.
Com crescimento o problema da Previdência desaparece. Devemos nos preocupar com o enfoque atual onde o déficit da Previdência recebe mais atenção do que a aceleração do crescimento da economia. É evidente que os benefícios e o financiamento da Previdência devem evoluir com mudanças demográficas e que a previdência no Brasil tem várias imperfeições. Estes aspectos têm atraído atenção e discussão enquanto as consequências de uma economia estagnada sobre a solvência da previdência tem sido ignoradas.
Nas discussões recentes a lógica econômica se inverteu, criando-se a convicção errônea de que reformando a Previdência os problemas da economia brasileira serão equacionados quando a realidade é exatamente a oposta. A aritmética simples do problema foi obscurecida pelos aspectos financeiros da Previdência, importantes sem dúvida, mas que contêm somente uma parte do problema.
O padrão de vida de um aposentado vai depender da sua habilidade de consumir bens e serviços produzidos pela população ativa. Tanto o regime de repartição como o de capitalização são formas de organizar a parcela da produção a qual os inativos terão direito. É portanto um erro grave se focar exclusivamente como as aposentadorias são financiadas ignorando a evolução do PIB e sua repartição entre ativos e inativos. Ignorar o crescimento do PIB numa reforma da Previdência é um erro estratégico tão grave quanto ignorar a evolução demográfica.
Terceiro mito: a transição de um regime de participação para um regime de capitalização pode ser feito sem um alto custo fiscal. A transição de um regime de repartição a um de capitalização significa que os aportes dos trabalhadores a suas contas individuais não mais serão disponíveis para o regime de repartição. Em países onde tal transição se fez a queda das contribuições dos trabalhadores ativos migrando ao regime de capitalização criou um custo fiscal alto e acima do projetado.
Quarto mito: num regime de capitalização, o governo não mais se envolve no financiamento de aposentadorias. A realidade é mais complexa. Se num regime de capitalização o rendimento da poupança for baixo, ou se a incidência de pobreza dos aposentados aumenta a níveis socialmente inaceitáveis, o governo deverá intervir. É impensável que o governo não intervirá quando um problema afeta uma parcela significativa da sociedade.
A reforma da Previdência deve ser repensada num contexto de crescimento econômico, aumento do PIB per capita, aumento da participação da força de trabalho, e redução da informalidade. É importante lembrar que a reforma que foi ao Congresso não vai gerar ganhos fiscais significativos no curto prazo. O problema da previdência vai se manifestar sobre um período de 40 anos. Não há lógica econômica que justifique um país com problemas imediatos de desemprego alto, crescimento anêmico e problemas estruturais graves, eleja estrategicamente um regime de capitalização como instrumento de reforma da Previdência e a reforma da Previdência como o principal instrumento para recuperar nossa capacidade de crescimento.
Carlos Luque é professor da FEA- USP e presidente da Fipe.
Simão Silber é professor da FEA-USP
Roberto Zagha foi professor Assistente na FEA-USP nos anos 1970 e no Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescimento e o Desenvolvimento, e diretor para a Índia.

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