Humanos direitos
A Declaração Universal, 70, se tornou uma espécie de âncora moral da humanidade
Oscar Vilhena Vieira
A Declaração
Universal de Direitos Humanos, que completa 70 anos nesta próxima segunda-feira
(10), representou uma reação da comunidade internacional ao totalitarismo e às
barbáries da 2ª Guerra que levaram à morte mais de 40 milhões de pessoas, entre
1937 e 1945. Estima-se que a maior parte dessas mortes não se deu em combate.
Foram nacionais liquidados pelos seus próprios Estados.
A desconsideração
de valores universais como dignidade, liberdade e igualdade; o desencantamento
com as instituições da democracia liberal; e a ascensão de um nacionalismo
exacerbado e de ideologias totalitárias e supremacistas favoreceram a
demonização de minorias étnicas, religiosas e políticas, levando ao genocídio.
Impossível conceber que oficiais do Exército alemão --que haviam
estudado Kant, Hegel ou Goethe no colégio e que exibiam a cruz no peito— tenham
ordenado a incineração de milhões de pessoas, inclusive crianças, sem
entendermos o processo de desumanização a que os judeus foram submetidos pela
ideologia nazista. A desconstituição do outro como sujeito pleno de direitos
está na raiz de todas as formas de barbárie, como alerta a própria Declaração
em seu preâmbulo.
Nestes últimos 70
anos a Declaração tornou-se uma espécie de âncora moral da humanidade. Ao
reconhecer que a dignidade é algo inerente a todas as pessoas, sem qualquer
distinção, excluiu por completo a ideia de que apenas os "humanos
direitos" sejam sujeitos dos direitos humanos. É interessante constatar
que todos os seus artigos se iniciam com o pronome "todos" ou
"ninguém". Nesse sentido não podem os governos escolher quem merece e
quem não merece ter direitos humanos ou mesmo que direitos irá ou não
respeitar. O conjunto de direitos reconhecido pela Declaração constitui um
parâmetro mínimos de justiça e civilidade que legitima o exercício do poder.
A partir da
Declaração foi possível denunciar o colonialismo europeu, a segregação racial
nos Estados Unidos, a repressão aos dissidentes na União Soviética, o arbítrio
e a violência dos militares na América Latina, o apartheid na África do Sul, os
genocídios em Ruanda e na ex-Iugoslávia como práticas inaceitáveis, que devem
ser punidas, muitas delas, como crimes contra a humanidade.
Com a queda do muro
de Berlim, no final dos anos 80, e a onda de democratização que se iniciou no
sul da Europa e depois se difundiu pela América Latina e diversos países da
África e da Ásia, testemunhamos um período de grande expansão dos direitos
humanos, que tornaram muitas de nossas sociedades mais generosas, tolerantes e
inclusivas.
Vivemos hoje um
momento de inflexão. Uma nova onda nacionalista tem naturalizado discursos e
práticas intolerantes e favorecido a ascensão de lideranças autocráticas e
populistas, tanto à direita como à esquerda, colocando mais uma vez em risco
não apenas os valores defendidos pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos, como a própria paz, prosperidade e bem-estar conquistados pelos os
países que foram capazes de promover e respeitar esses direitos.
O grande desafio,
neste momento, não é apenas defender os direitos humanos em relação aos ataques
que vêm recebendo ao redor do mundo, mas buscar convencer nossos interlocutores
--especialmente aqueles que desconfiam dos direitos humanos— que dificilmente encontraremos
paz e prosperidade se não estivermos dispostos a tratar todas as pessoas, sem
exceção, como autênticos sujeitos de direitos.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre
em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela
USP.
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