Paraísos fiscais: Os ricos sem fronteiras
Por Reginaldo Corrêa de Moraes, no Jornal da Unicamp:
O tema dos paraísos fiscais pipocou forte na mídia há perto de dois anos, sobretudo depois da publicação dos Panama Papers, enorme banco de informações reunidas por um consórcio internacional de jornalistas.
Dois desses jornalistas – Bastian Obermayer e Frederik Obermaier – contam parte dessa aventura em um livro [The Panama Papers – breaking the story of how the rich & powerfull hide their money, Oneworld Publicationsd, 2016]. O personagem principal é a firma panamenha Mossack Fonseca, que facilitou as operações de milhares de ricaços e corporações, atividades mais ou menos legais, mais ou menos ilegais, mas todas muito desejosas de sigilo.
O caso se transformou em verdadeira novela, com a revelação dos envolvidos. Políticos, empresários, grandes corporações, celebridades de toda natureza. Os Obermayer, em certo momento do livro, sacam uma frase que me deu o mote da reflexão: dizem eles que tinham descoberto não “a parte menor de nosso sistema econômico. Antes, era o sistema”. Como de fato não explicam a natureza do sistema, no livro ficamos mais limitados à descrição, bastante rica, de seus elementos e de algumas das rotinas da máquina. É bem menos clara a outra face do fenômeno: qual a lógica desse sistema? Por que, enfim, podemos chamá-lo de “sistema”?
Dois livros pretendem dar um passo nessa direção – e não por acaso, já no título fazem referência ao capitalismo global. Um deles é de Mark P. Hampton e Jason P. Abbott – Offshore Finance Centres and Tax Havens – The Rise of Global Capital, ed Palgrave, NY, 1999. O outro é Tax havens: how globalization really works, de Ronen Palan, Richard Murphy e Christian Chavagneux (Cornell University Press, 2010).
Hampton e Abbott começam por enquadrar o paraíso e o offshore finance center (OFC) dentro de uma categoria mais geral – a deslocalização das atividades econômicas em sentido amplo. Em uma palavra, o que temos são Zonas Francas, não apenas finanças em áreas especiais.
Em uma palavra, os paraísos fiscais ou offshore finance centers são um caso especial de um fenômeno mais geral – a criação de zonas (geográficas ou não) imunes à ação do estado, suas regulações e taxações, etc. Outros casos são as zonas especiais de processamento ((EPZs, a sigla em ingles), os nichos de comércio online.
As zonas especiais de processamento são uma espécie de equivalente manufatureiro do paraíso fiscal ou offshore financeiro. No final do séxulo XX, lembram Hampton & Abbott, calculava-se que um quarto das manufaturas do Terceiro Mundo estavam sendo produzidas nas EPZs.
De certo modo, são também zonas francas os nichos de comércio online desterritorializados e os países que cedem suas bandeiras para navios, as chamadas bandeiras de conveniência. É o caso do Panamá, Libéria e até países sem acesso ao mar, como Lichtenstein. São “espaços de exceção” ou “zonas francas”. A rigor, com esta caracterização, podemos incluir até os cassinos virtuais offshore, sex calls centers, tráfico de armas, drogas e órgãos, pornografia e todo tipo de atividade “comercial” vetada pelas vetustas leis dos estados nacionais, incapazes de dar resposta às “necessidades” dos seres humanos. Por que não?
As zonas francas estendem-se portanto a muitas atividades em potencial. E contribuem para radicalizar a libertação da “economia” – cantada em prosa e verso como o lugar do dinamismo e da criação – frente à “política” e ao governo, denegridos como o espaço das burocracias burras, sujas e atrasadas.
Muitas vezes sequer se relocaliza a atividade. Ela é apenas contabilizada em outro lugar. O “booking” é feito ali – a produção, pouco importa. Pode-se produzir um Ipad na Malásia, com baixos custos trabalhistas e tarifários. Vendê-lo barato para Caymans. E depois vender por 10 vezes esse preço para a Califórnia-USA, pagando apenas os impostos (quase nulos) de Caymans. O lugar em que se imprime a fatura e se faz o “booking” tem pouco a ver com o lugar da produção. Também tem pouco a ver com o local onde se fixam o centro de decisão, a pesquisa e o projeto.
Essa desterritorialização facilita muita coisa para a corporação. Entre elas, contornar as conquistas legais dos “territorializados” cidadãos dos estados nacionais.
Nada disso que estamos dizendo é construção imaginária ou arbitrária. É apenas a estilização de uma realidade cada vez mais disseminada. Todos sabemos que grandes corporações multinacionais têm espaços de produção em diferentes países, estabelecem seus centros decisórios e lugares de desenho e projeto em outros e seus departamentos de venda e logística em outros ainda. Hoje, pelo menos um terço do que se chama de comércio internacional – isto é, de bens que circulam entre fronteiras politicas – é de fato “interno” a corporações, é comércio intra-firma. Um terço com tendência de alta. E, por outro lado, uma outra parte, também enorme, é comércio de partes (ou de direitos, publicidade, etc.) com subcontratadas, com condições também muito especiais de faturamento e contabilização. Armadas de recursos como as zonas francas e offshore finance centers, as corporações reduzem seus custos e diminuem seus compromissos com a manutenção dos custos dos estados dos quais cobram proteção e serviços. Não por acaso, presidentes tão distintos quanto Obama e Trump se queixaram da “falta de patriotismo” dessas empresas e de seu descompromisso com a sustentação das finanças de Tio Sam, que, afinal das contas, as protege no mundo inteiro, garante infraestrutura de educação e pesquisa, de ordem e justiça, de estradas e o que mais precisem.
É a luta de classes? Ainda?
Como dissemos, a tremenda expansão dos paraísos, sobretudo depois de 1970, é parte de um movimento histórico de largo espectro, um capítulo daquilo que um dia alguns outros autores chamaram de luta de classes. Hampton e Abbott preferem outro modo de enunciar o padrão, talvez um modo menos marcado ideologicamente:
“Offshore é o produto de um processo histórico através do qual políticas diferentes e coordenadas de estados combinam-se para criar novos e intangíveis lugares (shores), demarcando atividades ou territórios nos quais a regulação estatal e suas taxações são total ou parcialmente suspensas”
Como assim, politicas coordenadas e distintas dos estados? Mas o paraíso não é aquela coisa que fica escondida em umas ilhazinhas com praias e coqueiros?
Sim, a maioria dos OFCs estão localizados em pequenas ilhas, algumas quase invisíveis no mapa. Mas elas estão longe de confrontar ou de viverem sem conexão, uma forte conexão, com as grandes praças financeiras do mundo. Algumas delas, alias, não são exatamente países, são quase-países.
Veja-se o caso da área de influência inglesa, por exemplo. São quase que o fantasma do antigo império britânico. Mas um fantasma que não serve apenas para assombrar. Uma dúzia de ilhas-estados decidiu não declarar independência e, ao invés disso, permaneceu como territórios britânicos de ultramar, a rainha inglesa é a chefe de estado. Um estatuto singular, uma espécie de soberania de conveniência. Algumas dessas ilhas se tornaram paraísos fiscais, de fato apoiadas e geridas a partir da City londrina – Anguilla, Bermudas, Ilhas Virgens, Cayman, Gibraltar, etc.
Em suma, centros como Londres, N. York (ou Tóquio, também) são as estrelas em torno das quais giram essas ilhas paradisíacas.
Ao invés de identificar nessa estrutura um confronto, Hampton e Abbott afirmam que os setores econômicos “mais móveis” são agraciados com um “espaço regulatório especial”, em que o fluxo das riquezas encontra menos interferência governamental.
Palan e seus colegas apontam alguns sinais simples mas claros de que os paraísos são lugares em que parecem ocorrer operações, que de fato ocorrem alhures. É algo diferente da manufatura em zonas francas. Nos paraísos as coisas são registradas, não processadas. Alguns contrastes indicam isso. Por exemplo, o total de ativos e passivos contabilizados nas Cayman soma quase um terço daqueles do Reino Unido. Ora, a City londrina tem uns 340 mil empregados registrados, trabalhando ali naqueles poucos quarteirões. E em Cayman trabalham pouco mais de 5 mil. Ou Cayman é muito eficiente ou então aquilo é apenas um artifício operacional para a City, não um centro bancário de verdade, dizem Palan et all.
Vistas em si mesmas, as ilhas são coisas esquisitas. Veja alguns exemplos.
As ilhas Caymans, de acordo com os relatórios oficiais, tinham em 2005 umas 70 mil companhias registradas, incluindo 430 bancos e trusts, 729 seguradoras e mais de 7 mil fundos. Considerando a população da ilha, cada empresa teria, na média, meio empregado. Menos do que um boteco ou banca de jornal.
A ilha de Jersey tem uns 120 km2, e uma população de 90 mil, 12 mil deles empregados no setor offshore. Mas talvez mais curiosa seja Nauru, descrita como exemplo de excentricidade por Juan H. Vigueras [Los Paraísos Fiscales – Cómo los centros offshore socavan las democracias, Ediciones Akal, Madrid, 2005]
Nauru, no começo do século XX era nada mais do que uma pedra rica em fostato, no meio do mar. Extraído todo o fostato, o “país” virou algo inviável. Árido, sem um porto natural, em grande parte inabitável, o que fazer? Dai, achou seu ramo de negócio: vender ou alugar soberania, isto é, legislação permissiva para certo tipo de piratas. Em 1998 esse perfil ganhou todo seu esplendor: ali desembarcaram dezenas e dezenas de bilhões de dólares procedentes da Rússia, aquela maravilha de “sociedade civil” criada pelo desmantelamento do estado soviético. Vigueras relata a hilária visita de um repórter do NY Times ao “país”. Ele tentou localizar o seu “sistema bancário”: era um grande armazém com muitos computadores e ar-condicionado movido a geradores. Com uma zeladora mal humorada que lhe disse que ali não havia mais ninguém, ele que telefonasse... e que a deixasse em paz com suas vassouras.
Esses pequenos recantos são uma espécie de “soberania de conveniência”. Um exemplo de empreendedorismo peculiar. Em troca de um pagamento, liberam seu acervo (a soberania) para uso de uma clientela de pessoas físicas (bilionários) e jurídicas (corporações, escritórios de advocacia e firmas de auditoria, bancos e financeiras, trusts e fundos de investimento). Esses clientes buscam basicamente isto: impostos baixos ou nulos, sigilo de informações, facilidade para constituir empresas rapidamente. Em geral, nem mesmo é necessário declinar o nome de seus proprietários – no caso dos trusts, no máximo o nome de seus beneficiários.
O tema dos paraísos fiscais pipocou forte na mídia há perto de dois anos, sobretudo depois da publicação dos Panama Papers, enorme banco de informações reunidas por um consórcio internacional de jornalistas.
Dois desses jornalistas – Bastian Obermayer e Frederik Obermaier – contam parte dessa aventura em um livro [The Panama Papers – breaking the story of how the rich & powerfull hide their money, Oneworld Publicationsd, 2016]. O personagem principal é a firma panamenha Mossack Fonseca, que facilitou as operações de milhares de ricaços e corporações, atividades mais ou menos legais, mais ou menos ilegais, mas todas muito desejosas de sigilo.
O caso se transformou em verdadeira novela, com a revelação dos envolvidos. Políticos, empresários, grandes corporações, celebridades de toda natureza. Os Obermayer, em certo momento do livro, sacam uma frase que me deu o mote da reflexão: dizem eles que tinham descoberto não “a parte menor de nosso sistema econômico. Antes, era o sistema”. Como de fato não explicam a natureza do sistema, no livro ficamos mais limitados à descrição, bastante rica, de seus elementos e de algumas das rotinas da máquina. É bem menos clara a outra face do fenômeno: qual a lógica desse sistema? Por que, enfim, podemos chamá-lo de “sistema”?
Dois livros pretendem dar um passo nessa direção – e não por acaso, já no título fazem referência ao capitalismo global. Um deles é de Mark P. Hampton e Jason P. Abbott – Offshore Finance Centres and Tax Havens – The Rise of Global Capital, ed Palgrave, NY, 1999. O outro é Tax havens: how globalization really works, de Ronen Palan, Richard Murphy e Christian Chavagneux (Cornell University Press, 2010).
Hampton e Abbott começam por enquadrar o paraíso e o offshore finance center (OFC) dentro de uma categoria mais geral – a deslocalização das atividades econômicas em sentido amplo. Em uma palavra, o que temos são Zonas Francas, não apenas finanças em áreas especiais.
Em uma palavra, os paraísos fiscais ou offshore finance centers são um caso especial de um fenômeno mais geral – a criação de zonas (geográficas ou não) imunes à ação do estado, suas regulações e taxações, etc. Outros casos são as zonas especiais de processamento ((EPZs, a sigla em ingles), os nichos de comércio online.
As zonas especiais de processamento são uma espécie de equivalente manufatureiro do paraíso fiscal ou offshore financeiro. No final do séxulo XX, lembram Hampton & Abbott, calculava-se que um quarto das manufaturas do Terceiro Mundo estavam sendo produzidas nas EPZs.
De certo modo, são também zonas francas os nichos de comércio online desterritorializados e os países que cedem suas bandeiras para navios, as chamadas bandeiras de conveniência. É o caso do Panamá, Libéria e até países sem acesso ao mar, como Lichtenstein. São “espaços de exceção” ou “zonas francas”. A rigor, com esta caracterização, podemos incluir até os cassinos virtuais offshore, sex calls centers, tráfico de armas, drogas e órgãos, pornografia e todo tipo de atividade “comercial” vetada pelas vetustas leis dos estados nacionais, incapazes de dar resposta às “necessidades” dos seres humanos. Por que não?
As zonas francas estendem-se portanto a muitas atividades em potencial. E contribuem para radicalizar a libertação da “economia” – cantada em prosa e verso como o lugar do dinamismo e da criação – frente à “política” e ao governo, denegridos como o espaço das burocracias burras, sujas e atrasadas.
Muitas vezes sequer se relocaliza a atividade. Ela é apenas contabilizada em outro lugar. O “booking” é feito ali – a produção, pouco importa. Pode-se produzir um Ipad na Malásia, com baixos custos trabalhistas e tarifários. Vendê-lo barato para Caymans. E depois vender por 10 vezes esse preço para a Califórnia-USA, pagando apenas os impostos (quase nulos) de Caymans. O lugar em que se imprime a fatura e se faz o “booking” tem pouco a ver com o lugar da produção. Também tem pouco a ver com o local onde se fixam o centro de decisão, a pesquisa e o projeto.
Essa desterritorialização facilita muita coisa para a corporação. Entre elas, contornar as conquistas legais dos “territorializados” cidadãos dos estados nacionais.
Nada disso que estamos dizendo é construção imaginária ou arbitrária. É apenas a estilização de uma realidade cada vez mais disseminada. Todos sabemos que grandes corporações multinacionais têm espaços de produção em diferentes países, estabelecem seus centros decisórios e lugares de desenho e projeto em outros e seus departamentos de venda e logística em outros ainda. Hoje, pelo menos um terço do que se chama de comércio internacional – isto é, de bens que circulam entre fronteiras politicas – é de fato “interno” a corporações, é comércio intra-firma. Um terço com tendência de alta. E, por outro lado, uma outra parte, também enorme, é comércio de partes (ou de direitos, publicidade, etc.) com subcontratadas, com condições também muito especiais de faturamento e contabilização. Armadas de recursos como as zonas francas e offshore finance centers, as corporações reduzem seus custos e diminuem seus compromissos com a manutenção dos custos dos estados dos quais cobram proteção e serviços. Não por acaso, presidentes tão distintos quanto Obama e Trump se queixaram da “falta de patriotismo” dessas empresas e de seu descompromisso com a sustentação das finanças de Tio Sam, que, afinal das contas, as protege no mundo inteiro, garante infraestrutura de educação e pesquisa, de ordem e justiça, de estradas e o que mais precisem.
É a luta de classes? Ainda?
Como dissemos, a tremenda expansão dos paraísos, sobretudo depois de 1970, é parte de um movimento histórico de largo espectro, um capítulo daquilo que um dia alguns outros autores chamaram de luta de classes. Hampton e Abbott preferem outro modo de enunciar o padrão, talvez um modo menos marcado ideologicamente:
“Offshore é o produto de um processo histórico através do qual políticas diferentes e coordenadas de estados combinam-se para criar novos e intangíveis lugares (shores), demarcando atividades ou territórios nos quais a regulação estatal e suas taxações são total ou parcialmente suspensas”
Como assim, politicas coordenadas e distintas dos estados? Mas o paraíso não é aquela coisa que fica escondida em umas ilhazinhas com praias e coqueiros?
Sim, a maioria dos OFCs estão localizados em pequenas ilhas, algumas quase invisíveis no mapa. Mas elas estão longe de confrontar ou de viverem sem conexão, uma forte conexão, com as grandes praças financeiras do mundo. Algumas delas, alias, não são exatamente países, são quase-países.
Veja-se o caso da área de influência inglesa, por exemplo. São quase que o fantasma do antigo império britânico. Mas um fantasma que não serve apenas para assombrar. Uma dúzia de ilhas-estados decidiu não declarar independência e, ao invés disso, permaneceu como territórios britânicos de ultramar, a rainha inglesa é a chefe de estado. Um estatuto singular, uma espécie de soberania de conveniência. Algumas dessas ilhas se tornaram paraísos fiscais, de fato apoiadas e geridas a partir da City londrina – Anguilla, Bermudas, Ilhas Virgens, Cayman, Gibraltar, etc.
Em suma, centros como Londres, N. York (ou Tóquio, também) são as estrelas em torno das quais giram essas ilhas paradisíacas.
Ao invés de identificar nessa estrutura um confronto, Hampton e Abbott afirmam que os setores econômicos “mais móveis” são agraciados com um “espaço regulatório especial”, em que o fluxo das riquezas encontra menos interferência governamental.
Palan e seus colegas apontam alguns sinais simples mas claros de que os paraísos são lugares em que parecem ocorrer operações, que de fato ocorrem alhures. É algo diferente da manufatura em zonas francas. Nos paraísos as coisas são registradas, não processadas. Alguns contrastes indicam isso. Por exemplo, o total de ativos e passivos contabilizados nas Cayman soma quase um terço daqueles do Reino Unido. Ora, a City londrina tem uns 340 mil empregados registrados, trabalhando ali naqueles poucos quarteirões. E em Cayman trabalham pouco mais de 5 mil. Ou Cayman é muito eficiente ou então aquilo é apenas um artifício operacional para a City, não um centro bancário de verdade, dizem Palan et all.
Vistas em si mesmas, as ilhas são coisas esquisitas. Veja alguns exemplos.
As ilhas Caymans, de acordo com os relatórios oficiais, tinham em 2005 umas 70 mil companhias registradas, incluindo 430 bancos e trusts, 729 seguradoras e mais de 7 mil fundos. Considerando a população da ilha, cada empresa teria, na média, meio empregado. Menos do que um boteco ou banca de jornal.
A ilha de Jersey tem uns 120 km2, e uma população de 90 mil, 12 mil deles empregados no setor offshore. Mas talvez mais curiosa seja Nauru, descrita como exemplo de excentricidade por Juan H. Vigueras [Los Paraísos Fiscales – Cómo los centros offshore socavan las democracias, Ediciones Akal, Madrid, 2005]
Nauru, no começo do século XX era nada mais do que uma pedra rica em fostato, no meio do mar. Extraído todo o fostato, o “país” virou algo inviável. Árido, sem um porto natural, em grande parte inabitável, o que fazer? Dai, achou seu ramo de negócio: vender ou alugar soberania, isto é, legislação permissiva para certo tipo de piratas. Em 1998 esse perfil ganhou todo seu esplendor: ali desembarcaram dezenas e dezenas de bilhões de dólares procedentes da Rússia, aquela maravilha de “sociedade civil” criada pelo desmantelamento do estado soviético. Vigueras relata a hilária visita de um repórter do NY Times ao “país”. Ele tentou localizar o seu “sistema bancário”: era um grande armazém com muitos computadores e ar-condicionado movido a geradores. Com uma zeladora mal humorada que lhe disse que ali não havia mais ninguém, ele que telefonasse... e que a deixasse em paz com suas vassouras.
Esses pequenos recantos são uma espécie de “soberania de conveniência”. Um exemplo de empreendedorismo peculiar. Em troca de um pagamento, liberam seu acervo (a soberania) para uso de uma clientela de pessoas físicas (bilionários) e jurídicas (corporações, escritórios de advocacia e firmas de auditoria, bancos e financeiras, trusts e fundos de investimento). Esses clientes buscam basicamente isto: impostos baixos ou nulos, sigilo de informações, facilidade para constituir empresas rapidamente. Em geral, nem mesmo é necessário declinar o nome de seus proprietários – no caso dos trusts, no máximo o nome de seus beneficiários.
Uma das mãos lava a outra
Palan et all. insistem na tecla: a existência dos paraísos " fragiliza os processos regulatórios e tributários dos estados principais”. Contudo, como dissemos, a legislação dos estados centrais – aqueles com legislação supostamente menos permissiva – precisam ter brechas pelas quais as operações em PFs sejam de algum modo internalizadas. Desse modo, dizem Palan et all, os paraísos "existem não em oposição ao estado, mas em acordo com ele", são parte integral das práticas de negócios.
Parte essencial do “sistema”, ou, mais precisamente, dos dispositivos através dos quais as corporações e os bilionários convivem com as regulações que tiveram que engolir ao longo dos últimos cem anos. Com o uso dessas ilhas de exceção, os detentores do capital "evitam ou reduzem sua participação no esforço coletivo que sustenta os bens coletivos”. Em suma, jogam tal custo sobre outros ombros.
A disseminação dos paraísos e sua quase impossível detecção e controle ficou marcada, com certa dose de humor negro, em um bate-boca entre Obama e um representante de Caymans. O presidente americano atacou as ilhas dizendo que o “maior dos prédios da ilha era também o maior dos trambiques”, uma vez que abrigava 12 mil corporações. O chefe da Autoridade Financeira da ilha, Antony Travers, disse a ele que seria mais prudente que Obama desse uma olhada no edifício da rua North Orange, numero 1209, em Wilmington, Delaware – ali estavam sediadas nada menos do que 217 mil companhias... Delaware, a uns 30 minutos da residência do Obama. Um dos quatro ou cinco paraísos “ilhados” no território norte-americano.... O estado de Delaware tem uns 900 mil habitantes e igual número de corporações em atividade. Por alguma razão tais coisas milagrosas ocorrem.
O Delaware é o segundo menor estado Americano. Estima-se que metade das empresas negociadas em bolsa é ali incorporada. E uns dois terços daquelas que compõe a famosa lista da Fortune 500. Nomes como Coca-Cola, GM, ExxonMobil. As corporações não têm ali seus centros decisórios, ali está o seu “registro” apenas. De fato, é uma espécie de paraíso fiscal desde o começo do século XX, graças à influência da família Dupont, que “moldou” o governo estadual dessa forma. E agora outros estados americanos se transformam em paraísos adaptados.
Mas o representante de Cayman teria muitas outras respostas para desafiar a bravata de Obama. Poderia perguntar por exemplo as razões que levam o Citygroup, do padrinho politico de Obama, Rubin, a estabelecer mais de 400 subsidiárias em paraísos, várias delas... em Cayman. O mesmo poderia ser dito do Morgan Stanley e suas trezentas afiliadas. Ou as gigantes fraudulentas como a Enron, que tinha mais de 800 dessas pontas no momento em que faliu.
A Suíça reinava nesse campo, até 1980. A partir daí, a constelação de ilhas do tesouro expandiu-se brutalmente. Não é coincidência que isso tenha ocorrido com a emergência de programas neoconservadores, ultraliberais, que desregularam quase tudo – comércio internacional, leis do trabalho, mercados financeiros. E promoveram políticas deliberadas de concentração de renda, como os cortes de impostos para o andar de cima e para os ganhos de capital. Esse dinheiro a mais na carteira dos capitalistas não voltou para a produção, voou para os paraísos e para as aplicações especulativas, aquelas que não produzem um prego ou sapato.
O grande capital primeiro tentou impedir as taxações nacionais. Depois, tentou sabotar. Depois, contornar. Com o tempo e com acumulação de força e experiência, ganhou confiança para transformar o mundo inteiro em seu paraíso. Mas... quando as corporações e os ricos forem livres para não pagar imposto algum, quem pagará pelos serviços públicos? Sim, é isso mesmo que você pensou. A ironia da história é que talvez muitos trabalhadores e grande parte da classe média participarão de mobilizações para “diminuir o Estado” e afrouxar as leis tarifárias.
Palan et all. insistem na tecla: a existência dos paraísos " fragiliza os processos regulatórios e tributários dos estados principais”. Contudo, como dissemos, a legislação dos estados centrais – aqueles com legislação supostamente menos permissiva – precisam ter brechas pelas quais as operações em PFs sejam de algum modo internalizadas. Desse modo, dizem Palan et all, os paraísos "existem não em oposição ao estado, mas em acordo com ele", são parte integral das práticas de negócios.
Parte essencial do “sistema”, ou, mais precisamente, dos dispositivos através dos quais as corporações e os bilionários convivem com as regulações que tiveram que engolir ao longo dos últimos cem anos. Com o uso dessas ilhas de exceção, os detentores do capital "evitam ou reduzem sua participação no esforço coletivo que sustenta os bens coletivos”. Em suma, jogam tal custo sobre outros ombros.
A disseminação dos paraísos e sua quase impossível detecção e controle ficou marcada, com certa dose de humor negro, em um bate-boca entre Obama e um representante de Caymans. O presidente americano atacou as ilhas dizendo que o “maior dos prédios da ilha era também o maior dos trambiques”, uma vez que abrigava 12 mil corporações. O chefe da Autoridade Financeira da ilha, Antony Travers, disse a ele que seria mais prudente que Obama desse uma olhada no edifício da rua North Orange, numero 1209, em Wilmington, Delaware – ali estavam sediadas nada menos do que 217 mil companhias... Delaware, a uns 30 minutos da residência do Obama. Um dos quatro ou cinco paraísos “ilhados” no território norte-americano.... O estado de Delaware tem uns 900 mil habitantes e igual número de corporações em atividade. Por alguma razão tais coisas milagrosas ocorrem.
O Delaware é o segundo menor estado Americano. Estima-se que metade das empresas negociadas em bolsa é ali incorporada. E uns dois terços daquelas que compõe a famosa lista da Fortune 500. Nomes como Coca-Cola, GM, ExxonMobil. As corporações não têm ali seus centros decisórios, ali está o seu “registro” apenas. De fato, é uma espécie de paraíso fiscal desde o começo do século XX, graças à influência da família Dupont, que “moldou” o governo estadual dessa forma. E agora outros estados americanos se transformam em paraísos adaptados.
Mas o representante de Cayman teria muitas outras respostas para desafiar a bravata de Obama. Poderia perguntar por exemplo as razões que levam o Citygroup, do padrinho politico de Obama, Rubin, a estabelecer mais de 400 subsidiárias em paraísos, várias delas... em Cayman. O mesmo poderia ser dito do Morgan Stanley e suas trezentas afiliadas. Ou as gigantes fraudulentas como a Enron, que tinha mais de 800 dessas pontas no momento em que faliu.
A Suíça reinava nesse campo, até 1980. A partir daí, a constelação de ilhas do tesouro expandiu-se brutalmente. Não é coincidência que isso tenha ocorrido com a emergência de programas neoconservadores, ultraliberais, que desregularam quase tudo – comércio internacional, leis do trabalho, mercados financeiros. E promoveram políticas deliberadas de concentração de renda, como os cortes de impostos para o andar de cima e para os ganhos de capital. Esse dinheiro a mais na carteira dos capitalistas não voltou para a produção, voou para os paraísos e para as aplicações especulativas, aquelas que não produzem um prego ou sapato.
O grande capital primeiro tentou impedir as taxações nacionais. Depois, tentou sabotar. Depois, contornar. Com o tempo e com acumulação de força e experiência, ganhou confiança para transformar o mundo inteiro em seu paraíso. Mas... quando as corporações e os ricos forem livres para não pagar imposto algum, quem pagará pelos serviços públicos? Sim, é isso mesmo que você pensou. A ironia da história é que talvez muitos trabalhadores e grande parte da classe média participarão de mobilizações para “diminuir o Estado” e afrouxar as leis tarifárias.
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