quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A ascensão dos populistas autoritários



A ascensão dos populistas autoritários

Número de ditaduras militares caiu acentuadamente, mas as ditaduras pessoais pseudodemocráticas estão em ascensão

Martin Wolf
LONDRES
O autoritarismo está em marcha. E não apenas nos países relativamente pobres. Está em marcha também nos países prósperos —o que inclui, significativamente, os Estados Unidos, o país que promoveu e defendeu a democracia liberal ao longo do século 20.
Donald Trump é um exemplo clássico de populista que aspira ao autoritarismo. As instituições dos Estados Unidos podem frear sua ascensão ao poder irrestrito que busca. Mas a ameaça que ele representa parece clara.
Como devemos entender o ressurgimento do autoritarismo? Que forma ele toma, agora? Que responsabilidade cabe à elite pelo seu sucesso? Essas são algumas das questões mais importantes que os ocidentais precisam responder.
E a maneira pela qual as responderemos determinará a forma que o mundo vai tomar. Se abandonarmos a causa, pela qual tanto sangue foi derramado, como podemos esperar que outros acreditem nela? Estaríamos entregando o planeta a Xi JinpingVladimir Putin e outras pessoas que veem o mundo à maneira deles.
Erica Frantz, da Universidade Estadual de Michigan, ilumina os modos do autoritarismo contemporâneo em um livro curto intitulado "Authoritarianism: What Everyone Needs to Know" [autoritarismo: o que todos precisam saber]. Ela destaca dois pontos principais.
O primeiro é que, hoje, a maneira mais comum para que regimes autoritários surjam é que consumam a democracia de dentro para fora, como as larvas de certas vespas devoram os escorpiões que lhes servem de hospedeiros. Processos desse tipo respondem por até 40% de todos os colapsos de regimes democráticos contemporâneos.
Segundo, esses novos regimes muitas vezes assumem o que a autora define como "a forma mais perigosa de ditadura": um domínio pessoal ou personalista. Entre 2000 e 2010, 75% das transformações de democracias em ditaduras terminaram dessa maneira. Como exemplo temos a Rússia de Putin, a Venezuela de Hugo Chávez, e a Turquia de Recep TayyipErdogan.
Uma questão crucial é como definir "autoritarismo". E a resposta é: "ausência de democracia". Democracia, por sua vez, significa um sistema em que eleições livres e justas determinam quem detém o poder.
Assim, o Estado precisa permitir a expressão livre de opiniões, uma imprensa livre, a execução imparcial das leis eleitorais, voto universal para os adultos, e o direito dos opositores políticos a obter os recursos de que necessitam.
Hoje, eleições conferem legitimidade. Por esse motivo, muitos autoritários oferecem "pseudodemocracia" mas não sua realidade. As eleições em seus países são uma forma de teatro.
Todo mundo sabe que o líder não permitirá que o derrotem. Um regime como esse não é apenas um pouco diferente da democracia: é um animal completamente distinto.
Historicamente, o número de regimes autoritários chegou a um pico em 1980 e depois caiu acentuadamente, chegando ao seu número mais baixo na metade da década passada. De lá para cá, porém, como aponta Frantz, a democracia vem sofrendo um lento recuo.
Além disso, a autocracia deixou de ser um fenômeno restrito a países em desenvolvimento, e com isso "muitas das democracias que parecem estar à beira de uma transição para ditaduras ficam na Europa".
Também houve uma mudança acentuada na forma do autoritarismo, com o tempo. O Estado de partido único, como a China, é uma raridade. O número de ditaduras militares caiu acentuadamente, mas o número de ditaduras pessoais pseudodemocráticas está em ascensão.
Os traços característicos dessas ditaduras pessoais incluem; um círculo estreito de pessoas leais ao líder; o posicionamento de pessoas leais nas posições de poder; promoção de parentes; criação de um novo movimento político; o uso de referendos como forma de justificar decisões; e a criação de novos serviços de segurança leais ao líder.
Uma característica desses homens fortes é que eles começam como populistas. Argumentam que só eles, assim que obtiverem poderes extraordinários, poderão resolver os problemas do país.
Afirmam que a elite tradicional é corrupta e incompetente. Insistem em que os especialistas, o judiciário e a mídia não merecem confiança. Em lugar disso, os eleitores precisam confiar na intuição do líder, que corporifica o povo. Esses argumentos também justificam a repressão aos "inimigos do povo", o que torna uma democracia genuína impossível.
Rodrigo Duterte, das Filipinas, está no caminho do populismo para a ditadura, assim como Viktor Orban, na Hungria. Sua "democracia iliberal" é um eufemismo para autoritarismo. Para mim seria uma surpresa que Jair Bolsonaro não siga esse caminho no Brasil.
Quanto a Trump, ele também é um populista de direita com traços autoritários. Mas as instituições dos Estados Unidos o cerceiam.
No entanto, as instituições costumam ser tão boas quanto as pessoas que as dirigem. E muitas das pessoas em posição de comando estão dispostas a permitir que Trump faça o que quer.
As autocracias que vemos hoje apresentam diferenças importantes para com aquelas que os partidos fascistas da Itália ou Alemanha criaram na primeira metade do século 20. Exigem mais aquiescência que participação entusiástica. São mais manipuladoras que descontroladamente brutais.
Como aponta Martin Gurri em "The Revolt of the Public and the Crisis of Authority in the New Millennium" [a revolta do público e a crise de autoridade do novo milênio], essa mudança se conecta em parte à queda da velha mídia de massa.
As novas mídias são muito menos eficientes na disseminação de uma mensagem de propaganda unificada do que as mídias do passado. Mas são magníficas na difusão de dúvidas.
Ao destruir a autoridade dos especialistas, da elite e da "velha mídia", a nova mídia abre caminho a empreiteiros políticos hábeis em explorar ressentimentos e solapar a ideia de verdade.
A boa notícia é que até o momento esses falsos profetas não conseguiram conduzir nenhuma das democracias de alta renda à autocracia. A maquinaria da democracia sobrevive, como as eleições de novembro passado provaram nos Estados Unidos.
Mesmo assim, em muitos países, populistas com tendências autoritárias estão à beira do poder. E os fracassos das elites governamentais e empresariais existentes —com sua indiferença ao destino de boa parte da população, sua cobiça e sua incompetência, demonstradas tão claramente nas crises financeiras inesperadas da Europa e Estados Unidos —são fortemente culpados por isso.
Políticos cínicos, para os quais mentir é tão fácil quanto respirar, fazem progresso diante de populações que já encaram com cinismo as pessoas que estão no poder. Seus partidários podem ou não acreditar que o novo líder tem a resposta, Mas estão convictos de que os velhos líderes não a têm.
As dificuldades que Emmanuel Macron encontrou na França sugerem que essa poderosa dinâmica continua válida. Mas as novas autocracias não oferecem soluções: Putin conduziu a Rússia a um declínio econômico continuado.
A promessa de Trump de que "tornará a América grande de novo" é uma fraude. Ao solapar instituições independentes, líderes como esses por fim tornarão seus países mais pobres e seus povos menos livres.
Quem tem a sorte de viver em democracias governadas pela lei precisa se dedicar a tornar o mundo melhor. Essa tarefa se tornou um desafio. Mas também é a única maneira de garantir que os sistemas políticos existentes sejam transferidos intactos —idealmente, melhorados —às gerações seguintes. Pessoal de Davos, anote: essa é a sua clara responsabilidade.
Tradução de Paulo Migliacci
FINANCIAL TIMES
Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Lei e/ou crime

Lei e/ou crime

Flávio e Jair Bolsonaro foram, no passado, defensores de milícias e esquadrões da morte


Joel Pinheiro da Fonseca


Conforme brilhantemente mostrado por Celso Rocha de Barros em sua coluna desta segunda (28), Fabrício Queiroz —ex-assessor de Flávio Bolsonaro— parece afundado até o pescoço em sua relação com a milícia de Rio das Pedras. Com as informações disponíveis hoje, contudo, não dá para estabelecer um vínculo concreto entre a família Bolsonaro e alguma milícia carioca.
 
No plano ideológico, no entanto, a ligação é direta: não só Flávio, como também Jair Bolsonaro foram, no passado, defensores de milícias e esquadrões da morte.
Em 2003, em discurso na tribuna da Câmara sobre a atuação de um grupo de extermínio na Bahia, o então deputado Jair Bolsonaro opinou: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio.”
Em 2008, novamente na Câmara, defendeu a instituição da milícia. “Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet, com venda de gás. Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade.”
Ou seja, a possível objeção de Bolsonaro às milícias era às atividades paralelas por elas desempenhadas, como o gatonet (provavelmente necessárias a seu sustento), e não à sua essência: o uso ilegal da violência para supostamente combater o crime.
Em meio a infinitas discussões sobre o papel do Estado, todos —salvo anarquistas— concordam com uma atribuição fundamental: deter o monopólio do uso da violência dentro de seu território, e com ele garantir a lei e a ordem. Como em tantas outras, o Estado brasileiro vem falhando miseravelmente nisso. A violência aumenta sem parar e o Estado não dá mostras de conseguir combater efetivamente os criminosos e nem de impedir sua organização.
Na ausência do Estado de Direito, formam-se grupos armados para manter a segurança, que adotam as mesmas práticas dos criminosos que dizem combater. No caso das milícias, reproduzem a violência mais desumana dos atos mais corruptos da polícia como forma de garantir a ordem dentro de um território. São os expedientes que já conhecemos: extorsão, execução, chacina. 
O apoio pregresso dos Bolsonaro às milícias casa bem com as bandeiras específicas que trazem para a segurança pública. A primeira é armar a população e permitir o porte de arma generalizado, terceirizando o combate ao crime. A segunda é o salvo-conduto para que policiais não sejam responsabilizados caso matem inocentes. Em ambos os casos, é o arbítrio (e os interesses? Os preconceitos?) armado que solucionará o crime nas ruas. Fortalecem-se as milícias, abole-se a lei.
Em entrevista ao Roda Viva no ano passado, Bolsonaro foi perguntado acerca do assalto que sofrera em 1995. Ele armado, foi rendido e teve sua moto e sua arma roubadas, uma situação que não se deseja a ninguém. Na resposta, Bolsonaro soltou ainda um comentário enigmático: algum tempo depois do crime, o chefe do tráfico na favela em que sua moto fora encontrada, Jorge Luís dos Santos, morreu.
Não só o traficante morreu num misterioso suicídio por enforcamento na prisão, como sua mãe e sua esposa foram encontradas mortas. Tudo para proteger o cidadão de bem. Será esse o novo modelo de “justiça” que a revolução ética do novo governo propõe?
Joel Pinheiro da Fonseca