Brumadinho e a privatização da Vale
Por Mouzar Benedito, na revista Fórum:
O que interessa a uma empresa? Lucros. Qualquer despesa que diminua os lucros vai contra o interesse dos acionistas. Esta é a lógica. E parece que empresas estatais, quando privatizadas, querem mais ainda “mostrar serviço”, provar que nas mãos de capitalistas elas são muito mais “eficientes”. Entenda-se como “eficientes” lucrativas.
Então, tragédias como as de Mariana e Brumadinho estão dentro desta lógica, embora tenhamos governos (há muito tempo, talvez sempre, não é de hoje) que agem como donos de empresas. Mas lembro que algumas empresas estatais assumiam um monte de responsabilidades sociais, como custear sistemas de educação e saúde em municípios em que atuavam.
Aliás, quando vejo alguém falar que “tal coisa – seja um time de futebol ou uma instituição qualquer – tem que funcionar como uma empresa, logo penso: descuidar de tudo que é social, desprezar questões ambientais, fazer que desgraça for para reduzir custos (demitir gente, por exemplo) e aumentar os lucros.
Mas quero falar aqui da privatização da Vale.
FHC era ainda ministro da Fazenda do governo Itamar, quando falou pela primeira vez em privatizar essa empresa que era simbólica para o Brasil, além de tudo eficiente, lucrativa, sabia que a grande maioria dos brasileiros não ia concordar. Então disse que com a privatização da empresa, que era avaliada em 120 bilhões de dólares, conseguiria pagar toda a dívida externa brasileira, e assim não pagaria mais juros, e o dinheiro seria convertido para a educação, a saúde etc.
Aí, muita gente que era contrária vacilou. “Bom… Se é assim, pode valer a pena”. E muitos foram se acostumando com a ideia.
Já como presidente, FHC falou de novo em privatizar. Só que dessa vez falou em 60 bilhões de dólares. “Uai… baixou pela metade?”, eu perguntei a uns colegas jornalistas do DCI, onde eu era subeditor de Economia. Muitos empresários falaram nos jornais que 60 bilhões estava muito bem pago. Pedi a uma repórter que ligasse para cada um desses que deram essas declarações e perguntasse: se a Vale fosse dele, ele venderia por esse preço? A resposta de todos foi xingamentos. Diziam que o valor não interessava, o que valia era tirar a produção de minério do Estado, que isso não era função dele.
Mais uma vez, os críticos foram se acostumando com o novo valor. Um dia, mais uma avaliação do governo: privatizando a Vale, ele conseguiria 30 bilhões. Metade da metade do valor citado inicialmente! Mas não parou aí. Tempos depois, baixou para 15 bilhões. E no final “vendeu” por 3,2 bilhões! E mais: o “comprador” só começaria a pagar dali a 5 anos. E mais ainda: o governo dizia que não tinha dinheiro para modernizar a Vale, mas emprestou à empresa que a “comprou” um bilhão, também para começar a pagar dali a 5 anos. Até eu, sem um tostão no bolso, podia comprar a Vale assim, pois em dois anos, no máximo três, já teria tido lucro maior do que isso tudo. Do zero eu teria pulado para dono de bilhões, pagava tudo e sobrava.
Dali uns anos, a Vale comprou uma siderúrgica australiana muito menor do que ela (claro) por 17 ou 18 bilhões de dólares!!!
É preciso lembrar ainda que o que foi entregue aos novos donos não foram só as fábricas, as usinas. Uma área total de 351.723 quilômetros quadrados, maior do que a soma dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, fez parte do pacote, como área de pesquisa e lavra de minérios. Só na área de Parauapebas (Pará), onde fica a mina de Carajás, são 411,9 mil hectares. Já li em algum lugar que as reservas minerais entregues à Vale na privatização valem 1,5 trilhão de dólares. Um trilhão e meio!!!
Outra comparação possível neste caso: a Alemanha tem um de 357,3 mil quilômetros quadrados, é quase igual à área sobre a qual a Vale tem direito de explorar minérios. Pergunte ao governo alemão se ele “venderia” toda a concessão de exploração mineral de seu território a uma empresa. E por US$ 3,2 bilhões!
Querem comparar com outros países? O Reino Unido (que inclui Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) tem 242,5 mil quilômetros quadrados. A Itália tem 302 mil quilômetros quadrados. Portanto a área concedida à Vale é bem maior do que o subsolo do Reino Unido inteiro, ou da Itália. E por US$ 3,2 milhões, repito.
Lembro ainda que na época do leilão de privatização, em maio de 1997, houve uma enxurrada de ações contra a privatização. Parece-me que foram cerca de 180 (não consegui achar o número certo). Um ministro do supremo (também não me lembro quem) recebeu essas cerca de 180 ações para julgar e imaginei quantos anos demoraria para fazer isso, pois uma ação no STF demorava um tempo enorme. Bom, ele recebeu a incumbência numa terça-feira e disse que só poderia entregar o resultado na segunda. E fez isso. Será que ele teve tempo de ler um décimo desses questionamentos? Mas mesmo assim o governo FHC ficou irritadíssimo, porque queria leiloar na sexta-feira. Quando quer, a “Justiça” é rápida, não é?
Para terminar, lembro que uma das justificativas para todo o processo de entrega das empresas estatais ao capital privado era isso de zerar a dívida externa e quase toda a dívida pública. Sei que o dinheiro evaporou e a dívida (incluindo a externa) só cresceu. Foram arrecadados 78,6 bilhões de dólares pelo governo FHC, com as privatizações, e a dívida pública, que era de 78 bilhões em 1996, pulou para 245 bilhões em 2002, último ano do governo FHC.
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