Convicção da boçalidade é tal que fica difícil não ser vencido pela exaustão
Bernardo Carvalho
A idiotia sequestrou a inteligência. São tantas as frentes de batalha e os ataques em série, e tal a impermeabilidade da má-fé e a convicção da boçalidade, que no final fica difícil não sair de campo vencido pela exaustão e mais burro do que se entrou.
Em um embate recente, cara a cara com um tipo de ideologia que eu conheço bem da internet, mas não podia imaginar sob a aparência simpática da gerente de uma papelaria do meu bairro, deparei com uma ultradireitista exultante da sua recente saída do armário.
Na volta do Ano-Novo, fui à papelaria comprar um envelope. Enquanto eu pagava, entrou um homem de camisa azul. A gerente exclamou, excitada: “É isso aí, seu Fulano! Camisa azul! Isso mesmo! Daqui pra frente, é menino de azul e menina de rosa!”.
Achei que ela estivesse brincando. A gerente é adulta. “Semana que vem, a ministra dos Direitos Humanos vai decretar qual deve ser a cor da sua calcinha e da minha cueca”, brinquei também. Mas a gerente não achou graça: “Você não entendeu a metáfora”. Metáfora do quê? “Da ideologia de gênero.”
A gerente me explicou que não é só a educação sexual nas escolas que ameaça transformar legiões de crianças em homossexuais: “Acredito em tudo o que esse governo diz e faz. Vamos resolver os problemas deste país”. Tentei ponderar: “Mas a ministra dos Direitos Humanos, num país com dezenas de milhares de assassinatos por ano, a maioria jovens e negros, falando de ‘ideologia de gênero’?”.
“Você deve ser dos esquerdistas que defendem a investigação da morte daMarielle, não é? Deviam investigar a morte da dona Marisa”, ela lacrou com um sorriso boçal e sinistro, depois de dizer que era amiga do ministro do Meio Ambiente, que tinham vencido o referendo contra o desarmamento e que não era “ditadura militar”, como eu decerto dizia, mas “regime militar”.
Quer o bom senso que, em situações desse calibre, o ser racional, ainda sem porte de armas, reaja com tranquilidade, preservando-se de maiores desgastes e dispersões e voltando-se para pautas positivas e revigorantes. Não é o meu caso. Estou cheio.
Trouxe da viagem de fim de ano uma coletânea de ensaios de RebeccaSolnit: “Call Them by Their True Names” (chame-os pelos verdadeiros nomes).
Teria sido um ótimo começo. Metade do estrago que está acontecendo poderia ter sido evitado se desde o início tivéssemos chamado as coisas pelos seus verdadeiros nomes.
Num dos textos, “Hope in Grief” (esperança na dor), a ensaísta americana diz que se sente encorajada pela angústia, pela fúria e pela dor de seus compatriotas. “É um alívio que tantos não estejam indiferentes”, ela escreve em relação ao que chama de “golpe em câmera lenta” do governo Trump.
Reconhece que cerca de um terço dos americanos ainda apoiam o presidente: “Querem voltar a um país semi-imaginário onde homens brancos controlavam tudo, as mulheres permaneciam caladas, os não brancos eram subservientes, a heterossexualidade era obrigatória e a destruição do meio ambiente, desregulada”. É para esse país que a gerente da papelaria do meu bairro também quer ir.
Para quem acha que o que importa é apenas o núcleo duro da economia e que o resto é decorrência, Solnit tem uma resposta: “Noto com frequência que, antes de privatizar um banco ou uma ferrovia, você tem que privatizar imaginações e convencer as pessoas de que não temos nada de importante em comum uns com os outros; que não devemos nada uns aos outros; que nossas vidas estão idealmente circunscritas ao âmbito doméstico e pessoal; que somos consumidores e não cidadãos”.
Parte significativa do eleitorado brasileiro parece já estar convencida disso. De tanto se debater para não pagar o pato e salvar a própria pele, não percebe que a saída está do outro lado: “Em parte, sabemos que esta é uma crise, um desastre e uma emergência, pela maneira como as pessoas [os americanos não indiferentes] acordaram e reagiram. São parte de uma sociedade civil, preocupam-se com estranhos e com o bem comum e estão dispostas a mudar ou arriscar suas vidas (...) pelos princípios que este país tantas vezes declarou, mas nem sempre cumpriu”, escreve Solnit.
Entre nós, falta saber quando é que vamos acordar para o verdadeiro nome da crise: que o que está em jogo como contrapartida da promessa de salvação da economia no governo Bolsonaro não é o fim de alguns detalhes sem importância, mas a perda de vista desse bem comum, de um país onde se pode viver com direitos constitucionais preservados, bom senso e em liberdade.
Trouxe da viagem de fim de ano uma coletânea de ensaios de RebeccaSolnit: “Call Them by Their True Names” (chame-os pelos verdadeiros nomes).
Teria sido um ótimo começo. Metade do estrago que está acontecendo poderia ter sido evitado se desde o início tivéssemos chamado as coisas pelos seus verdadeiros nomes.
Num dos textos, “Hope in Grief” (esperança na dor), a ensaísta americana diz que se sente encorajada pela angústia, pela fúria e pela dor de seus compatriotas. “É um alívio que tantos não estejam indiferentes”, ela escreve em relação ao que chama de “golpe em câmera lenta” do governo Trump.
Reconhece que cerca de um terço dos americanos ainda apoiam o presidente: “Querem voltar a um país semi-imaginário onde homens brancos controlavam tudo, as mulheres permaneciam caladas, os não brancos eram subservientes, a heterossexualidade era obrigatória e a destruição do meio ambiente, desregulada”. É para esse país que a gerente da papelaria do meu bairro também quer ir.
Para quem acha que o que importa é apenas o núcleo duro da economia e que o resto é decorrência, Solnit tem uma resposta: “Noto com frequência que, antes de privatizar um banco ou uma ferrovia, você tem que privatizar imaginações e convencer as pessoas de que não temos nada de importante em comum uns com os outros; que não devemos nada uns aos outros; que nossas vidas estão idealmente circunscritas ao âmbito doméstico e pessoal; que somos consumidores e não cidadãos”.
Parte significativa do eleitorado brasileiro parece já estar convencida disso. De tanto se debater para não pagar o pato e salvar a própria pele, não percebe que a saída está do outro lado: “Em parte, sabemos que esta é uma crise, um desastre e uma emergência, pela maneira como as pessoas [os americanos não indiferentes] acordaram e reagiram. São parte de uma sociedade civil, preocupam-se com estranhos e com o bem comum e estão dispostas a mudar ou arriscar suas vidas (...) pelos princípios que este país tantas vezes declarou, mas nem sempre cumpriu”, escreve Solnit.
Entre nós, falta saber quando é que vamos acordar para o verdadeiro nome da crise: que o que está em jogo como contrapartida da promessa de salvação da economia no governo Bolsonaro não é o fim de alguns detalhes sem importância, mas a perda de vista desse bem comum, de um país onde se pode viver com direitos constitucionais preservados, bom senso e em liberdade.
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