domingo, 28 de abril de 2019

Sinal dos tempos:



Sinal dos tempos: quase 1/5 dos seguidores de Sergio Moro no Twitter seriam robôs

Em uma semana em que a mídia dá mostras da vitalidade do jornalismo de dados e revela a queda dos homicídios dolososo crescimento das mortes decorrentes de intervenção policial, bem como a tragédia do nosso sistema prisional, o Brasil ficou, mais uma vez, tomado pela cortina de fumaça ideológica que o Governo de Jair Bolsonaro insiste em propagar.
São tantas as frentes de batalha que são abertas todas as semanas que os temas fundamentais de políticas públicas vão sendo esquecidos e ficam, em geral, em segundo plano, sobretudo nas redes sociais. Não discutimos como identificar boas práticas governamentais e promover avanços na melhoria da Segurança, da Saúde, da Educação, da geração de Emprego e Renda, da Economia, da Assistência Social, do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos, entre outros temas.
Ficamos reféns da agenda bolsonarista que discute o bem contra o mal. Somos reféns da ideia equivocada de que tudo o que existe é ruim e que agora a administração Bolsonaro precisa “resgatar” o Brasil da “corrupção da esquerda” e da “depravação moral” em que fomos submersos. A gestão Bolsonaro está conseguindo avançar aceleradamente na desconstrução da institucionalidade das políticas públicas estabelecida pela Constituição de 1988, que se assenta no pressuposto de que devemos pensá-la a partir da ideia da universalidade de direitos e reconhecimento das identidades e diferenças.
Engana-se quem acha que os conflitos internos da coalizão que nos governa está impedindo – ou ao menos retardando – a reconfiguração política e institucional do Brasil.
Na ausência de uma ética pública baseada na não violência e na cidadania, tudo o que não é espelho é visto como imoral (aliás, ética é um campo da Filosofia e que agora também é combatido). Atualmente, ao que tudo indica, o governo Bolsonaro está conseguindo estabelecer, mesmo que no contraponto contínuo, o frame (as fronteiras) do debate público, em muito apoiado pelo pretenso papel democrático das redes sociais.
Diz a lenda que as redes sociais são territórios de democratização da informação, aparentemente sem donos e leis. Mas, de fato, elas são tomadas e manipuladas pelos senhores da guerra ideológica que comandam exércitos de robôs e buscam fortalecer posições, interesses econômicos e porta-vozes de seus projetos de Poder.
Análises conduzidas por João Akio, no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trazem dois exemplos que resumem o argumento aqui exposto. A primeira mostra que na semana da divulgação da prisão dos acusados de matar Marielle Franco, que foi alçada pela ultra direita a símbolo do que deve ser combatido em termos morais e políticos, houve um esforço de diminuir o impacto da notícia relacionando-a com questões sobre o atentando sofrido pelo Presidente Jair Bolsonaroe sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo Andre, pelo PT, Celso Daniel.
Já a segunda análise, que teve o caráter exploratório e objetivou testar técnicas e algoritmos disponíveis para análise do comportamento das redes sociais (que não são isentos e estão sujeitos a distorções que exigem conhecimentos das Ciências Humanas, como Sociologia e Filosofia, para que não se tornem instrumentos totalitários), revelou como as autoridades públicas precisam ficar atentas.
Usando a aplicação disponível no site https://mikewk.shinyapps.io/botornot/, criada por Michael W. Kearney, professor da Escola de Jornalismo do Instituto de Informática da Universidade do Missouri, foi possível calcular a probabilidade de robôs serem seguidores do Ministro Sergio Moro. Com base nesta técnica, analisamos 583.171 seguidores do ministro em 09/04/2019 e, assumindo 75% de probabilidade de respostas positivas e refazendo a conta três vezes, com amostras diferentes, é possível dizer que ao menos 17,3% dos seguidores de Moro naquela data eram bots.
Ou seja, quase 1 em cada 5 seguidores do perfil do Ministro Sergio Moro naquela data tinham as características de perfis robotizados. Em geral, esse perfis são utilizados para combater ou ampliar determinadas causas ou propostas e, por isso, todas as cautelas são necessárias quando se discute “apoios” ou “tendências” medidos pelas redes sociais. Elas podem conter vieses difíceis de serem filtrados e ponderados.
O debate político não pode e não deve se resumir a uma guerra de hashtags ou likes; não podemos resumir a vida política do país aos ecos e repercussões oriundas da manipulação da guerra de narrativas.
Mais do que nunca, política pública deve ser baseada em evidências, estudos de impacto e monitoramento. O planejamento rigoroso e a observância de uma ética pública plural e democrática podem ser aliados poderosos contra as tentações autoritárias da nossa histórica cultura política violenta e pouco afeita ao contraditório. As vozes da diferença não podem ser caladas.

A corte do bobo



A corte do bobo

por Demétrio Magnoli 
O guru bolsonarista adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício
Os soberanos renascentistas empregavam um profissional encarregado de entreter os cortesãos e, antes de tudo, a si mesmos: o bobo da corte. A entourage bolsonarista tem um personagem assim, que é Olavo de Carvalho. Mas, com uma diferença: por aqui, a corte é que presta serviço ao bobo.
Nas cortes do passado, recrutavam-se bobos no próprio círculo da nobreza, entre jovens com deficiência mental. Mais comumente, eles eram pinçados entre comediantes que cantavam ou dançavam em grupos de saltimbancos. Salvo engano, Olavo enquadra-se no segundo caso.
Depois de tentar a sorte como astrólogo e islamita, ele vestiu a fantasia de filósofo e passou a exibir truques intelectuais primários no palco itinerante da internet. O ofício de comediante intelectual propiciou-lhe uma carreira precária no diversificado mercado da autoajuda —até que, miraculosamente, o colapso do sistema político brasileiro degenerou no governo dos ignorantes da extrema direita. Daí, ele virou um bobo singular: o guru de uma corte abobalhada.
Os bobos eram contratados para cometer equívocos divertidos. Nesse ponto, Olavo, o bobo de plantão, é fiel à tradição. Segundo o que ele qualifica como uma “tese histórica irrefutável”, os militares brasileiros entregaram o país ao comunismo. O interessante, aqui, é que não há, entre pessoas medianamente informadas, nem mesmo um debate histórico relevante sobre o tema.
golpe de 1964 não salvou o país da ascensão comunista pelo simples fato de que a hipótese inexistia: Jango e os seus, populistas da cepa varguista, não nutriam qualquer simpatia pelo comunismo. Os comunistas, cindidos em dois partidos rivais, eram colinas periféricas na paisagem nacional. Duas décadas depois, na hora da transição democrática, a esquerda aglutinou-se no PT, que de socialista só tem trechos esparsos de resoluções escritas para enganar trouxas.
Golbery do Couto e Silva tinha razão, se é verídica a versão de que enxergava em Lula o coveiro da esquerda radical no Brasil. Mas, ainda que divertida, a “tese histórica irrefutável” de Olavo é um equívoco proposital de um profissional da comédia. O bobo que nada tem de bobo formulou uma galhofa destinada a ser levada a sério por seus devotos estúpidos da corte bolsonarista, entre os quais contam-se o presidente e seus rebentos.
No “Rei Lear”, o bobo desempenha papéis cruciais. Honesto, completamente leal, ele vai muito além de seu dever de entreter, agindo quase como superego do rei. Depois do injusto banimento de Cordelia, o bobo assume a função da única filha íntegra do rei, protegendo Lear e, por meio da ironia e do sarcasmo, alertando-o sobre seus impulsos autodestrutivos.
Na corte bolsonarista, tudo se passa ao inverso. Leal apenas a si mesmo, o bobo sabota incessantemente o rei, estimulando seus piores instintos e semeando perenes intrigas palacianas. O bobo de Lear não teme dizer a verdade desinteressada; o bobo de Bolsonaro só profere mentiras interessadas. Nesse país tão pouco shakespeariano, a corte presta vassalagem a um bobo que não almeja o triunfo do rei, mas unicamente seu triunfo pessoal.
“Bobos frequentemente provam-se profetas”, diz Regan, a segunda filha de Lear, a Goneril, sua irmã mais velha. Olavo errou em todas as suas profecias, mas esforça-se para acertar na mais recente: a implosão do governo Bolsonaro “em seis meses”. O bobo shakespeariano, um sábio cético que vira a procissão inteira de vilezas humanas, ria da afetada pretensão de majestade de Lear. Entretanto, inarredável na sua decência, jamais o abandonou, acompanhando-o na trajetória da humilhação, rumo à loucura. Já o bobo bolsonarista, um malcriado untuoso, adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício.
“Rei Lear” é a mais sublime tragédia da literatura. A nossa é uma farsa de terceira. Mas não é ficção.
*Publicado na Folha de S.Paulo

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Recruta Zero

Recruta Zero

por Ruy Castro
Bolsonaro parece concordar com as opiniões de Olavo de Carvalho sobre o Exército
São mesmo outros tempos. Hoje, pode-se dizer qualquer coisa do Exército sem que nada aconteça. Mas, nos anos 60, quando houve o que Jair Bolsonaro afirma que não foi ditadura, era diferente. Estudantes, jornalistas ou simples cidadãos, tínhamos de andar na ponta dos pés. Uma referência aos militares como “gorilas”, feita de passagem para um amigo na porta do seu prédio, podia ser ouvida pelo porteiro e relatada ao general de pijama que morava no seu andar. Sei disso porque meu vizinho general, aliás, de pijama, veio me cobrar no hall do elevador.
Em 1966, Nara Leão, a musa do protesto, disse a um jornal que os militares “podiam entender de canhão e metralhadora, mas não ‘pescavam’ nada de política”. E que, mesmo assim, no dia do golpe, tinham usado “veículos com pneu furado”. Costa e Silva, ministro da Guerra, quis enquadrar Nara na Lei de Segurança Nacional. O que motivou Ferreira Gullar a escrever: “Moço, não se meta/ Com uma tal de Nara Leão/ Que ela anda armada/ De uma flor e uma canção”.
Dois anos depois, quando o deputado Marcio Moreira Alves, em discurso para as cadeiras vazias da Câmara, exortou as moças brasileiras a se recusarem a dançar com os cadetes nos bailes do dia 7 de setembro, o governo tentou processá-lo, no que foi barrado pelo Congresso —e, por isso, decretou o AI-5, que nos asfixiou por dez anos.
Hoje, o astrólogo Olavo de Carvalho pode tachar os militares de “covardes”, “pústulas”, “incultos”, “preguiçosos”, “um bando de cagão”, e chamar o general e vice-presidente Hamilton Mourão de “idiota” e até acusá-lo de pintar o cabelo.
Como minha carreira militar, de reles reservista de terceira categoria, limitou-se a namorar a filha de um coronel, por acaso cassado em 1964, não concordo nem discordo. Mas o presidente Bolsonaro, cuja passagem pelo Exército lembra a do Recruta Zero, parece concordar com as opiniões de seu mestre.
*Publicado na Folha de S.Paulo

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Razão e superstição



André Lara Resende: Razão e superstição

Não ter restrição financeira não significa que tudo seja permitido, que a escassez de recursos inexista

A superstição do déficit

Paul Samuelson, o economista que mais contribuiu para a formulação e a ordenação da teoria econômica na segunda metade do século XX, o primeiro laureado com o Nobel, em entrevista a Mark Blaug para um documentário dos anos 1990 sobre Keynes, diz que a crença de que seria sempre preciso equilibrar o orçamento fiscal é uma superstição, um mito, cuja função é mais ou menos a mesma das religiões primitivas: assustar as pessoas para que elas se comportem de maneira compatível com a vida civilizada. Crença que, uma vez desmascarada, corre o risco de abalar um dos bastiões que toda sociedade deve ter para evitar que os gastos públicos saiam de controle, pois sem disciplina e racionalidade na alocação de recursos, o resultado é ineficiência e a anarquia.
Samuelson está certo, é claro, sobre a necessidade de disciplina e racionalidade nos gastos públicos. Compreende-se assim por que a afirmação de que o governo que emite sua moeda não tem restrição financeira – que nada mais é do que uma constatação trivial – provoque reações tão virulentas nos que temem a anarquia. Desde o Iluminismo, a racionalidade substituiu, com enormes vantagens, os mitos e as superstições na promoção da civilidade, mas os que veem a desmistificação dos déficits públicos como uma ameaça, aparentemente não concordam. Na tentativa de convencê-los, é preciso, antes de mais nada, examinar as razões pelas quais é tão difícil entender que o governo possa não ter restrição financeira.
A primeira delas é uma questão de senso comum: todos devem procurar equilibrar receitas e despesas. É preciso ter cautela em relação ao endividamento excessivo para evitar problemas. A regra vale para todos, tanto para as famílias quanto para as empresas, para as organizações sem fins lucrativos, para as entidades beneficentes e também para os governos que não têm moeda própria. Se é verdade para todos, é natural inferir que seria também verdade para os governos que emitem a sua moeda, sobretudo se isso é o que se ouve insistentemente repetido, a toda hora em toda parte, por jornalistas, especialistas, economistas e políticos ditos responsáveis.
É natural que a grande maioria das pessoas, que nunca parou para refletir sobre o tema, simplesmente adote como verdade o que, além de fazer sentido para o senso comum, é insistentemente bombardeado na mídia. Já a razão pela qual os economistas de formação insistem em acreditar em algo flagrantemente equivocado é mais complexa. Está ligada ao fato de que a teoria monetária ensinada nas escolas de economia ainda não foi revista para refletir a realidade da moeda fiduciária. Continua pautada pela lógica do metalismo.
O padrão-ouro, tornado anacrônico em Bretton Woods, foi definitivamente sepultado em 1971, quando os Estados Unidos acabaram com a conversibilidade do dólar, mas o ensino das questões monetárias, do funcionamento do sistema financeiro e do papel do Banco Central, não se adaptou à nova realidade.
Duas concepções da moeda
Duas visões do que é a moeda disputaram a primazia intelectual como referência para a formulação de políticas desde o fim do século XVIII, quando a Inglaterra, premida pelos gastos da guerra contra Napoleão, viu-se obrigada a suspender a conversibilidade da libra em ouro. A inconversibilidade, que perdurou de 1797 até 1821, provocou um acalorado debate que ficou conhecido como a “controvérsia bulionista”. Enquanto os bulionistas – o nome vem de “bullion”, lingote em inglês – previam o caos, dado que para eles a estabilidade monetária dependia da conversibilidade, os antibulionistas sustentavam que a moeda não precisava ser lastreada, pois era apenas uma unidade de crédito contra o Estado. A controvérsia foi retomada décadas mais tarde, em meados do século XIX, agora com os metalistas agrupados na “currency school” e os antimetalistas na “banking school”.
Os metalistas, liderados por David Ricardo, saíram vitoriosos, tanto na política como nas escolas. Como observou Keynes, no seu clássico “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha. A sua teoria não foi apenas aceita pela City, pelos homens públicos e pela academia mundial, mas também suprimiu a controvérsia; o outro ponto de vista desapareceu completamente, deixou de ser discutido”.
Em retrospecto, fica claro que os antimetalistas estavam certos, mas à frente de seu tempo. A moeda com lastro metálico desapareceu, o padrão-ouro foi definitivamente abandonado, a moeda contemporânea é puramente fiduciária e avança rapidamente para se tornar eletrônica, meramente contábil. Como compreenderam os antimetalistas, a essência da moeda é realmente ser uma unidade de crédito contra o Estado. Uma unidade de crédito com a qual é possível redimir obrigações tributárias e que passa a ser adotada como a unidade de conta padrão da economia.
A moeda metálica é apenas uma das formas que pode tomar a moeda. Uma forma que prevaleceu durante certos períodos da história das civilizações. O papel-moeda lastreado em metais preciosos, como a prata e o ouro, é a etapa seguinte, quando o sistema bancário passa a emitir títulos de crédito próprios, mas ainda é obrigado a manter uma fração dos seus títulos em lastro metálico.
Ao tomar o lastro metálico da moeda como a moeda propriamente dita, os metalistas confundem uma singularidade histórica da moeda com o conceito abstrato de moeda. Uma moeda é uma medida abstrata de valor, como 1 kg é uma medida abstrata de peso. Assim como o 1 kg já teve expressão física, normalmente um cilindro de ferro fundido utilizado nas antigas balanças de dois pratos, a moeda também já teve expressão física metálica. Foram ambas aposentadas pelo avanço da tecnologia.
A concepção metalista da moeda, que inspirou a formulação da teoria monetária dominante até muito recentemente, pode ter sido uma aproximação razoável da realidade no passado. Para as economias contemporâneas, onde a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, sofisticado, é um anacronismo equivocado e oneroso.
Ao confundir a moeda metálica com o conceito abstrato de moeda, os economistas foram induzidos a criar uma versão sobre as origens da moeda hoje comprovadamente equivocada – ver Goodhart (1998) e Tcherneva (2016). Durante muito tempo, os economistas sustentaram que a moeda era uma criação espontânea dos mercados para contornar a chamada “coincidência de necessidades” do escambo e facilitar as trocas de mercadorias. Esta versão da origem da moeda, largamente predominante entre os economistas, não tem sustentação nos estudos antropológicos e históricos.
Os economistas, mais uma vez, confundem a história da moeda física, cunhada em metais, com a história do conceito de moeda. É hoje fato bem documentado que o conceito de moeda antecede a cunhagem metálica em pelo menos 3 mil anos. Tabuletas de barro, conchas e diversas outras formas de representação de um crédito contra o rei ou o detentor do poder, sem nenhum valor intrínseco, circularam milhares de anos antes da cunhagem de moedas metálicas.
Estudos antropológicos indicam que os templos e os palácios na Mesopotâmia, assim como no Egito, elaboraram sistemas internos de contabilidade, de débitos e créditos, que serviam de base para uma unidade de conta e de reserva de valor. Há sólidas razões para crer que na maior parte da história da humanidade – ver Graeber (2011) – a moeda não tenha tido existência física, mas apenas virtual, como uma medida abstrata de valor.
Uma transposição indevida
Assim como os pintores medievais europeus, incapazes de transcender a realidade que conheciam, pintavam cenas bíblicas com base nos castelos e nas indumentárias de sua época, os metalistas ingleses, dos séculos XVII e XVIII, formularam uma teoria sobre as origens e a função da moeda com base na realidade específica de seu tempo. O equívoco sobre as origens históricas da moeda, embora mais uma indicação do pretensioso distanciamento que a economia fez questão de tomar em relação às demais ciências humanas, é bem menos pernicioso do que a consolidação de uma realidade específica numa teoria monetária incompatível com o sistema monetário contemporâneo. A Teoria Quantitativa da Moeda, TQM, e a Teoria do Multiplicador Bancário, TMB, são exemplos de extrapolações de uma realidade histórica circunstancial, formalizadas com pretensão de validade universal.
No século XVII, quando David Hume formulou originalmente a hipótese de que o nível de preços seria proporcional à quantidade de moeda em circulação, a base da TQM, é possível que esta fosse efetivamente uma boa aproximação da realidade. Afinal, a moeda era lastreada no ouro, e a descoberta do ouro nas Américas, importado para uma Europa estagnada, ainda antes da Revolução Industrial, sem capacidade de expandir a oferta de bens e serviços, deve realmente ter tido impacto inflacionário. O apelo da hipótese quantitativista foi reforçado pelo fato de se prestar a uma formulação algébrica simples e intuitiva. A equação quantitativa, M.V = P. Y, é provavelmente uma das mais conhecidas da teoria econômica. O valor do produto, PY, é uma proporção 1/V do estoque de moeda.
Quando a moeda tem expressão física, é uma quantidade física de ouro ou um múltiplo da quantidade de ouro na economia, faz sentido postular que dado o produto, Y, o nível de preços seja proporção 1/V do estoque de moeda M. Simples, intuitivo, capaz de dar resposta ao mistério da determinação do nível de preços, portanto também da sua variação, a inflação ou a deflação, e infelizmente errado. Rigorosamente errado numa economia onde a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, desenvolvido. Numa economia primitiva, sem sistema financeiro, é razoável supor que a quantidade de ouro guardasse relação relativamente estável com a renda e a riqueza, mas basta que haja um único título financeiro que pague juros para que essa relação deixe de ser uma boa aproximação da realidade, pois a mesma renda, ou riqueza, é compatível com inúmeras combinações de ouro e crédito.
A teoria monetária quantitativista resolve esta indeterminação com o multiplicador bancário. A TMB pressupõe que o crédito criado pelo sistema bancário seja também uma proporção fixa do estoque de ouro. Parte-se de um sistema de reservas fracionárias, ou seja, de um sistema em que os bancos mantêm uma fração dos depósitos como reservas e expandem os seus empréstimos sempre que têm reservas excedentes. O total de crédito, ou de moeda bancária, seria assim um múltiplo das reservas em ouro do sistema. A lógica da moeda lastreada foi transposta, sem muita reflexão, para o sistema de moeda fiduciária. O papel do estoque de ouro passou a ser atribuído à chamada base monetária, composta pelo papel-moeda em poder do público mais as reservas no Banco Central. O papel-moeda é cada vez menos relevante e pode ser ignorado – tornando a base monetária igual às reservas – sem prejudicar o argumento. O valor total da moeda na economia, M – a soma da base monetária, B, com os depósitos à vista nos bancos, D – é função do multiplicador bancário. Ou seja: M = B + D e D = m.B, logo M = (1+m) B.
Como o multiplicador, m, é função de parâmetros regulatórios, a proporção entre D e B é fixa e determinada pelo Banco Central. Portanto, como a base estaria sob controle do Banco Central, tanto o estoque total da moeda, M, quanto a proporção entre B e D, também estariam sobre o seu controle direto.
A base monetária endógena
Ocorre que, com a moeda fiduciária, nem o Banco Central nem os bancos de depósitos precisam de reservas para emprestar. A base monetária não é mais composta por uma mercadoria física que o Banco Central precise adquirir, mas é simplesmente o resultado do que o Banco Central vier a creditar eletronicamente nas reservas dos bancos. O que então determina a quantidade de reservas creditadas pelo Banco Central? Aqui está o ponto-chave do equívoco provocado pela transposição da lógica metalista para o sistema monetário fiduciário. Ao contrário do que pretende a TQM e do que foi ensinado durante décadas, até pelo menos o fim do século passado nas escolas de economia, o Banco Central não controla, nem tem como controlar, a quantidade de reservas. Dito de outra forma: não controla a base monetária. Como foi finalmente reconhecido em fins da década de 1990, o instrumento de política monetária do Banco Central é a taxa de juros sobre as reservas bancárias, e não a quantidade de reservas.
Num sistema em que a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, sofisticado, os bancos podem sempre tomar e emprestar reservas, sem qualquer problema, à taxa básica determinada pelo Banco Central. Não faz sentido para os bancos manter reservas acima do exigido como compulsórias e abrir mão dos juros que poderiam fazer jus ao cedê-las para o mercado ou para o próprio Banco Central. Individualmente, os bancos vão diariamente ao interbancário, ou ao Banco Central, para tomar reservas insuficientes e repassar reservas excedentes, mas, no agregado, os bancos não têm como criar ou destruir reservas. A única forma que o sistema bancário como um todo tem para obter ou repassar reservas é através do Banco Central. Para evitar que a taxa de juros sobre as reservas tenha oscilações violentas, o Banco Central é obrigado a suprir as reservas requeridas e tomar as reservas excedentes à taxa básica. O funcionamento do sistema é claro: o Banco Central determina a taxa de juros sobre as reservas e empresta ou toma emprestado o que o sistema bancário demandar a esta taxa. Ao contrário do que afirma a teoria estabelecida, quando os bancos têm reservas excedentes, não aumentam seus empréstimos, mas as repassam para o Banco Central à taxa básica de juros. Os bancos só aumentam os seus empréstimos quando têm tomadores confiáveis às taxas que lhes são interessantes e, em seguida, vão buscar as reservas requeridas no Banco Central. O Banco Central é o supridor e o tomador passivo de reservas para o sistema à taxa básica de juros.
Nem o Banco Central controla a base monetária nem a relação entre as reservas e a moeda é dada por um multiplicador constante. Tanto a TQM quanto a TMB, que até hoje são ensinadas nas escolas de economia, estão equivocadas – ver Borio (2018). A base monetária se expande com os gastos do governo e se contrai com o aumento das receitas do governo, assim como se expande com a aquisição e se contrai com a venda de ativos por parte do Banco Central, mas o Banco Central não tem opção a não ser acomodar a demanda por reservas se não quiser perder o controle da taxa básica de juros. Quando o sistema perde reservas, seja porque houve uma saída líquida de divisas ou um saldo positivo da arrecadação sobre a despesa do governo, o Banco Central é obrigado a financiar o sistema bancário e a fornecer as reservas. Da mesma forma, quando há uma entrada de divisas ou um excesso de gastos sobre a arrecadação do governo, o Banco Central se vê obrigado a tomar o excesso de reservas à taxa básica. Mais uma vez: o Banco Central fixa a taxa básica e se torna um ator passivo, fornecendo ou tomando as reservas demandadas pelo sistema. O nível de reservas do sistema é primordialmente determinado pelo compulsório. Esta é a razão pela qual, ao contrário do que entendia a TMB, o aumento do compulsório eleva a base monetária, mas não tem qualquer implicação sobre o volume de crédito. A elevação do compulsório é apenas uma forma de taxar o sistema bancário, pois o Banco Central coleta o compulsório – que não é remunerado -, mas é obrigado a fornecer o equivalente em reservas – sobre as quais cobra a taxa de básica – ao sistema bancário.
Moeda, dívida e o espectro do metalismo
No sistema monetário fiduciário contemporâneo, tanto o papel-moeda como as reservas excedentes se tornaram irrelevantes e tendem a desaparecer. Em breve, o único passivo não remunerado do governo consolidado – Tesouro mais o Banco Central – serão as reservas compulsórias. A definição de que parte do passivo financeiro do governo é considerada moeda sempre foi arbitrária. Com o sistema financeiro desenvolvido e o Banco Central sempre pronto para fornecer reservas em operações de recompra, os títulos públicos são quase perfeitamente líquidos. Todo o passivo financeiro do governo é remunerado e líquido. Não faz sentido distinguir o que seria “moeda” dos demais papéis de dívida pública. A moeda sempre foi um título de dívida do governo como qualquer outro, que só se distinguia por não pagar juros e ser emitida pelo Banco Central. Hoje o Banco Central só “emite” reservas remuneradas e de forma passiva, de acordo com as demandas do sistema bancário para atender a obrigação de reservas compulsórias. A separação entre o Tesouro e o Banco Central é uma forma de organização institucional que dificulta a compreensão de que não há diferença entre moeda e os demais títulos do passivo financeiro do governo. Num sistema de moeda puramente fiduciária, a moeda é apenas mais um título de dívida pública cujo valor unitário de face serve como unidade de conta universal na economia. A separação entre o Tesouro e o Banco Central, embora faça sentido operacional, dado que as duas agências têm funções muito distintas, dificulta o entendimento de que o governo não tem restrição financeira. Se superstição do orçamento sempre equilibrado for efetivamente condição para um comportamento civilizado, esta pode ser vista como mais uma vantagem da separação entre o Tesouro e o Banco Central, mas como toda superstição, como tudo que obscurece o entendimento racional, tem seus custos.
A proibição legal de que o Banco Central financie o Tesouro, por exemplo, é uma restrição que encarece a dívida pública. Se o Banco Central pudesse financiar o Tesouro, creditaria as reservas diretamente em sua conta. O excesso de reserva criado seria, obrigatoriamente, retirado do mercado em operações de recompra à taxa básica. Com o Tesouro obrigado a vender seus títulos para se financiar, o mercado irá, obrigatoriamente, ao Banco Central para obter, através de operações de recompra à taxa básica, as reservas usadas na compra dos títulos do Tesouro. O resultado final é o mesmo: houve um aumento do passivo financeiro do governo equivalente às reservas fornecidas pelo Banco Central e creditadas ao Tesouro. A diferença é que o mercado, ao comprar os títulos do Tesouro e se financiar com o Banco Central, se apropria da diferença entre a taxa básica e a remuneração dos títulos do Tesouro. Com o Banco Central impedido de creditar reservas diretamente na conta do Tesouro, é preciso que o Tesouro venda seus títulos no mercado e que o Banco Central forneça, obrigatoriamente, as reservas para que o sistema bancário possa pagar ao Tesouro. Do ponto de vista do governo consolidado – Tesouro mais Banco Central -, no fim das contas, a única diferença é o custo do seu passivo financeiro. Como os títulos do Tesouro têm prazos mais longos e remuneração descasadas em relação à taxa básica, os compradores exigem prêmios para carregá-los. Além do mais, a superstição de que o Tesouro está submetido a uma restrição financeira faz com que os compradores de seus títulos exijam um prêmio para fazer face a um risco inexistente de default. O resultado é um custo mais alto do que seria necessário se o Banco Central pudesse financiar o Tesouro e recomprasse diretamente à taxa básica as reservas creditadas na conta do Tesouro.
O sistema de pagamentos, a atuação do Banco Central e a gestão do passivo financeiro do governo precisam ser reformulados. Um novo desenho, adaptado à realidade contemporânea, exige que se abandone definitivamente o espectro da concepção metalista da moeda. Um sistema de depósitos remunerados no Banco Central aumentaria a eficiência do sistema de pagamentos e reduziria o custo da dívida pública. Depósitos à vista remunerados no Banco Central são um ativo superior, em termos de risco e liquidez a qualquer título emitido pelo Tesouro, por isso não pagam os prêmios que encarecem a dívida pública. Duas objeções são comumente levantadas em relação ao financiamento da dívida pública através de depósitos remunerados no Banco Central. A primeira é quanto ao seu potencial inflacionário. Trata-se de uma preocupação sem fundamento inspirada pelo espectro da TQM.
Como ficou cabalmente comprovado com o QE nas economias avançadas, o excesso de reservas remuneradas não provoca a expansão do crédito e da demanda agregada. Evita o colapso quando a confiança desaparece num sistema financeiro muito alavancado, mas por si só é incapaz de estimular o consumo e o investimento. A segunda é que sem títulos públicos de longo prazo, o Banco Central não teria como atuar sobre a curva intertemporal de juros. Embora a taxa básica de overnight seja o principal instrumento da política do Banco Central, o balizamento das taxas intertemporais, através de operações de mercado aberto, é parte do arsenal do Banco Central. A preocupação faz sentido, mas nada impede que um sistema de dívida pública, baseado majoritariamente em depósitos remunerados no Banco Central, seja complementado com a emissão de títulos de diferentes prazos e indexadores para auxiliar o balizamento das expectativas.
Superstição e paternalismo
Voltemos a Samuelson e às razões daqueles que veem a desmitificação dos déficits como uma ameaça. Os menos informados poderiam tomar as observações de Samuelson como um endosso à superstição de que o governo deve sempre equilibrar o orçamento. Nada mais equivocado. Paul Samuelson foi um dos mais destacados defensores da razão. Como macroeconomista, com seus colegas do Departamento de Economia do MIT, na segunda metade do século passado, como Robert Solow, Franco Modigliani e outros, foi um incansável crítico do quantitativismo monetário e do dogmatismo fiscal. Samuelson apenas reconhece que, sem controle dos gastos públicos e racionalidade na alocação de recursos, o resultado é a ineficiência e a anarquia. Este é a questão primordial de toda a controvérsia em torno da constatação de que o governo não tem restrição financeira. Não ter restrição financeira, não significa que tudo seja permitido, que a escassez de recursos inexista e que o custo de oportunidade possa ser desconsiderado. Ao contrário, significa que a preocupação relevante em relação aos gastos públicos é com a qualidade, com a avaliação objetiva de seus custos e benefícios, com a sua capacidade de aumentar a produtividade e o bem-estar. Esta não é, evidentemente, uma exigência fácil de ser posta em prática, mas é a que faz sentido.
Acreditar que o problema do gasto público está em garantir o seu financiamento é uma superstição que provoca dois tipos de equívocos igualmente perniciosos. Primeiro, acreditar que não se pode gastar sem contrapartida de receitas, mesmo quando os gastos são plenamente justificados. Segundo, acreditar que se o financiamento está garantido, o problema foi resolvido. Enquanto o primeiro equívoco mantém o governo de mãos atadas diante do desemprego, da capacidade ociosa, da deterioração da infraestrutura, da falta de saúde, de saneamento e de segurança pública, o segundo leva a crer que basta vincular receitas no orçamento para que o problema esteja solucionado. O Brasil de hoje é o retrato acabado e dramático da combinação desses dois equívocos.
Nada garante que desmascarar a superstição dos déficits irá resolver nossos problemas. É provável que seja preciso desenhar restrições institucionais para disciplinar a ilimitada e demagógica demanda por gastos públicos, mas que sejam restrições baseadas na razão, e não em superstições. Sustentar o mito do orçamento equilibrado, porque não se confia que o país seja capaz de resistir à tentação dos gastos irresponsáveis, não é diferente de defender a burca porque não se confia no comportamento das mulheres. É preciso dar fim à superstição do orçamento equilibrado, não apenas em nome da racionalidade, mas também porque o paternalismo tecnocrático impede o desenvolvimento de uma democracia responsável.
Referências
Borio, C. (2019) “On Money, Debt, Trust and Central Banking” – BIS Working Papers nº 763
Goodhart, C. A. E. (1198) “Two Concepts of Money: Implications for the Analysis of Optimal Currency Areas” – European Journal of Political Economy, 14
Graeber, D, (2011) “Debt: The First 5000 Years”. London, UK: Melville House Publishing
Tcherneva, P. R. (2016) “Money, Power and Monetary Regimes” – Levy Economic Institute of Board College – Working Papers nº 861
André Lara Resende é economista

Chegou a hora de reescrever a história da transição democrática


Chegou a hora de reescrever a história da transição democrática

Episódio envolvendo o Supremo permite fazer o ajuste de contas com o passado



A reação de ministros da corte suprema a suspeitas sobre o possível envolvimento de magistrados com corrupção política é alarmante porque viola a Constituição.
No entanto, esse episódio tem um poderoso efeito pedagógico. Ele permite, finalmente, fazer o necessário ajuste de contas com o passado. Explico.
Nos últimos 30 anos, vingou a tese da suposta transição exitosa para a democracia. A narrativa dominante apresenta o Brasil como um caso de sucesso, em que pesem os vários percalços no meio do caminho.
Claro, essa visão reconhece que a travessia não foi perfeita. Mas as imperfeições são descritas como um mero resquício autoritário —aquela sobra incômoda que sempre tem numa obra grande e bem-sucedida. Não à toa, a expressão comum para descrever esses restos é “entulho autoritário”.
Essa continua sendo a forma hegemônica de descrever os últimos 30 anos. Segundo ela, o entulho atrapalha, mas não inviabiliza. Basta dar tempo ao tempo que uma democracia plena nascerá graças ao acúmulo de anos de governança virtuosa por parte de instituições democráticas, que estariam funcionando muito bem.
Tal visão da história ainda impera incólume em livros, artigos, universidades e na grande imprensa. Durante a década de 2000, quando o crescimento econômico puxado pela China permitiu esquecer o conflito redistributivo, ela virou dogma.
Alguns acadêmicos chegaram a vislumbrar um futuro próximo no qual o Brasil teria uma democracia de qualidade similar àquela hoje vista em Portugal e Espanha, exemplos de transições bem-feitas para longe do autoritarismo.
Ocorre que, nos últimos cinco anos, esse dogma ruiu. Aprendemos que o Executivo usa recursos de conglomerados privados para comprar o Legislativo.
Em conluio, políticos e empresários compram juízes e capturam agências reguladoras. Juntos, abocanham nacos da política de defesa e sequestram parte da política externa. As milícias servem como cabos eleitorais, enquanto o narcotráfico financia candidatos. Clientelismo e compra de voto não ficaram num distante passado arcaico. Permanecem vivos.
A censura impulsionada desde o STF é parte do pacote. Ela coroa as recentes revelações sobre como a corte funciona na prática, e o cenário é desolador.
Por isso, passou da hora de trocar a velha tese da transição bem-sucedida por outra, mais precisa. A dimensão autoritária da atual democracia não se resume ao escombro da reconstrução pós-ditadura. Ela é central a seu funcionamento.
É necessário um esforço coletivo para reescrever essa história à luz das novas evidências. Só assim entenderemos por que o velho pacto oligárquico conseguiu sobreviver à Nova República.
Matias Spektor
Professor de relações internacionais na FGV.

Uma análise sobre o vazamento contra Toffoli: assassinato de reputação e defesa da Lava Jato



Uma análise sobre o vazamento contra Toffoli: assassinato de reputação e defesa da Lava Jato

‘Mera coincidência? Por que um e-mail demoraria anos para aparecer? Qual a razão para ser esclarecido justo agora? Quem vazou e por quê? Os elementos estão sendo instrumentalizados visando assassinato de reputações escolhidas a dedo’, avaliam criminalistas

Jornal GGN – “É no mínimo estranho que logo o ministro que mais vive às turras com a atuação de agentes investigadores sedentos por poderes ilimitados seja atingido pelo vazamento de um e-mail ressuscitado de forma tão intempestiva”, avaliam os advogados criminalistas Antônio Carlos de Almeida Castro e Fábio Tofic Simantob.
Nesta sexta-feira (19), o Estado de S.Paulo publicou o artigo “Assassinato de reputações”, produzido por eles com base no recente vazamento de um e-mail para jornais citando Toffoli. A mensagem foi divulgada pelos jornais Crusoé e O Antagonista e dizia apenas “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”. O e-mail, escrito em 2007, era de Marcelo Odebrecht, que aceitou entrar no programa de delação premiada da Lava Jato para reduzir sua pena.
Segundo o empresário, a mensagem foi encaminhada para dois executivos, Adriano Maia e Irineu Meirelles. Marcelo disse ainda que um dos amigos mencionados era Toffoli, hoje ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal, que na época era Advogado-Geral da União (AGU). Essa informação, também vazada nos jornais vem sendo desde então explorada para colocar Toffoli no centro de um conluio. Entretanto, o e-mail não fez menção alguma de pagamento de recursos, ilegais ou legais.
“O Brasil está tão acostumado a acordar com denúncias de corrupção e dormir com novas denúncias de corrupção, que a sociedade foi perdendo a capacidade de distinguir o falso do verdadeiro”, ponderam Castro e Simantob.
Leia também: Moraes chega onde queria: não foi fakenews, mas vazamento, por Luis Nassif
“Esta dificuldade decorre em larga medida da falta de transparência de como o conteúdo de depoimentos ou provas são levianamente jogados na imprensa antes de qualquer chance de defesa, demonstrando que em vez de serem usados para instruir processos ou subsidiar acusações formais, os elementos estão sendo instrumentalizados visando antes de tudo o assassinato sumário de algumas reputações escolhidas a dedo”, completam os advogados criminalistas.
Para eles, a tentativa de vincular o nome de Toffoli à mensagem do e-mail vazado pode fazer parte de uma estratégia mais ampla considerando as postura enérgica que o ministro tomou mais recentemente contra abusos de investigadores do Ministério Público Federal, notadamente da Lava Jato.
“Há sim um mar de dúvidas e incertezas obscurecendo o repentino vazamento de e-mail que busca macular sua reputação. Para colocar mais pulga atrás da orelha, o presidente do STF integra a corrente contrária à prisão em segunda instância, tema caro à Lava Jato”, pontuam os advogados.
Leia a seguir o artigo na íntegra.
Estado de S.Paulo
Assassinato de reputações
Por Antônio Carlos de Almeida Castro e Fábio Tofic Simantob*
O Brasil está tão acostumado a acordar com denúncias de corrupção e dormir com novas denúncias de corrupção, que a sociedade foi perdendo a capacidade de distinguir o falso do verdadeiro.
Esta dificuldade decorre em larga medida da falta de transparência de como o conteúdo de depoimentos ou provas são levianamente jogados na imprensa antes de qualquer chance de defesa, demonstrando que em vez de serem usados para instruir processos ou subsidiar acusações formais, os elementos estão sendo instrumentalizados visando antes de tudo o assassinato sumário de algumas reputações escolhidas a dedo.
É esta falta de transparência que coloca uma nódoa de suspeita no vazamento de e-mail que se tenta vincular ao ministro Dias Toffoli, presidente do STF.
Pelas posturas enérgicas que assumiu nos últimos tempos contra abusos de agentes estatais incumbidos de investigações criminais, inclusive, na Lava Jato, há sim um mar de dúvidas e incertezas obscurecendo o repentino vazamento de e-mail que busca macular sua reputação.
Para colocar mais pulga atrás da orelha, o presidente do STF integra a corrente contrária à prisão em segunda instância, tema caro à Lava Jato, e que, coincidência ou não, seria levado a julgamento no último dia 10 de abril, na semana do vazamento. Foi Toffoli também o responsável por autorizar recentemente a abertura de inquérito policial para apurar ataques à Corte.
Basta olhar com um pouco mais de atenção para perceber que, antes de colocar suspeitas sobre a reputação de quem quer seja, o episódio coloca sérias dúvidas sobre a própria falta de transparência de algumas investigações em curso no País.
Neste caso, alguém preso e condenado a muitos anos de prisão resolve celebrar acordo de delação premiada. O acordo é celebrado e homologado pela justiça. Quando o acordo é celebrado, já se sabe da existência de um e-mail escrito em linguagem cifrada, o qual, porém, a princípio, não notícia nenhuma relação espúria.
Muito tempo depois, porém, os investigadores resolvem esclarecer o conteúdo da mensagem, e mesmo sem haver nada de ilícito na conversa, o e-mail é vazado, levantando uma nuvem de suspeitas sobre a reputação do ministro.
Devemos convir que, ou bem os investigadores já se encontravam na posse deste e-mail há anos e nunca lhe deram muita bola, ou o colaborador ainda mantém consigo um arsenal de provas e vai decidindo ao seu bel-prazer o que, quando e como as disponibiliza aos investigadores, o que, há de se convir, seria ainda mais grave. Seja como for, por que um e-mail demoraria anos para aparecer? Qual a razão para ser esclarecido justo agora? Quem vazou e por quê?
Difícil acreditar em mera coincidência.
É no mínimo estranho que logo o ministro que mais vive às turras com a atuação de agentes investigadores sedentos por poderes ilimitados seja atingido pelo vazamento de um e-mail ressuscitado de forma tão intempestiva.
Mais estranho ainda é o e-mail não conter nada de ilícito, e mesmo assim ter sido vazado para a imprensa e publicado com ares de escândalo para deleite dos que não suportam ver o STF colocando limites aos arbítrios e desmandos do Estado policialesco que se instalou em alguns lugares do País. Ficou, ainda, por conta das mídias sociais, sempre elas, aumentar a temperatura e engrossar o coro visando a qualquer custo desmoralizar a Corte Suprema.
Quando atos levianos e irresponsáveis como este atingem a reputação da mais Alta Corte de Justiça do País é evidente que medidas urgentes devem ser adotadas, desde que dentro da lei e respeitado o devido processo legal.
Mais do que isto, é preciso fazer cessar o assassinato de reputações que está em curso há alguns anos no País, devendo ser investigados com rigor os responsáveis por estes vazamentos criminosos, capazes que são de arruinar biografias em átimos de segundo, minando a própria credibilidade das instituições, tão necessária para que o combate ao crime possa se dar em respeito às normais legais e constitucionais vigentes.
*Antônio Carlos de Almeida Castro e Fábio Tofic Simantob, advogados criminalistas

Moraes chega onde queria: não foi fakenews, mas vazamento



Moraes chega onde queria: não foi fakenews, mas vazamento,

 por Luis Nassif

Agora, o caso entrou no caminho provavelmente previsto por Moraes: não se trata mais de apuração de notícias falsa, mas do vazamento de uma investigação sigilosa, com o agravante de ser utilizado para ameaçar o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Enganou-se quem imaginou que o recuo do Ministro Alexandre de Moraes, levantando a censura ao Antagonista, significou a fim da batalha. Pelo contrário.
Até então, tinha-se uma suposta ação contra fakenews – notícias falsas. A tal nota publicada estava enquadrada nessa definição, a menos que… a menos que se comprovasse ser um documento real, no inquérito tocado pela Lava Jato.
Agora, o caso entrou no caminho provavelmente previsto por Moraes: não se trata mais de apuração de notícias falsa, mas do vazamento de uma investigação sigilosa, com o agravante de ser utilizado para ameaçar o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Esses abusos, atropelando qualquer conceito de direitos individuais, foram praticados à larga pela Lava Jato, com a cumplicidade da Procuradoria Geral da República de Rodrigo Janot, e, depois, com a condescendência da PGR de Raquel Dodge. E tornaram-se a fonte de poder maior da operação.
No jantar de posse de Dilma Rousseff, em 2014, compartilhei uma mesa com Janot e indaguei o que ele iria fazer contra os vazamentos abusivos. Na véspera das eleições, Veja publicou uma capa planejada antecipadamente – e distribuída por todos os cantos pelo PSDB – em cima da deturpação de um vazamento. E Janot:
  • Não podemos fazer nada. Foi o advogado do réu que vazou.
  • Mas se vazamento é crime, porque vocês não atuam?
Desconversou, disse que era muito difícil encontrar provas.
Janot atuou apenas uma vez contra vazamentos. No período em que ainda estava alinhado com Aécio Neves e o PSDB, os delatores da OAS decidiram ampliar as delações incluindo José Serra e Aécio Neves. Era voz corrente entre os criminalistas de São Paulo.
Como Janot se safou? Foi vazada para Veja uma denúncia irrelevante contra o mesmo Dias Toffoli. Mal saiu a revista, Janot anunciou que o acordo de delação estava cancelado, sob o argumento de que os advogados tinham vazado as informações para pressionar pela aprovação do acordo.
Uma mentira inverossímil! Era evidente que o vazamento prejudicava os réus. Mas o argumento foi acolhido candidamente pela imprensa, e deu-se sobrevida aos delatados até que o impeachment fosse consumado. Aliás, no caso de José Serra, aparentemente, será poupado até o fim dos seus dias.
Cai Lula, cai o PT, cai o Rei de Copas, cai o Rei de Paus e a estrutura da Lava Jato resolve atacar outros desafetos. E aí chega no Supremo.
O primeiro caso foi a tal investigação da Receita conduzida por um auditor ligado à Lava Jato, que levantou – e deu publicidade – às contas de Gilmar Mendes e sua esposa. A alegação foi a de engano no destinatário de um email. Mas a reação de Gilmar mostrou que não se tolerariam mais os abusos, acabando com a onipotência de investigadores que, tendo a imprensa para vazar, julgavam ter A FORÇA.
Nas últimas semanas, o procurador Diogo Castor – cujo irmão é um dos advogados da milionária indústria da delação, na qual só entram advogados aceitos pela confraria da Lava Jato – atacou o STF. Houve reação de Toffoli e Castor pediu afastamento da Lava Jato por problemas de saúde.
Outro procurador, Roberto Pozzobon, entrou no jogo, com ataques pelas redes sociais. Depois da intervenção do STF, reduziu o fogo. Apenas Deltan Dallagnol não parou um minuto, em uma escalada que, se não enfrentada, desmoralizaria o Supremo.
Com o último movimento, entrou-se, finalmente, no busílis da questão, na fonte de ilegalidades que se tornou a marca da Lava Jato: o uso político da informação, seja para propósitos eleitorais, para chantagear autoridades ou para atemorizar alvos.
Talvez, agora, outros fatos comecem a ficar claros.
Depoimentos de colegas, avalizaram a competência do delegado da PF incumbido de tocar o inquérito. Não tem sentido um delegado competente, contando com todo arsenal tecnológico da própria Polícia, mesmo atuando em território inóspito, da própria PF, com risco de ter que cortar na carne, sair prendendo pessoas irrelevantes das redes sociais, mesmo generais de pijama pirados, pelo mero fato de destilarem baixarias contra Ministros da corte.
É óbvio que Moraes exagerou na truculência ao incluir dois desafetos, advogados, como propagadores de fakenews, e apelar para a censura. Mas o alvo estava bem acima. Nos próximos dias se saberá melhor o tamanho da gangrena que afetou braços do MPF e da PF.
Foi sintomático Dallagnol correr a público informando que, pelos dados do sistema, o MPF acessou os dados apenas depois que a revista publicou a reportagem. Fantástico! Fica-se sabendo que a intimorata Lava Jato fica sabendo do que ocorre em seus inquéritos através dos informantes que têm na mídia.
É uma corte ruim, com um histórico complicado, mas é o último bastião da institucionalidade. Caindo o Supremo, não restará mais nada das instituições. O país ficará definitivamente à mercê das milícias jurídicas. Daí, porque, a luta atual é de vida ou morte das instituições.

Revolução em marcha



Revolução em marcha

Não se olha para os lados quando se quer combater privilégios, mas para cima


Dificilmente entenderemos algo do que corre atualmente no Brasil se não levarmos a sério o que os membros do governo e seus ideólogos chamam de “revolução”. De fato, o sr. Bolsonaro se vê liderando uma espécie de revolução conservadora na qual seu núcleo mais fiel de eleitores realmente acredita.
Bolsonaro sabe que ele acabará por governar para esse núcleo. Não há chance alguma de reeditar um governo com ampla maioria de aprovação. Mas, como nos lembram os manuais de guerra, melhor um grupo menor e bastante mobilizado do que um grupo grande sem unidade de ação.
Aqueles que o apoiam acreditam estar em uma luta contra os poderes que sempre comandaram o país (casta política, imprensa, elite intelectual).
Eles acreditam ter colocado no cerne do poder “um dos nossos”. Alguém que tem nossos mesmos traços e dificuldades. Alguém que não teme mostrar sua inaptidão ao cargo, criando assim certa identificação empática com os que nunca imaginaram ser presidente. Eles acham que, nessa revolução, não se deve respeitar as instituições que foram responsáveis, em larga medida, “por tudo o que está aí”.

Nesse horizonte, duas estratégias são centrais. A primeira é fazer o governo lutar contra o governo. Pode parecer uma contradição, mas muitas vezes a única coisa verdadeira são as contradições.
Dias atrás, o sr. Bolsonaro fez uma live com indígenas prometendo lutar contra “alguns picaretas dentro do próprio governo dizendo que protegem vocês”.
Ou seja, a mensagem é clara. O presidente não é o governo. Pois, lembremos, ele está dentro do governo “como um dos nossos”, a lutar contra os que sempre se serviram do Estado para nos massacrar. Essa figura do “um dos nossos” que está em luta dentro do Estado dá, ao mesmo tempo, a impressão de movimento contínuo e a justificativa da inércia.
Há sempre alguém que irá travar nossos desejos, haverá sempre ume expurgo a realizar. As crises no governo são profundamente necessárias. Elas são ocasião de mobilização permanente.
Por outro lado, cresce em importância a estratégia da polarização ideológica. Pois se trata de lutar contra os que se serviram do discurso da justiça para garantir seus próprios privilégios ou para conquistar pretensos novos privilégios. Em um país onde todos podem olhar para o lado e se sentirem desprivilegiados, esse discurso tem certa força.
Contra eles, o pior a fazer é assumir a defesa da ordem, da institucionalidade, das negociações tradicionais. Isso seria tudo o que o governo quer, a saber, colocar-se como o artífice de uma revolução em marcha e empurrar seus oponentes como os defensores da ordem estabelecida.
Na verdade, há de se lembrar que essa revolução conservadora esconde sua real dinâmica. Pois ela é, no fundo, uma contrarrevolução preventiva. Há de se saber dizer a esses que se deixam seduzir pela dinâmica pretensamente revolucionária em curso: “Vocês não foram muito longe”.
Em vez de colocar “um dos nossos” no poder, uma verdadeira revolução traz o poder diretamente para as mãos dos que nunca tiveram poder. Ela destitui os lugares de poder e reconfigura sua geografia. Uma falsa revolução preserva tais lugares, fingindo colocar alguém que seria a encarnação imediata do povo.
No lugar de olhar para os lados quando se procura combater privilégios, uma verdadeira revolução olha para cima.
Ou seja, ela luta exatamente contra aqueles que este governo mais gosta de defender: os banqueiros com seus lucros inacreditáveis para uma economia paralisada, os empresários que ganham carta branca para espoliar trabalhadores, os rentistas que tem seus rendimentos intocados, mesmo em meio a crises econômicas.
O tabuleiro político do Brasil é outro. E ai daqueles que quiserem continuar a jogar o mesmo jogo de sempre.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

Quem comanda o mecanismo da Lava Jato que arruinou o continente?

Suicídio no Peru: quem comanda o mecanismo da Lava Jato que arruinou o continente? “O único benefício pessoal, ainda investigado pela procuradoria, seria o pagamento de US$ 100 mil por uma palestra que ele efetivamente deu na brasileira Fiesp. A ação foi delatada por um advogado terceirizado da Odebrecht”, informa a coluna de Mônica Bergamo na Folha.
Ao ler esta notícia me lembrei que o ex-presidente Lula foi condenado e preso sem provas, há mais de um ano, acusado de receber de propina um “triplex” no Guarujá que não é dele.
São os dois casos mais emblemáticos, até agora, do imenso mecanismo lançado há cinco anos, por um juiz de primeira instância, em Curitiba, com o nome de Operação Lava Jato, que abriria filiais nos principais países da América do Sul em nome do combate à corrupção.
Mas será que foi ele mesmo, por sua conta e risco, ?
Pelas demonstrações de total falta de competência que deu até agora como ministro da Justiça do governo Bolsonaro, é óbvio que não é o tosco Sergio Moro quem comanda esta operação que destrói tudo o que encontra pela frente: a política, os partidos, as lideranças políticas, as empresas, os empregos e degrada o Judiciário dos países em que atua.
Por onde passa, esse mecanismo de destruição em massa só deixou terra arrasada.
Com que objetivos?
Se foi criado só para combater a corrupção, fracassou, com as novas denúncias e delações diárias, num processo sem fim que quer se eternizar.
Para que serviu, então, depois de fazer tanto estardalhaço com apoio das mídias e das elites locais?
Pela dimensão que ganhou, a Lava Jato mudou as relações de poder e a própria geopolítica do continente, que havia se livrado do secular jugo do Grande Irmão do Norte, e agora volta a ser um quintal dos interesses americanos, com governantes submissos e populações amedrontadas.
Após o ciclo das ditaduras militares aliadas dos EUA nos anos 60 a 80 do século passado, esta pobre região do mundo havia reconquistado a democracia e a dignidade, agora novamente ameaçadas pela ofensiva conservadora que saiu do armário.
O que está em jogo, do Brasil à Venezuela, são os interesses das grandes indústrias petrolíferas e de armamentos, que constituem o verdadeiro poder americano.
Na marcha batida do retrocesso institucional, voltaremos apenas a ser colonias exportadoras de matéria prima barata e importadores de tecnologias e manufaturados do império.
Alan Garcia pode ter sido apenas a primeira vítima fatal desta guerra sem quartel entre quem manda e quem obedece.
Cabe lembrar aqui um áspero diálogo entre o grande empresário José Alencar e o grande banqueiro Olavo Setubal, pouco antes das eleições presidenciais de 2002 que deram a vitória a Lula.
Durante um jantar no apartamento do banqueiro, Lula e Alencar começaram a falar dos seus planos de governo para incrementar o mercado interno com distribuição de renda, quando começaram a ser interrompidos a toda hora por Setubal, com sua voz de trovão:
“Mas isso o império não vai deixar! Não vai dar certo!”
Na décima vez em que ouviu a advertência, Alencar reagiu:
“Que império não vai deixar? Nós não somos um país livre e independente?”
Não tinha jeito. Sem precisar nominar o império a que se referia, o banqueiro insistiu na sua tese, e o empresário perdeu a paciência.
“Pois fique sabendo, doutor Setubal, que se o império não deixar nós vamos pegar em armas!”
Até Lula se assustou com o radicalismo de seu parceiro de chapa e a conversa terminou sem acordo.
Pode agora até parecer engraçado e ingênuo este diálogo, mas ele resume bem a divisão da nossa elite entre quem produz e quem se submete ao deus mercado.
Em 2018, para evitar a volta do PT ao governo, o mercado se uniria a outros setores empresariais para apoiar e bancar financeiramente o capitão reformado, que eles mal conheciam.
O resto, tudo o que estamos vendo agora, é apenas consequência do cumprimento do cronograma estabelecido a partir de março de 2014, certamente não apenas por operadores brasileiros, que aqui levou os militares de volta ao poder e se alastrou por todo o continente.
Nas economias em crise, nos sistemas políticos dizimados, nas instituições em frangalhos, pode-se sempre encontrar as digitais da Lava Jato, o nome de fantasia criado em Curitiba que mudou radicalmente a cara da América do Sul em tão pouco tempo.
Neste cenário, a batalha jurídica de Lula para se livrar da prisão será no futuro apenas uma nota de rodapé na verdadeira história a ser contada daqui a 30 anos, quando o Pentágono liberar seus documentos secretos.
A palestra de Alan Garcia na Fiesp e o “triplex” de Lula ficarão como símbolos folclóricos de um tempo em que as togas se uniram às fardas para impedir que o povo escolha livremente seus governantes _ um tempo de trevas, de terra sem lei, de arbítrio, de idiotas desfilando pelas redes sociais, de destruição da Educação e da Cultura e de todas as conquistas sociais das últimas décadas.
O buraco é mais embaixo. É bom a gente abrir os olhos antes que seja tarde demais.
Brasileiros como José Alencar saíram de moda.
Vida que segue.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Adesivo criado por estudante traduz comandos por pensamento



Adesivo criado por estudante traduz comandos por pensamento

Arnav Kapur, 24, do MIT, apresentou no TED um protótipo que consegue ler os sinais neurais dos músculos do rosto e das cordas vocais

  •  
  • Fernanda Ezabella
    Vancouver (Canadá) - na FSP
    Os computadores estão ficando cada vez mais poderosos e cada vez menores, tanto que hoje os levamos no bolso da calça, na forma de celulares. Mas, para o jovem engenheiro Arnav Kapur, as máquinas vão ficar tão pequenas que vão sumir em nossos próprios corpos.
    Kapur, 24 anos, é o engenheiro-chefe do AlterEgo, um dispositivo de inteligência artificial que funciona atrás da orelha, como um adesivo transparente. O aparelho é capaz de traduzir para comandos de computador os sinais de fala interna do usuário, sem a necessidade de usar a voz.
    O estudante do Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT) fez uma demonstração da novidade no TED, evento de tecnologia, entretenimento e design que acontece nesta semana em Vancouver. “Queria fazer com que computação, inteligência artificial e internet fizessem parte de nós, parte da cognição humana”, disse Kapur.
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    Pela primeira vez, o engenheiro apresentou o mais recente protótipo do AlterEgo, bastante discreto no pescoço de um assistente de palco. A versão anterior era um aparelho maior acoplado no rosto do usuário, quase como um telefone.
    O dispositivo parece ler os pensamentos do usuário, mas Kapur explica que não é bem assim. O AlterEgo consegue ler os sinais neurais dos músculos do rosto e das cordas vocais que ativamos quando estamos deliberadamente falando sozinhos, ainda que sem abrir a boca ou mesmo mexer o rosto.
    “Os sensores do dispositivo pegam esses sinais internos da cavidade profunda da boca, e o programa de inteligência artificial os traduz e alimenta de volta a resposta via condução óssea para o ouvido do usuário”, explicou Kapur.
    Na demonstração ao vivo, ele fez uma pergunta ao seu assistente de palco que, sem se mexer, repetiu a pergunta internamente. Uma tela mostrava como o dispositivo estava traduzindo a pergunta palavra por palavra. “Como está o tempo em Vancouver?”
    Em alguns segundos, o assistente respondeu: “Está 15 graus aqui em Vancouver.”
    Kapur vislumbra inúmeras utilidades para o AlterEgo, como capacidade de decorar textos, procurar informações, fazer cálculos que só computadores conseguem, realizar traduções simultâneas, trocar mensagens em silêncio e, claro, ajudar milhares de pessoas que sofrem com problemas de fala.
    Ao final da demonstração, até a apresentadora do TED se mostrou desconfortável com a nova tecnologia: “É incrível, inovadora, e assustadora [...] Daqui a cinco anos, isso não poderia ser transformado numa arma?”
    Kapur respondeu: “Queríamos pensar em design. E mudamos o design. Em vez de ler diretamente do cérebro, o dispositivo lê do sistema neural voluntário, o qual você precisa deliberadamente ativar para se comunicar”, disse. “Ele não grava ou lê pensamentos.”
    “O objetivo é que a tecnologia suma completamente. Se você está usando, eu não deveria ser capaz de vê-la”, continuou o engenheiro, que começou a trabalhar na tecnologia em 2017. “Você não quer um aparelho na sua cara. No momento, é um adesivo cor de pele, mas queremos fazer uma versão menor ainda.”

    domingo, 14 de abril de 2019

    Brasil 'cantando galinha'

     
     

    Brasil 'cantando galinha'

    Presidente oferece Alcântara de mãos beijadas

    Rogério Cezar de Cerqueira Leite - na FSP 
     
    Na primeira metade do século passado era comum aos domingos, no interior paulista e mineiro, em vez da missa, sitiantes e moradores de pequenas cidades se reunirem em torno de rinhas de galos.

    O dono do perdedor por vezes interrompia o combate. Em outras ocasiões, a luta prosseguia até o fim, ou seja, com a morte de um dos contendores. Havia, entretanto, raras vezes em que o galo perdedor anunciava sua rendição com um cacarejo baixo, agudo e sofrido. Dizia-se que “cantou galinha”. O destino do galo que canta galinha é a panela.

    Logo depois do fim do regime militar houve no Congresso, durante a Constituinte, uma discussão sobre definição da indústria nacional. Convocado, defendi a distinção entre empresa de capital nacional e empresa multinacional. Perdi, e o Brasil cantou galinha. Havia pressão dos americanos.

    Com isso, o país perdeu a possibilidade da eventual proteção de sua indústria, como todos os países, inclusive os desenvolvidos, praticam.

    À mesma época fui convidado a defender a reserva de mercado para minicomputadores. Fui derrotado. A pressão dos Estados Unidos foi imensa. O Brasil cantou galinha mais uma vez, pois foi aniquilada a nascente indústria digital brasileira.

    Em seguida veio o debate sobre o Sivam, cujo contrato permitia aquisição de equipamentos e serviços em qualquer país, exceto no Brasil. Novamente lá fui eu ao Congresso para ser derrotado. E o Brasil cantou galinha mais uma vez.

    Na semana seguinte esta Folha noticiou a avalanche de ementas pagas aos projetos dos parlamentares que apoiaram o Sivam. E a nascente indústria nacional de radares e sensores foi para o brejo.
    E aí veio a obscena lei de propriedade industrial. Eu, fazendo o meu habitual papel de nacionalista bobo da corte, lá fui ao Congresso Nacional. Obviamente, fui derrotado.

    O Ministério da Ciência e Tecnologia, da mesma administração federal FHC, constatou que 1.050 estações de produção do setor de química fina foram extintas e 350 novos projetos, abandonados. E o Brasil já estava ficando rouco de cantar galinha em rendição às ameaças do ogro americano, cujo governo, contrariamente do que faz o brasileiro, coloca todo o seu poderio a serviço de suas empresas, pois é lá que reside o próprio poder americano.

    Chega então ao Congresso Nacional a proposta de ocupação de Alcântara por uma base militar americana. Para lá fui. Eis que o Brasil decide preservar a soberania nacional. Uma vitória, enfim. O que as ditas autoridades não percebem é que o que é válido para o galo de briga, também o é para o cidadão, para a tribo, para a nação. Os americanos, como todos os povos, desprezam os submissos, os serviçais.

    Pois bem, agora, para adoçar a boca da América, o presidente do Brasil oferece Alcântara de mãos beijadas, abdica da simbólica relação de reciprocidade entre iguais no uso de passaporte e, muito pior, vai, ele próprio, o presidente, beijar as mãos do chefe da CIA, a organização que tem como missão a espionagem, a vigilância e a “sabotagem” de interesses de outros países, tais como o Brasil. O destino daqueles que “cantam galinha” é a panela.
    Rogério Cezar de Cerqueira Leite

    Como os povos em guerra



    Como os povos em guerra

    Janio de Freitas

     A criminalidade urbana se incorpora ao nosso cotidiano, à nossa normalidade

    Indutores da eliminação humana sem julgamento e sem motivação real, por policiais e militares, Jair Bolsonaro e Wilson Witzel não tiveram coragem de dar sua opinião sobre o fuzilamento de um homem de bem, o músico Evaldo dos Santos Rosa.
    O primeiro não foi capaz sequer de emitir uma palavra a respeito, mesmo que pedida. O governador fluminense fugiu pelo caminho das frases feitas: "Não me cabe fazer juízo de valor". Não só cabe: é obrigação dos dois, submetidos a exigências funcionais que se sobrepõem à covardia moral e à fuga política.

    O crime foi cometido no estado do Rio, em circunstâncias que exigiam diversas providências do governante estadual e prontas satisfações aos seus, digamos, governados. O crime foi cometido por soldados do Exército, em atividade armada, e, portanto, sob responsabilidade federal da Presidência da República.
    As omissões de Bolsonaro e Witzel foram noticiadas, no nível de atos reprováveis sem maior relevância. Até porque o crime está repleto de elementos deprimentes, em sua ocorrência e à sua volta.
    À parte a incidência trágica e injusta sobre a família de Evaldo, um dos mais relevantes elementos está tão fora do episódio quanto nós outros. Está em nós. Sem palavras aveludadas: o que causou escândalo e indignação não foi o assassinato oficioso de um inocente, foi o número de tiros. Todas as reações, procedentes de todo o noticiário, centraram-se nos 80 tiros do ataque.
    Claro, 80 tiros foram uma loucura bárbara. Fossem três, quatro, entrariam na sequência catalogada dos crimes atuais. Surpreso com o ataque a tiros contra pessoas pacíficas em um carro ninguém poderia ficar, no Rio e em vários estados. A motivação diferente não distingue a facilidade e a frequência com que bandidos e policiais cometem esses ataques. Mas 80 tiros criam uma diferenciação. Fazem escândalo, revoltam, deprimem.
     
    O que tal peculiaridade e a reação decorrente nos dizem é o elemento deprimente de que nós outros, alheios ao crime, vamos nos tornando portadores: a criminalidade urbana se incorpora ao nosso cotidiano, à nossa normalidade. Em uma convivência natural com o nosso viver.
    É preciso um componente ainda não frequentador das notícias, para dar a um episódio criminal o poder de nos escandalizar e indignar. E quase dispor-nos a cobranças.
    A morte de Marielle, mas não a do seu motorista, já nos dissera isso. No Rio mesmo, e no Brasil afora, políticos e ativistas sociais estão morrendo na mira de assassinos, sem provocar mais do que pequena notícia, cada vez mais rara, e um instante de lástima. A incontrolável reação ao assassinato de Marielle se explica porque, além do reconhecimento à sua atividade de valente solidária, os tiros feriram o ativismo LGBT, o feminismo em geral e muito do progressismo político. Uma combinação que não permitiu o acolhimento do crime na normalidade que se forma fora e dentro de nós.
    Com Evaldo dos Santos Rosa, naqueles dias morreram jovens sem culpa. Um bebê na barriga da mãe recebeu na cabeça uma "bala perdida" e luta para chegar ao nascimento. Crimes, muitos crimes. Tiveram, no entanto, pouco ou nenhum componente que impedisse sua incorporação pelas pessoas em que vamos nos transformando. Como os povos que vivem 10, 20 e mais anos sob guerra.
    Janio de Freitas