André Lara Resende: Razão e superstição
A superstição do déficit
Paul Samuelson, o economista que mais contribuiu para a formulação e a ordenação da teoria econômica na segunda metade do século XX, o primeiro laureado com o Nobel, em entrevista a Mark Blaug para um documentário dos anos 1990 sobre Keynes, diz que a crença de que seria sempre preciso equilibrar o orçamento fiscal é uma superstição, um mito, cuja função é mais ou menos a mesma das religiões primitivas: assustar as pessoas para que elas se comportem de maneira compatível com a vida civilizada. Crença que, uma vez desmascarada, corre o risco de abalar um dos bastiões que toda sociedade deve ter para evitar que os gastos públicos saiam de controle, pois sem disciplina e racionalidade na alocação de recursos, o resultado é ineficiência e a anarquia.
Samuelson está certo, é claro, sobre a necessidade de disciplina e racionalidade nos gastos públicos. Compreende-se assim por que a afirmação de que o governo que emite sua moeda não tem restrição financeira – que nada mais é do que uma constatação trivial – provoque reações tão virulentas nos que temem a anarquia. Desde o Iluminismo, a racionalidade substituiu, com enormes vantagens, os mitos e as superstições na promoção da civilidade, mas os que veem a desmistificação dos déficits públicos como uma ameaça, aparentemente não concordam. Na tentativa de convencê-los, é preciso, antes de mais nada, examinar as razões pelas quais é tão difícil entender que o governo possa não ter restrição financeira.
A primeira delas é uma questão de senso comum: todos devem procurar equilibrar receitas e despesas. É preciso ter cautela em relação ao endividamento excessivo para evitar problemas. A regra vale para todos, tanto para as famílias quanto para as empresas, para as organizações sem fins lucrativos, para as entidades beneficentes e também para os governos que não têm moeda própria. Se é verdade para todos, é natural inferir que seria também verdade para os governos que emitem a sua moeda, sobretudo se isso é o que se ouve insistentemente repetido, a toda hora em toda parte, por jornalistas, especialistas, economistas e políticos ditos responsáveis.
É natural que a grande maioria das pessoas, que nunca parou para refletir sobre o tema, simplesmente adote como verdade o que, além de fazer sentido para o senso comum, é insistentemente bombardeado na mídia. Já a razão pela qual os economistas de formação insistem em acreditar em algo flagrantemente equivocado é mais complexa. Está ligada ao fato de que a teoria monetária ensinada nas escolas de economia ainda não foi revista para refletir a realidade da moeda fiduciária. Continua pautada pela lógica do metalismo.
O padrão-ouro, tornado anacrônico em Bretton Woods, foi definitivamente sepultado em 1971, quando os Estados Unidos acabaram com a conversibilidade do dólar, mas o ensino das questões monetárias, do funcionamento do sistema financeiro e do papel do Banco Central, não se adaptou à nova realidade.
Duas concepções da moeda
Duas visões do que é a moeda disputaram a primazia intelectual como referência para a formulação de políticas desde o fim do século XVIII, quando a Inglaterra, premida pelos gastos da guerra contra Napoleão, viu-se obrigada a suspender a conversibilidade da libra em ouro. A inconversibilidade, que perdurou de 1797 até 1821, provocou um acalorado debate que ficou conhecido como a “controvérsia bulionista”. Enquanto os bulionistas – o nome vem de “bullion”, lingote em inglês – previam o caos, dado que para eles a estabilidade monetária dependia da conversibilidade, os antibulionistas sustentavam que a moeda não precisava ser lastreada, pois era apenas uma unidade de crédito contra o Estado. A controvérsia foi retomada décadas mais tarde, em meados do século XIX, agora com os metalistas agrupados na “currency school” e os antimetalistas na “banking school”.
Os metalistas, liderados por David Ricardo, saíram vitoriosos, tanto na política como nas escolas. Como observou Keynes, no seu clássico “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha. A sua teoria não foi apenas aceita pela City, pelos homens públicos e pela academia mundial, mas também suprimiu a controvérsia; o outro ponto de vista desapareceu completamente, deixou de ser discutido”.
Em retrospecto, fica claro que os antimetalistas estavam certos, mas à frente de seu tempo. A moeda com lastro metálico desapareceu, o padrão-ouro foi definitivamente abandonado, a moeda contemporânea é puramente fiduciária e avança rapidamente para se tornar eletrônica, meramente contábil. Como compreenderam os antimetalistas, a essência da moeda é realmente ser uma unidade de crédito contra o Estado. Uma unidade de crédito com a qual é possível redimir obrigações tributárias e que passa a ser adotada como a unidade de conta padrão da economia.
A moeda metálica é apenas uma das formas que pode tomar a moeda. Uma forma que prevaleceu durante certos períodos da história das civilizações. O papel-moeda lastreado em metais preciosos, como a prata e o ouro, é a etapa seguinte, quando o sistema bancário passa a emitir títulos de crédito próprios, mas ainda é obrigado a manter uma fração dos seus títulos em lastro metálico.
Ao tomar o lastro metálico da moeda como a moeda propriamente dita, os metalistas confundem uma singularidade histórica da moeda com o conceito abstrato de moeda. Uma moeda é uma medida abstrata de valor, como 1 kg é uma medida abstrata de peso. Assim como o 1 kg já teve expressão física, normalmente um cilindro de ferro fundido utilizado nas antigas balanças de dois pratos, a moeda também já teve expressão física metálica. Foram ambas aposentadas pelo avanço da tecnologia.
A concepção metalista da moeda, que inspirou a formulação da teoria monetária dominante até muito recentemente, pode ter sido uma aproximação razoável da realidade no passado. Para as economias contemporâneas, onde a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, sofisticado, é um anacronismo equivocado e oneroso.
Ao confundir a moeda metálica com o conceito abstrato de moeda, os economistas foram induzidos a criar uma versão sobre as origens da moeda hoje comprovadamente equivocada – ver Goodhart (1998) e Tcherneva (2016). Durante muito tempo, os economistas sustentaram que a moeda era uma criação espontânea dos mercados para contornar a chamada “coincidência de necessidades” do escambo e facilitar as trocas de mercadorias. Esta versão da origem da moeda, largamente predominante entre os economistas, não tem sustentação nos estudos antropológicos e históricos.
Os economistas, mais uma vez, confundem a história da moeda física, cunhada em metais, com a história do conceito de moeda. É hoje fato bem documentado que o conceito de moeda antecede a cunhagem metálica em pelo menos 3 mil anos. Tabuletas de barro, conchas e diversas outras formas de representação de um crédito contra o rei ou o detentor do poder, sem nenhum valor intrínseco, circularam milhares de anos antes da cunhagem de moedas metálicas.
Estudos antropológicos indicam que os templos e os palácios na Mesopotâmia, assim como no Egito, elaboraram sistemas internos de contabilidade, de débitos e créditos, que serviam de base para uma unidade de conta e de reserva de valor. Há sólidas razões para crer que na maior parte da história da humanidade – ver Graeber (2011) – a moeda não tenha tido existência física, mas apenas virtual, como uma medida abstrata de valor.
Uma transposição indevida
Assim como os pintores medievais europeus, incapazes de transcender a realidade que conheciam, pintavam cenas bíblicas com base nos castelos e nas indumentárias de sua época, os metalistas ingleses, dos séculos XVII e XVIII, formularam uma teoria sobre as origens e a função da moeda com base na realidade específica de seu tempo. O equívoco sobre as origens históricas da moeda, embora mais uma indicação do pretensioso distanciamento que a economia fez questão de tomar em relação às demais ciências humanas, é bem menos pernicioso do que a consolidação de uma realidade específica numa teoria monetária incompatível com o sistema monetário contemporâneo. A Teoria Quantitativa da Moeda, TQM, e a Teoria do Multiplicador Bancário, TMB, são exemplos de extrapolações de uma realidade histórica circunstancial, formalizadas com pretensão de validade universal.
No século XVII, quando David Hume formulou originalmente a hipótese de que o nível de preços seria proporcional à quantidade de moeda em circulação, a base da TQM, é possível que esta fosse efetivamente uma boa aproximação da realidade. Afinal, a moeda era lastreada no ouro, e a descoberta do ouro nas Américas, importado para uma Europa estagnada, ainda antes da Revolução Industrial, sem capacidade de expandir a oferta de bens e serviços, deve realmente ter tido impacto inflacionário. O apelo da hipótese quantitativista foi reforçado pelo fato de se prestar a uma formulação algébrica simples e intuitiva. A equação quantitativa, M.V = P. Y, é provavelmente uma das mais conhecidas da teoria econômica. O valor do produto, PY, é uma proporção 1/V do estoque de moeda.
Quando a moeda tem expressão física, é uma quantidade física de ouro ou um múltiplo da quantidade de ouro na economia, faz sentido postular que dado o produto, Y, o nível de preços seja proporção 1/V do estoque de moeda M. Simples, intuitivo, capaz de dar resposta ao mistério da determinação do nível de preços, portanto também da sua variação, a inflação ou a deflação, e infelizmente errado. Rigorosamente errado numa economia onde a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, desenvolvido. Numa economia primitiva, sem sistema financeiro, é razoável supor que a quantidade de ouro guardasse relação relativamente estável com a renda e a riqueza, mas basta que haja um único título financeiro que pague juros para que essa relação deixe de ser uma boa aproximação da realidade, pois a mesma renda, ou riqueza, é compatível com inúmeras combinações de ouro e crédito.
A teoria monetária quantitativista resolve esta indeterminação com o multiplicador bancário. A TMB pressupõe que o crédito criado pelo sistema bancário seja também uma proporção fixa do estoque de ouro. Parte-se de um sistema de reservas fracionárias, ou seja, de um sistema em que os bancos mantêm uma fração dos depósitos como reservas e expandem os seus empréstimos sempre que têm reservas excedentes. O total de crédito, ou de moeda bancária, seria assim um múltiplo das reservas em ouro do sistema. A lógica da moeda lastreada foi transposta, sem muita reflexão, para o sistema de moeda fiduciária. O papel do estoque de ouro passou a ser atribuído à chamada base monetária, composta pelo papel-moeda em poder do público mais as reservas no Banco Central. O papel-moeda é cada vez menos relevante e pode ser ignorado – tornando a base monetária igual às reservas – sem prejudicar o argumento. O valor total da moeda na economia, M – a soma da base monetária, B, com os depósitos à vista nos bancos, D – é função do multiplicador bancário. Ou seja: M = B + D e D = m.B, logo M = (1+m) B.
Como o multiplicador, m, é função de parâmetros regulatórios, a proporção entre D e B é fixa e determinada pelo Banco Central. Portanto, como a base estaria sob controle do Banco Central, tanto o estoque total da moeda, M, quanto a proporção entre B e D, também estariam sobre o seu controle direto.
A base monetária endógena
Ocorre que, com a moeda fiduciária, nem o Banco Central nem os bancos de depósitos precisam de reservas para emprestar. A base monetária não é mais composta por uma mercadoria física que o Banco Central precise adquirir, mas é simplesmente o resultado do que o Banco Central vier a creditar eletronicamente nas reservas dos bancos. O que então determina a quantidade de reservas creditadas pelo Banco Central? Aqui está o ponto-chave do equívoco provocado pela transposição da lógica metalista para o sistema monetário fiduciário. Ao contrário do que pretende a TQM e do que foi ensinado durante décadas, até pelo menos o fim do século passado nas escolas de economia, o Banco Central não controla, nem tem como controlar, a quantidade de reservas. Dito de outra forma: não controla a base monetária. Como foi finalmente reconhecido em fins da década de 1990, o instrumento de política monetária do Banco Central é a taxa de juros sobre as reservas bancárias, e não a quantidade de reservas.
Num sistema em que a moeda é fiduciária e o sistema financeiro, sofisticado, os bancos podem sempre tomar e emprestar reservas, sem qualquer problema, à taxa básica determinada pelo Banco Central. Não faz sentido para os bancos manter reservas acima do exigido como compulsórias e abrir mão dos juros que poderiam fazer jus ao cedê-las para o mercado ou para o próprio Banco Central. Individualmente, os bancos vão diariamente ao interbancário, ou ao Banco Central, para tomar reservas insuficientes e repassar reservas excedentes, mas, no agregado, os bancos não têm como criar ou destruir reservas. A única forma que o sistema bancário como um todo tem para obter ou repassar reservas é através do Banco Central. Para evitar que a taxa de juros sobre as reservas tenha oscilações violentas, o Banco Central é obrigado a suprir as reservas requeridas e tomar as reservas excedentes à taxa básica. O funcionamento do sistema é claro: o Banco Central determina a taxa de juros sobre as reservas e empresta ou toma emprestado o que o sistema bancário demandar a esta taxa. Ao contrário do que afirma a teoria estabelecida, quando os bancos têm reservas excedentes, não aumentam seus empréstimos, mas as repassam para o Banco Central à taxa básica de juros. Os bancos só aumentam os seus empréstimos quando têm tomadores confiáveis às taxas que lhes são interessantes e, em seguida, vão buscar as reservas requeridas no Banco Central. O Banco Central é o supridor e o tomador passivo de reservas para o sistema à taxa básica de juros.
Nem o Banco Central controla a base monetária nem a relação entre as reservas e a moeda é dada por um multiplicador constante. Tanto a TQM quanto a TMB, que até hoje são ensinadas nas escolas de economia, estão equivocadas – ver Borio (2018). A base monetária se expande com os gastos do governo e se contrai com o aumento das receitas do governo, assim como se expande com a aquisição e se contrai com a venda de ativos por parte do Banco Central, mas o Banco Central não tem opção a não ser acomodar a demanda por reservas se não quiser perder o controle da taxa básica de juros. Quando o sistema perde reservas, seja porque houve uma saída líquida de divisas ou um saldo positivo da arrecadação sobre a despesa do governo, o Banco Central é obrigado a financiar o sistema bancário e a fornecer as reservas. Da mesma forma, quando há uma entrada de divisas ou um excesso de gastos sobre a arrecadação do governo, o Banco Central se vê obrigado a tomar o excesso de reservas à taxa básica. Mais uma vez: o Banco Central fixa a taxa básica e se torna um ator passivo, fornecendo ou tomando as reservas demandadas pelo sistema. O nível de reservas do sistema é primordialmente determinado pelo compulsório. Esta é a razão pela qual, ao contrário do que entendia a TMB, o aumento do compulsório eleva a base monetária, mas não tem qualquer implicação sobre o volume de crédito. A elevação do compulsório é apenas uma forma de taxar o sistema bancário, pois o Banco Central coleta o compulsório – que não é remunerado -, mas é obrigado a fornecer o equivalente em reservas – sobre as quais cobra a taxa de básica – ao sistema bancário.
Moeda, dívida e o espectro do metalismo
No sistema monetário fiduciário contemporâneo, tanto o papel-moeda como as reservas excedentes se tornaram irrelevantes e tendem a desaparecer. Em breve, o único passivo não remunerado do governo consolidado – Tesouro mais o Banco Central – serão as reservas compulsórias. A definição de que parte do passivo financeiro do governo é considerada moeda sempre foi arbitrária. Com o sistema financeiro desenvolvido e o Banco Central sempre pronto para fornecer reservas em operações de recompra, os títulos públicos são quase perfeitamente líquidos. Todo o passivo financeiro do governo é remunerado e líquido. Não faz sentido distinguir o que seria “moeda” dos demais papéis de dívida pública. A moeda sempre foi um título de dívida do governo como qualquer outro, que só se distinguia por não pagar juros e ser emitida pelo Banco Central. Hoje o Banco Central só “emite” reservas remuneradas e de forma passiva, de acordo com as demandas do sistema bancário para atender a obrigação de reservas compulsórias. A separação entre o Tesouro e o Banco Central é uma forma de organização institucional que dificulta a compreensão de que não há diferença entre moeda e os demais títulos do passivo financeiro do governo. Num sistema de moeda puramente fiduciária, a moeda é apenas mais um título de dívida pública cujo valor unitário de face serve como unidade de conta universal na economia. A separação entre o Tesouro e o Banco Central, embora faça sentido operacional, dado que as duas agências têm funções muito distintas, dificulta o entendimento de que o governo não tem restrição financeira. Se superstição do orçamento sempre equilibrado for efetivamente condição para um comportamento civilizado, esta pode ser vista como mais uma vantagem da separação entre o Tesouro e o Banco Central, mas como toda superstição, como tudo que obscurece o entendimento racional, tem seus custos.
A proibição legal de que o Banco Central financie o Tesouro, por exemplo, é uma restrição que encarece a dívida pública. Se o Banco Central pudesse financiar o Tesouro, creditaria as reservas diretamente em sua conta. O excesso de reserva criado seria, obrigatoriamente, retirado do mercado em operações de recompra à taxa básica. Com o Tesouro obrigado a vender seus títulos para se financiar, o mercado irá, obrigatoriamente, ao Banco Central para obter, através de operações de recompra à taxa básica, as reservas usadas na compra dos títulos do Tesouro. O resultado final é o mesmo: houve um aumento do passivo financeiro do governo equivalente às reservas fornecidas pelo Banco Central e creditadas ao Tesouro. A diferença é que o mercado, ao comprar os títulos do Tesouro e se financiar com o Banco Central, se apropria da diferença entre a taxa básica e a remuneração dos títulos do Tesouro. Com o Banco Central impedido de creditar reservas diretamente na conta do Tesouro, é preciso que o Tesouro venda seus títulos no mercado e que o Banco Central forneça, obrigatoriamente, as reservas para que o sistema bancário possa pagar ao Tesouro. Do ponto de vista do governo consolidado – Tesouro mais Banco Central -, no fim das contas, a única diferença é o custo do seu passivo financeiro. Como os títulos do Tesouro têm prazos mais longos e remuneração descasadas em relação à taxa básica, os compradores exigem prêmios para carregá-los. Além do mais, a superstição de que o Tesouro está submetido a uma restrição financeira faz com que os compradores de seus títulos exijam um prêmio para fazer face a um risco inexistente de default. O resultado é um custo mais alto do que seria necessário se o Banco Central pudesse financiar o Tesouro e recomprasse diretamente à taxa básica as reservas creditadas na conta do Tesouro.
O sistema de pagamentos, a atuação do Banco Central e a gestão do passivo financeiro do governo precisam ser reformulados. Um novo desenho, adaptado à realidade contemporânea, exige que se abandone definitivamente o espectro da concepção metalista da moeda. Um sistema de depósitos remunerados no Banco Central aumentaria a eficiência do sistema de pagamentos e reduziria o custo da dívida pública. Depósitos à vista remunerados no Banco Central são um ativo superior, em termos de risco e liquidez a qualquer título emitido pelo Tesouro, por isso não pagam os prêmios que encarecem a dívida pública. Duas objeções são comumente levantadas em relação ao financiamento da dívida pública através de depósitos remunerados no Banco Central. A primeira é quanto ao seu potencial inflacionário. Trata-se de uma preocupação sem fundamento inspirada pelo espectro da TQM.
Como ficou cabalmente comprovado com o QE nas economias avançadas, o excesso de reservas remuneradas não provoca a expansão do crédito e da demanda agregada. Evita o colapso quando a confiança desaparece num sistema financeiro muito alavancado, mas por si só é incapaz de estimular o consumo e o investimento. A segunda é que sem títulos públicos de longo prazo, o Banco Central não teria como atuar sobre a curva intertemporal de juros. Embora a taxa básica de overnight seja o principal instrumento da política do Banco Central, o balizamento das taxas intertemporais, através de operações de mercado aberto, é parte do arsenal do Banco Central. A preocupação faz sentido, mas nada impede que um sistema de dívida pública, baseado majoritariamente em depósitos remunerados no Banco Central, seja complementado com a emissão de títulos de diferentes prazos e indexadores para auxiliar o balizamento das expectativas.
Superstição e paternalismo
Voltemos a Samuelson e às razões daqueles que veem a desmitificação dos déficits como uma ameaça. Os menos informados poderiam tomar as observações de Samuelson como um endosso à superstição de que o governo deve sempre equilibrar o orçamento. Nada mais equivocado. Paul Samuelson foi um dos mais destacados defensores da razão. Como macroeconomista, com seus colegas do Departamento de Economia do MIT, na segunda metade do século passado, como Robert Solow, Franco Modigliani e outros, foi um incansável crítico do quantitativismo monetário e do dogmatismo fiscal. Samuelson apenas reconhece que, sem controle dos gastos públicos e racionalidade na alocação de recursos, o resultado é a ineficiência e a anarquia. Este é a questão primordial de toda a controvérsia em torno da constatação de que o governo não tem restrição financeira. Não ter restrição financeira, não significa que tudo seja permitido, que a escassez de recursos inexista e que o custo de oportunidade possa ser desconsiderado. Ao contrário, significa que a preocupação relevante em relação aos gastos públicos é com a qualidade, com a avaliação objetiva de seus custos e benefícios, com a sua capacidade de aumentar a produtividade e o bem-estar. Esta não é, evidentemente, uma exigência fácil de ser posta em prática, mas é a que faz sentido.
Acreditar que o problema do gasto público está em garantir o seu financiamento é uma superstição que provoca dois tipos de equívocos igualmente perniciosos. Primeiro, acreditar que não se pode gastar sem contrapartida de receitas, mesmo quando os gastos são plenamente justificados. Segundo, acreditar que se o financiamento está garantido, o problema foi resolvido. Enquanto o primeiro equívoco mantém o governo de mãos atadas diante do desemprego, da capacidade ociosa, da deterioração da infraestrutura, da falta de saúde, de saneamento e de segurança pública, o segundo leva a crer que basta vincular receitas no orçamento para que o problema esteja solucionado. O Brasil de hoje é o retrato acabado e dramático da combinação desses dois equívocos.
Nada garante que desmascarar a superstição dos déficits irá resolver nossos problemas. É provável que seja preciso desenhar restrições institucionais para disciplinar a ilimitada e demagógica demanda por gastos públicos, mas que sejam restrições baseadas na razão, e não em superstições. Sustentar o mito do orçamento equilibrado, porque não se confia que o país seja capaz de resistir à tentação dos gastos irresponsáveis, não é diferente de defender a burca porque não se confia no comportamento das mulheres. É preciso dar fim à superstição do orçamento equilibrado, não apenas em nome da racionalidade, mas também porque o paternalismo tecnocrático impede o desenvolvimento de uma democracia responsável.
Referências
Borio, C. (2019) “On Money, Debt, Trust and Central Banking” – BIS Working Papers nº 763
Goodhart, C. A. E. (1198) “Two Concepts of Money: Implications for the Analysis of Optimal Currency Areas” – European Journal of Political Economy, 14
Graeber, D, (2011) “Debt: The First 5000 Years”. London, UK: Melville House Publishing
Tcherneva, P. R. (2016) “Money, Power and Monetary Regimes” – Levy Economic Institute of Board College – Working Papers nº 861
André Lara Resende é economista
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