domingo, 25 de agosto de 2019

Mais do que o fogo, burrice amazônica do governo Bolsonaro ameaça o Brasil


Mais do que o fogo, burrice amazônica do governo Bolsonaro ameaça o Brasil

Em rede nacional, Bolsonaro elogia política ambiental do país, que tenta destruir

Vinicius Torres Freire

Houve panelaços contra Jair Bolsonaro em bairros de rico de São Paulo. São lugares onde o presidente ganhou de lavada e Fernando Haddad (PT) perdeu de João Amoedo (Novo) na eleição de 2018.
As panelas cantavam enquanto Bolsonaro aparecia em rede nacional, na sexta-feira (23). Com a catadura feroz de costume, falava como quem dá ordens a um pelotão de fuzilamento, um de seus padrões de eloquência.
No entanto, elogiava as leis ambientais brasileiras e o sucesso relativo do país no Acordo de Paris. Afirmava que o Brasil é um “exemplo de sustentabilidade” e que é preciso ter “serenidade” (!) no debate.
Parecia um discurso que fez em Davos, para inglês ver.
Presidente durante pronunciamento sobre crise ambiental - Carolina Antunes/PR
Não sabia do que estava falando, como de hábito. Bolsonaro elogiava décadas de políticas e acordos ambientais, os quais ameaça de morte, criados sob tantos governos, todos “de esquerda”.
O progresso começa com uma lei de 1981, no governo do general João Figueiredo, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente e o Conselho Nacional do Meio Ambiente. Passou a ter efeito prático com o Ibama, responsável pela implementação da política do meio ambiente, criado em 1989, sob José Sarney. A lei de crimes ambientais é de 1998, anos FHC. A medição e o controle sistemáticos do desmatamento começaram nos anos Lula.
A citação dos presidentes é ironia. A aprovação e a aplicação das leis ambientais é uma resultante da ação de militantes, de partidos políticos, de funcionários de Estado, de “estudiosos e especialistas” (que Bolsonaro odeia), da diplomacia e, em anos recentes, de parte importante do empresariado rural.
Trata-se de um progresso da sociedade brasileira, por vezes parido à força ou em combates furiosos, até hoje frequentemente assassinos. A gente esquece, mas o país trabalhou muito para tirar sua imagem e suas práticas ambientais da lama tóxica. Um esforço de 30 anos que Bolsonaro queima em meses.
Quem passar um pente estatístico na série de números de queimadas terá grande dificuldade de afirmar que existe uma tendência de alta. Não é o caso do desmatamento. Seja como for, o problema maior até aqui é Bolsonaro, que ataca as instituições de progresso e controle ambiental.
Instituições não são máquinas de aplicação de políticas e leis. Para funcionar, dependem de apoios e incentivos materiais, morais e políticos, além da circulação livre de informação correta. O presidente toca fogo em tudo isso. Assim também ameaça a Polícia Federal, a Receita e a Procuradoria da República.
Jacta-se do poder da sua canetinha, associando o exercício da Presidência ao mandonismo, de modo jeca e ignaro, para piorar. Tivemos ditadores mais espertos.
De resto, cadê as políticas ambientais liberais de seu autoproclamado governo liberal? Há quem não goste, mas são alternativas no universo da razão.
Pode haver mercados de permissões para poluir, de cotas de exploração de recursos naturais ou de áreas de reserva ambiental, que dependem de controle e cadastro, como o rural, adiado sine die. Até o ano passado, o governo estudava a criação de um sistema de preços para emissões de poluentes. Cadê apoio técnico e incentivos de mercado para recuperar pastos e terras exauridos? Para o pequeno produtor? Para “start-ups” rurais, as agritechs?
Há apenas “desejo de matar”, “prendo e arrebento”, temperados por burrice e ignorância administrativa, política e diplomática.
Vinicius Torres Freire

Otimismo brasileiro também atende pelo nome de autoengano

Otimismo brasileiro também atende pelo nome de autoengano

Otimista quer crer que o mercado, as instituições e o próprio governo vão frear os desvarios do chefe da nação



Durante as eleições presidenciais, um certo otimismo brasileiro tentou nos convencer de que a incompetência do atual presidente era sua maior virtude. Quanto mais tosco, mais manipulável; sua presença no cargo seria, na pior das hipóteses, inócua.
O presidente seria um fantoche nas mãos dos interesses representados pelos inicialmente chamados superministros da Economia e da Justiça, sem o apoio dos quais ele provavelmente não teria condições de se eleger e muito menos de governar. Sendo o presidente um idiota, governaria o governo.
O otimismo brasileiro também atende pelo nome de autoengano e oportunismo.

Além de continuar querendo crer que o presidente é burro, o otimismo brasileiro agora tenta nos convencer de que, numa reviravolta inesperada, o presidente trabalha contra o governo.
O raciocínio é sedutor, porque nos alivia da responsabilidade e sobretudo da perspectiva da deriva e do desmonte como política de Estado. O otimismo brasileiro quer crer que, no final das contas, o mercado, as instituições e o próprio governo serão suficientes para frear os desvarios do chefe da nação. Nem é preciso dizer que ele é o primeiro interessado em que você acredite nisso. A despeito das aparências e de todo o otimismo, o presidente e seu governo não são coisas distintas.
O otimismo brasileiro continua querendo acreditar que pode domar o presidente a seu favor. Está difícil (e ficará mais difícil quando se confirmarem os efeitos de uma nova crise econômica internacional), mas o otimismo brasileiro é obstinado e voluntarioso, não vai abrir mão de suas crenças já na primeira contrariedade.
O mais desagradável nesse meio-tempo foi entender que o oportunismo não é exclusividade de ninguém. Quem está acostumado a levar vantagem tem dificuldade de mudar de ideia sobre quem está usando quem.
Uma vez no poder, o projeto de assalto ao país (desmantelamento da verdade, da justiça, da ciência, da educação, do meio ambiente) atrelou um eventual fracasso do governo ao risco do caos.
Fomos levados a associar a verdade e a justiça a inimigas da economia e do combate à corrupção. Entre a cruz e a caldeirinha, fomos forçados a acreditar, pelo estilo aparentemente intempestivo e descontrolado do presidente, que seu governo trabalhava para nos salvar dele, quando desde o início tem sido justamente o contrário. O projeto do presidente seria insustentável sem o aval e a fachada de um governo de aparente idoneidade no trato da economia e no combate à corrupção.
É verdade que as condições para a tempestade perfeita já estavam delineadas no horizonte havia anos. O presidente não é nenhum gênio, mas não se devem desprezar seu sentido de oportunidade, seu faro e sua estratégia. Suas idas e vindas aparentemente contraditórias fazem todo o sentido. Vai chutar a porta até abri-la, sempre que houver uma oportunidade, quando estivermos distraídos, quando ninguém estiver olhando.
Não há perspectiva de sobrevivência para ele e sua família fora do caos, fora da guerra civil, em um mundo norteado pelos valores da justiça e da verdade. Manipulando a má-fé e o oportunismo alheio, o presidente tem conseguido fazer seu governo trabalhar em concerto com ele para a instalação do caos.
Inédito no Brasil, “Ornamento”, do colombiano Juan Cárdenas, é um romance perturbador, que fala da ambiguidade da manipulação, num sentido perverso que articula capitalismo, drogas, desejo e identidade. É difícil entender quem manipula quem. E quais são as últimas consequências dessa manipulação. Uma incompreensão análoga está na base do nosso suicídio coletivo.
Sem mencioná-lo, o romance remete ao célebre texto de Kleist sobre o teatro de marionetes, que atribui a graça à inconsciência do gesto. Embora conduzidos por cordéis manipulados por um ator oculto, os movimentos dos títeres, ao contrário do ator condenado à afetação da sua consciência, incapaz de reproduzir a graça de ações irrefletidas, têm a naturalidade de obedecer unicamente à mecânica do seu próprio centro de gravidade.
O texto suscita uma série de questões desestabilizadoras sobre as ideias que fazemos a propósito da consciência e da autodeterminação. Pode não ter a ver diretamente conosco, mas faz pensar na ambiguidade da relação perversa e suicida na qual nós, brasileiros, espantosamente nos deixamos enredar. À diferença das marionetes, entretanto, nosso centro de gravidade foi substituído pelo desequilíbrio entrópico do nosso próprio oportunismo. Não podia ter mesmo a menor graça.

Bernardo Carvalho
Romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

Na cabecinha

Na cabecinha

Fernanda Torres


Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar


Terça-feira gorda . Um homem sequestra um ônibus na ponte Rio-Niterói. Numa ação bem calculada da polícia, atiradores de elite o abatem, salvando a vida dos passageiros reféns.
Ao descer do helicóptero que o levou até a cena do crime, o governador Wilson Witzel não contém a euforia e, erguendo os punhos, comemora o desfecho como um torcedor de futebol que vibra diante de um gol.
Uma semana antes, sua política linha-dura de segurança pública, com uso de helicópteros blindados para atirar “na cabecinha” dos bandidos, havia enfrentado duras críticas.

Depois da morte de seis jovens inocentes em confrontos entre a polícia e o tráfico, a ONG Redes da Maré entregou à Justiça 1.500 cartas escritas e ilustradas por crianças da comunidade, pedindo maior racionalidade nas ações policiais.
Witzel reagiu incomodado, pondo a culpa dos óbitos nos defensores dos direitos humanos. E viu, no bem sucedido abate do sequestrador da ponte, uma justificativa para a truculência de sua gestão. Daí a alegria incontida do governador.
Nas declarações sobre o ocorrido, Witzel procurou ser comedido, se solidarizando inclusive com a família do sequestrador, mas a linguagem corporal que exibiu no desembarque não deixa dúvida quanto ao lucro político que pretendia extrair da tragédia.
Qual a razão de elegermos políticos tão bélicos, tão devotos de Deus e da bala, que confundem direitos humanos com ideologia vermelha e prometem sanar o problema social com o extermínio bem aplicado?
A razão é o medo.
Em entrevista ao programa Painel, na GloboNews, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao ser confrontado com o diretor demitido do Inpe, o físico Ricardo Galvão, argumentou que os projetos de exploração da biodiversidade amazônica haviam fracassado e que era hora de buscar alternativas.
As queimadas e o desmatamento vexaminoso pareciam não afetar o ministro, que ressaltava as riquezas intocadas da região, minimizando o valor da ciência, o desmonte do Ibama e os benefícios trazidos pelo Fundo Amazônia.
Witzel e Salles se completam.
Ambos defendem a ideia de que o nhém-nhém-nhém ecológico-humanista da social-democracia faliu, foi para o ralo junto com o demônio encarnado do lulopetismo.
De fato, entra governo sai governo, os problemas de habitação, saneamento, saúde, segurança e educação só se agravam. Cruzado novo, cruzeiro novo, Nova República... O Brasil é o país condenado a começar do zero.
A diferença, agora, é que o desejo de jogar na latrina tudo isso que está aí, vem acompanhado da percepção de catástrofe irrefreável, de fim de mundo, que os atuais governantes parecem querer acelerar. O apocalipse está em voga.
As mudanças climáticas, os verões tórridos, as secas, incêndios e inundações, a miséria crescente, as migrações, o lixo tóxico, as epidemias e a recessão econômica, esse rosário de horrores sem solução breve ou possível, delineia um não futuro onde a morte aos milhões será inevitável.
Tenho vivido assim.
O caixa da farmácia embrulha uma cartela de analgésico num saco plástico gigante, eu recuso o invólucro e penso: o mundo vai acabar. Corro a lagoa respirando escapamentos e concluo: o mundo vai acabar. Dou descarga, como carne, separo o lixo, escovo os dentes, espero o ipê que plantei florescer e sei: o mundo vai acabar. Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar.
E não é nem preciso que a frente fria vinda do sul se misture com a fuligem das queimadas do norte, transformando em noite a tarde de agosto em São Paulo, para saber que o mundo vai acabar.
Porque até numa manhã de luz, com o verde da mata aceso contra o céu azul da Guanabara, tenho a certeza de que o mundo vai acabar.
O terceiro milênio não cumpriu o esperado. A classe média empobreceu, os empregos foram para o brejo, a tecnologia da rede revelou o pior de nós todos e seguimos escravos do consumo e da queima suja de combustível fóssil. Só uma catástrofe de proporções bíblicas fará parar a engrenagem.
É a angústia, o pânico do porvir, é o medo que se agarra em Deus e elege esse governador que, incapaz de conter o gozo, comemora o tiro, mesmo que devido, de um sniper.
Freud deu nome aos bois logo após a primeira das duas grandes guerras mundiais que teve a infelicidade de testemunhar. Essa ânsia de fim se chama pulsão de morte.
Só tem dado ela nas urnas eleitorais do planeta.
 
Fernanda Torres
Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

domingo, 18 de agosto de 2019

A palavra do coprófilo


A palavra do coprófilo

O Brasil está sem dinheiro porque está sem governo


Janio de Freitas

  • "O Brasil está sem dinheiro / os ministros estão apavorados / estamos aqui tentando sobreviver". Dessa vez Jair Bolsonaro não mentiu, mas não é bem como disse. O Brasil está sem dinheiro porque está sem governo. E sem governo não há país que sobreviva como algo que seja ainda considerado país.
    Faltam dinheiro e governo porque, com a produção industrial em queda contínua, o comércio em queda, queda até nos serviços e o crescente desemprego, a arrecadação de impostos e outras contribuições não alcança o mínimo necessário. Colapso a que Paulo Guedes, Bolsonaro e os militares retornados assistem com indiferença imobilizadora há quase nove meses. A solução que Guedes pesca em sua perplexidade é o seu apelo por dois ou três anos de paciência.
    Em economia não existe o conceito de paciência. Na vida dos países, muito menos.
    Muito diferente foi o assegurado aos eleitores na campanha, pelo candidato, por Guedes, por consultorias e jornalistas do apoio a Bolsonaro. Durante meses, ouviu-se que já neste primeiro ano de governo o crescimento econômico seria de 3%, se não mais. Desde o primeiro mês de 2019, no entanto, as previsões foram submetidas a sucessivos cortes mensais. Ainda a quatro meses e meio do fim de ano, já estão em 0,8% ou menos, havendo quem admita 0% no final.
    Esse resultado às avessas não se explica pelo mau legado de Henrique Meirelles e Temer, que, de fato, nada fizeram pela reativação da economia. Era por haver conhecimento geral daquela insanidade que o bolsonarismo buscava seduzir com os prometidos 3% de crescimento já. Além do golpe da internet, portanto, o estelionato eleitoral, na expressão criada por Delfim Netto.
    Dois momentos da realidade devem ficar registrados. Um é que o problema econômico se apresenta em 2015, com a campanha aberta pelo derrotado Aécio Neves contra os esforços de Joaquim Levy e Dilma Rousseff para controlar os passos da economia. A campanha se transformaria no impeachment e transformaria a situação vivida pelo país desde 2004.
    Outro ponto a ficar bem registrado é que o pressentido tumulto recessivo na economia global, originado do governo Trump, não poderá ser responsabilizado por coisa alguma no Brasil. Se vier, encontrará o país já em estado de coma --hoje mesmo à vista de quem quiser notá-la. Não é à toa que o turista Bolsonaro se entrega a cafonices e leviandades todos os dias, para desviar atenções. Nem que Paulo Guedes volte a propor a venda da Petrobras, fazer um dinheirão, usá-lo como se fossem os recursos adequados e deixar o país outra vez em coma quando o dinheirão acabar —ainda antes da eleição presidencial.
    São agora quatro anos de aumento da tragédia brasileira chamada pelo eufemismo de "desigualdade social ou econômica". A remuneração do trabalho caiu mais de 18%, em valores reais, para os que integram os 50% da miséria, da pobreza e do arremedo de classe média baixa. A derrocada não significou nada para Temer e Meirelles, em seu primeiro período, como indiferente é o segundo para Bolsonaro e Guedes. Porque, a tranquilizá-los e protegê-los, a renda do 1% mais rico subiu, no mesmo período, 9,5%. Levantamento imprudente da Fundação Getulio Vargas que confraterniza com a soma (parcial) de 13 milhões sem o emprego procurado.
    Nenhum desses dados e assuntos esteve próximo dos escolhidos por Bolsonaro em sua safra atual de dejetos mentais. A preferência foi pelas fezes, citadas inúmeras vezes por meros anseios de uma coprofilia que, aliás, lhe fica bem.
    Hospitais, universidades, bolsas de estudo, pesquisas científicas, setores importantes em geral sofrem mutilações letais em seus recursos orçamentários porque "o Brasil não tem mais dinheiro". Penúria que não impediu Bolsonaro de conceder R$ 3 bilhões, com a solidariedade de seus ministros civis e militares, no compra-e-vende para os deputados aprovarem a "reforma" arrochante da Previdência.

    Sem o SUS, é a barbárie


    Sem o SUS, é a barbárie

     

    Drauzio Varella

    O Brasil foi ousado ao levar assistência médica gratuita a toda a população


    “Sem o SUS, é a barbárie.” A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitaristas mais respeitados entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.
    Estou totalmente de acordo com ela, pela simples razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.
    Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrada nas santas casas de misericórdia e em algumas instituições religiosas.
    Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência em períodos eleitorais.
    Ilustração
    Líbero/Folhapress
    Então, 30 anos atrás, um grupo de visionários ligados à esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiros. Parecia divagação de sonhadores.
    Ao saber que se movimentavam nos corredores do Parlamento, para convencer deputados e senadores da viabilidade do projeto, achei que levaríamos décadas até dispor de recursos financeiros para a implantação de políticas públicas com tal alcance.
    Menosprezei a determinação, o compromisso com a justiça social e a capacidade de convencimento desses precursores. Em 1988, escrevemos na Constituição: “Saúde é direito do cidadão e dever do Estado”.
    Por incrível que pareça, poucos brasileiros sabem que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou levar assistência médica gratuita a toda a população.
    Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, da Noruega, da Alemanha, do Reino Unido, sem lembrar que são países pequenos, organizados, ricos, com tradição de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
    Sem menosprezá-los, garantir assistência médica a todos em lugares com essas características é brincadeira de criança perto do desafio de fazê-lo num país continental, com 210 milhões de habitantes,
    baixo nível educacional, pobreza, miséria e desigualdades regionais e sociais das dimensões das nossas.
    Para a maioria dos brasileiros, infelizmente, a imagem do SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.
    Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo. Nosso programa de distribuição de medicamentos contra a Aids revolucionou o tratamento da doença nos cinco continentes. Não percebem que o resgate chamado para socorrer o acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusões de sangue nos hospitais de luxo é assegurada por ele.
    Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes comunitários em equipes multiprofissionais que já atendem de casa em casa dois terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organização
    Mundial da Saúde como um dos mais importantes do mundo.
    Pouquíssimos têm consciência de que o SUS é, disparado, o maior e o mais democrático programa de distribuição de renda do país. Perto dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal chega a 10% disso.
    Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das epidemias de doenças infecciosas e parasitárias e já enfrentamos os agravos que ameaçam a sobrevivência dos serviços de saúde pública dos países mais ricos: envelhecimento populacional, obesidade, hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer,
    degenerações neurológicas.
    Ao SUS faltam recursos e gestão competente para investi-los de forma que não sejam desperdiçados, desviados pela corrupção ou para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuidade administrativa. Nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde.
    Apesar das dificuldades, estamos numa situação incomparável à de 30 anos atrás. Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele.
     
    Drauzio Varella
    Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

    terça-feira, 13 de agosto de 2019

    China tenta ensinar economia a Trump



    China tenta ensinar economia a Trump

    Chineses ainda não empregaram todos os instrumentos para compensar as ações de Trump

    Paul Krugman
  • Se você deseja compreender a guerra comercial que está se desenvolvendo com a China, a primeira coisa que precisa perceber é que coisa alguma do que Donald Trump vem fazendo faz sentido. Suas posições sobre comércio internacional são incoerentes. Suas demandas são incompreensíveis. E ele superestima imensamente sua capacidade de infligir danos à China, enquanto subestima a capacidade dos chineses em causar danos em represália.
    A segunda coisa que você precisa perceber é que a resposta da China até agora foi razoavelmente modesta e ponderada, ao menos levando em conta a situação. Os Estados Unidos implementaram ou anunciaram tarifas sobre virtualmente tudo que a China vende a nós, com alíquotas tarifárias médias vistas pela última vez há décadas.
    Os chineses, em contraste, ainda nem de longe empregaram todos os instrumentos de que dispõem para compensar as ações de Trump e prejudicar sua base política.

    Por que os chifneses não contra-atacaram com toda a força? Parece-me que eles ainda estão tentando dar uma aula de Economia a Trump. O que eles vêm dizendo por meio de suas ações é, na prática, que "você acha que pode nos intimidar. Mas não pode. Já nós, de nosso lado, podemos arruinar seus agricultores e causar o colapso de seu mercado de ações. Quer reconsiderar?"
    No entanto, não existe indicação de que essa mensagem esteja sendo compreendida. Em lugar disso, a cada vez que os chineses fazem uma pausa e dão a Trump a oportunidade de repensar, ele entende a manobra como confirmação do que está fazendo, e pressiona ainda mais forte.
    O que isso sugere, por sua vez, é que mais cedo ou mais tarde os disparos de advertência vão se transformar em uma guerra comercial e cambial aberta.
    Sobre as posições de Trump: sua incoerência fica exposta praticamente todos os dias, mas um de seus tuítes recentes serve como perfeita ilustração. Lembre-se de que Trump vem se queixando sem parar sobre a força do dólar, que segundo ele coloca o Estados Unidos em desvantagem competitiva.
    Na segunda-feira (5), ele ordenou que o Departamento do Tesouro declarasse que a China manipula as taxas de câmbio, o que era verdade sete ou oito anos atrás mas deixou de ser. E no entanto, apenas um dia depois ele escreveu triunfantemente que "imensas quantias de dinheiro da China e outras partes do mundo estão chegando aos Estados Unidos", o que ele declarou ser "uma coisa bonita de se ver".
    Uhn, o que acontece quando "imensas quantias em dinheiro" entram em seu país? Sua taxa de câmbio sobe, o que é exatamente aquilo de que Trump está se queixando. E se muito dinheiro estiver saindo da China, o yuan deveria estar despencando, e não registrando o declínio trivial (2%) que o Departamento do Tesouro condenou.
    Oh, bem, imagino que a aritmética seja uma trapaça perpetrada pelo Estado profundo.
     
    Ainda assim, mesmo que Trump não esteja fazendo sentido, será que a China mesmo assim cederá às suas demandas? A resposta resumida é "que demandas?" Trump parece irritado principalmente pelo superávit no comércio entre a China e os Estados Unidos, que têm múltiplas causas e na verdade não está sob o controle do governo chinês.
    Outras pessoas em seu governo parecem preocupadas com o avanço da China nos setores de alta tecnologia, que pode de fato ameaçar o domínio dos Estados Unidos. Mas a China é tanto uma superpotência econômica quanto um país relativamente pobre, comparada aos Estados Unidos; é imensamente irrealista imaginar que um país como esse possa ser forçado a moderar suas ambições tecnológicas por meio de intimidação.
    Os Estados Unidos são um grande mercado para os produtos chineses, é claro, e a China compra relativamente pouco em retorno, e assim o efeito adverso direto de uma guerra tarifária é maior sobre a China. Mas é importante ter um senso de escala.
    A China não é como o México, que envia 80% de suas exportações os Estados Unidos; a economia chinesa depende menos do comércio internacional do que as economias de países menores, e menos de um quinto de suas exportações se destinam aos Estados Unidos.
    Assim, embora as tarifas de Trump certamente prejudiquem os chineses, Pequim está bem posicionada para compensar seus efeitos. A China pode reforçar o consumo interno por meio de medidas de estímulo fiscal e monetário; pode reforçar suas exportações, ao mundo e aos Estados Unidos, permitindo que o yuan caia.
    Ao mesmo tempo, a China pode causar dor, se decidir agir. Pode comprar soja de outros países, prejudicando os agricultores dos Estados Unidos. Como vimos esta semana, até mesmo uma desvalorização essencialmente simbólica do yuan é capaz de causar queda nas ações dos Estados Unidos.
    E a capacidade dos Estados Unidos para reagir a essas ações é prejudicada por uma combinação de fatores técnicos e políticos. O Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, pode cortar os juros, mas não muito, porque eles já estão muito baixos. Podemos adotar um estímulo fiscal, mas, tendo forçado um corte de impostos favorável aos plutocratas em 2017, Trump teria de fazer concessões reais aos democratas para conseguir qualquer coisa mais - e é improvável que aceite.
    E quanto a uma resposta internacional coordenada? Isso é improvável, tanto porque não está claro o que Trump deseja da China quanto porque sua beligerância geral (para não mencionar seu racismo) deixou os Estados Unidos desprovidos de aliados que desejem combater ao seu lado nas disputas mundiais.
    Assim, Trump está em posição muito mais fraca do que imagina, e meu palpite é que a minidesvalorização cambial promovida pela China foi uma tentativa de educá-lo quanto a essa realidade. Mas duvido muito que ele tenha aprendido alguma coisa.
    O governo dele vem lentamente perdendo os integrantes que sabiam alguma coisa de economia, e as reportagens apontam que Trump nem ouve o bando de ignorantes que resta.
    Assim, o mais provável é que essa disputa comercial piore muito antes de melhorar.

    The New York Times, tradução de Paulo Migliacci
    Paul Krugman
    Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

    domingo, 11 de agosto de 2019

    Inspirações para Bolsonaro


    Inspirações para Bolsonaro

    por Janio de Freitas
    Criação de escolas militarizadas foi decisiva para infiltração do nazismo
    O governo Bolsonaro não tem a direcioná-lo uma doutrina, nem de arremedo, que lhe dê fisionomia como razão de ser e de propósito. O nível médio de ignorância entre os que o habitam não permitiria lidar com ideias, rasas que fossem, nem com noções de ordem cultural, simplistas embora.
    Ressentimento, interesses pessoais e de classe socioeconômica, racismo, preconceitos vários, décadas de orientação militar exterior, descaso pela comunidade planetária e seu ambiente e desprezo absoluto pelo outro induzem a alternância caótica de suas práticas. A similaridade delas com outras histórias ou atuais, no entanto, proporciona ao governo Bolsonaro a fisionomia que lhe falta em doutrina.
    O governo providencia, por exemplo, a criação de 108 escolas militarizadas, para início de ambicioso programa. O plano não é original, nem o era nas primeiras referências ainda na campanha eleitoral. Foi uma criação decisiva para a infiltração, ao longo dos anos 1930, do nazismo e do culto ao ditador na vida da Alemanha. O voluntariado de multidões jovens para a guerra simultânea do nazismo a dez países europeus, em 1939-40, foi obra do ensino militarizado.
    A hostilidade de Bolsonaro à cultura artística oficializou-se já na entrega do ministério próprio a um conservador radical e sem contato com o ramo.
    A anticultura mostrou-se toda na identificação do cinema nacional ao que Bolsonaro, seu ministro e seus pastores imaginam do filme “Bruna Surfistinha”, nem visto pelo primeiro. Esse combate à cultura artística é usual nos governos autoritários, e se volta em especial contra percepções sexuais quando o poder é militarizado ou de submissão religiosa. O combate ao que foi chamado de “arte degenerada”, na Alemanha hitlerista, também não começou pela censura explícita. Usou por bom tempo o arrocho financeiro e outras dificuldades, até dominar toda a arte. É o que começa aqui.
    As verbas federais destinadas aos estados estão submetidas por Bolsonaro a novo critério: “os do Nordeste não vão ter nada”. São de oposição a Bolsonaro.
    O critério depois abriu uma brecha, porém a depender de uma exigência: “Se eles quiserem receber (…), eles vão ter que falar que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro”. “Eles” são os governadores, as vítimas são as populações. A condição punitiva e personalista, para o direito a verbas públicas, contraria a Constituição. E foi o primeiro recurso administrativo contra o oposicionismo regional na Alemanha e na Itália fascista, assim como é comum nos poderes que buscam o autoritarismo.
    Os ataques de retaliação à imprensa, a deportação sumária e sem tempo para defesa, a desmontagem da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos são, todos, repetição do primeiro estágio de ascensão ao poder ditatorial por nazistas e fascistas.
    A investida contra os índios, para a tomada exploratória de suas terras, tem semelhança com o extermínio dos ciganos dados como inúteis e viciosos pelos nazistas. Ensaio de extermínio, já anunciada por Bolsonaro as mortes de gente “como baratas”, por balas de impunidade assegurada. As similaridades vão longe, à disposição dos atentos. Mas é intransferível o registro de mais uma.
    A repetição por Bolsonaro, sob a dignidade da Presidência da República, da qualificação de “herói nacional” para um torturador e responsável por pelo menos 45 mortos e desaparecidos sob sua guarda, é um desacato à Constituição. No mínimo. O coronel Carlos Brilhante Ustra foi condenado pelo que o texto constitucional define como “crimes imprescritíveis”. A transgressão de Bolsonaro, dirigida também à Presidência, é, por si só, suficiente para tornar imoral a sua continuidade no cargo. No mínimo.

    A UM CLIQUE

    Antonio Cândido, sobre os ciclos de conferências temáticas organizados por Adauto Novaes: “Um dos feitos mais importantes da atividade cultural brasileira do nosso tempo”. Mais 300 desses ensaios de pensamento e política se encaminham para juntar-se a 300 outros e 24 filmes já disponíveis em artepensamento.com.br. No total, serão mais de 800 reproduções, em parceria com o Instituto Moreira Salles, dos ensaios de autores brasileiros e estrangeiros já reunidos em 39 tomos. E, agora, uma biblioteca (ótima) na internet.
    *Publicado na Folha de S.Paulo

    domingo, 4 de agosto de 2019

    O esplendor do lucro do Itaú face a 12 milhões de desempregados


    O esplendor do lucro do Itaú face a 12 milhões de desempregados

    J. Carlos de Assis



    O banqueiro Cândido Bracher, presidente do Itaú, celebrou o lucro recorde trimestral do banco festejando a miséria de 12 milhões de desempregados no país e de suas famílias. Ele disse que o fantástico resultado de 6,8 bilhões de reais no trimestre finalizado em junho se deve ao alto desemprego, escreve o economista J. Carlos de Assis

    O banqueiro Cândido Bracher, presidente do Itaú, celebrou o lucro recorde trimestral do banco festejando a miséria de 12 milhões de desempregados no país e de suas famílias. Ele disse que o  fantástico resultado de 6,8 bilhões de reais no trimestre finalizado em junho se deve ao alto desemprego. Ou, literalmente: “Quando tem fator de produção sobrando tanto, significa que podemos crescer sem pressões inflacionárias. Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira.”
    Não há surpresa nesse deboche. A classe dominante brasileira, e notadamente os banqueiros, já não precisam esconder sua verdadeira natureza. Os ricos estão tranqüilos quanto ao controle social exercido a seu favor pelas elites políticas e militares. Podem sugar o sangue da classe trabalhadora à vontade, pois, julgam eles, não haverá reação. Para isso houve a contribuição decisiva de Temer, com a retirada do imposto sindical, e de Bolsonaro, com o esvaziamento da própria contribuição voluntária dos trabalhadores para suas entidades.
    Bracher é um marxista, como o mordomo que fazia prosa sem saber. Examinando em sua época a evolução do capital, Marx definiu o conceito de “exército industrial de reserva”. Segundo ele, nas crises de produção, o desemprego ampliado atuava no sentido de baixar os salários em razão da competição dos trabalhadores pelo emprego em queda. Um banqueiro, secretário de Tesouro de Hoover, Andrew Mellon, na Grande Depressão nos EUA, pregava que o desemprego era positivo porque forçava as pessoas a “purgar a podridão” do sistema.
    Nos anos 70, o economista William Phillips  inventou uma relação entre inflação e desemprego a que se deu o nome de “curva de Phillips”. Segundo ele, quanto menor o desemprego maior é a inflação. Acontece que os dados empíricos nos quais Phillips se baseou não batiam muito bem com a teoria. Em suma, era um charlatão. Entretanto, a curva teve grande popularidade porque a academia, racionalizando os interesses dos ricos, achou muito interessante recomendar políticas de desemprego para controlar a inflação (ajustes fiscais).
    São doutrinadores como Mellon e Phillips que devem inspirar o banqueiro Bracher. Certamente não é Marx. O “exército industrial de reserva”, para Marx, é uma das contradições do capitalismo. Salário é custo, mas é também demanda. Se você força a redução dos salários acabará reduzindo a demanda e o estímulo para o investimento. Isso repetido várias vezes, em crises cíclicas, acabaria levando a revoltas sociais sucessivas que acabariam no socialismo. Bem, isso é um pouco romântico. Pois a história evoluiu de forma diferente.
    Países europeus que não experimentaram  o azar de ter canalhas retrógrados como o presidente do Itaú entre suas classes dominantes, e gente desprezível como Temer e Bolsonaro como seus mais altos dirigentes políticos, perceberam que até certo ponto as crises capitalistas poderiam ser domadas, e o capitalismo, civilizado. Por diferentes processos políticos criaram a social democracia, que é uma espécie de controle social pactuado. Passaram décadas sem greves. E os trabalhadores foram tratados como gente, e não escravos.
    A despeito de crises graves, como a de 2008, o capitalismo norte-americano soube se safar razoavelmente do desemprego. Só Obama enterrou 7,5 trilhões de dólares na economia, incentivando a demanda, e reduzindo a mais de metade a taxa de desemprego. Trump está indo pelo mesmo caminho em sua doutrina de buy America. Ou seja, economias de alto padrão civilizatório tem como prioridade máxima a promoção do emprego. Isso satisfaz ricos e pobres. Não, naturalmente, ricos burros, como a maioria dos nossos banqueiros e industriais.
    Em outro tempo, as palavras de Bracher se transformariam em faixas para radicalizar a luta de classes. Hoje, pelo menos no curto prazo, não é provável que isso aconteça. Entretanto, o processo histórico é inexorável. O que trabalhadores europeus e norte-americanos levaram um século para conquistar, ou seja, a relativa domesticação do capital, acabará por acontecer em tempo concentrado pela velocidade das comunicações. Não sei se verei isso  em minha vida. Apenas, no  meu modesto canto, continuarei lutando para que aconteça.

    J. Carlos de Assis

    Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.

    sábado, 3 de agosto de 2019

    Demissão no Inpe institui bullying presidencial como política científica


    Demissão no Inpe institui bullying presidencial como política científica

    Que os próximos rounds sejam enfrentados com a mesma altivez com que Ricardo Galvão, em nome da verdade, encarou o presidente


    Salvador Nogueira 
     
    São Paulo
    É assustador quando o bullying vira política de estado. Não há outra maneira de definir a decisão do presidente de exonerar o diretor do Inpe, Ricardo Galvão. Mas fica também a lição que se aprende na escola: não podemos nos deixar intimidar pelos valentões.
    Nem percamos tempo fingindo que foi o ministro Marcos Pontes quem tomou essa decisão, porque o único papel dele nesse episódio, lamentavelmente, foi de capacho, subserviente aos desígnios farsescos que reinam no andar de cima.
    A estratégia, por sua vez, já se tornou velha conhecida: aquele desfile de asneiras jogadas ao vento, quanto mais ofensivas, melhor, a fim de obter uma de duas reações: ou o ofendido se alinha, ou pede para sair.
    Galvão não foi nem o primeiro, nem o segundo, nesses longos sete meses de gestão, a ter a cabeça afogada num balde para dizer que era mentira o que é verdade. A metáfora é pesada? Tudo bem, sabemos que o presidente curte.
    A diferença dessa para outras frituras foi a altivez e a convicção do friturado. O diretor do Inpe perdeu exatamente zero segundos se perguntando se deveria aguentar calado às ofensas ou responder à altura o valentão da escola, alçado ao cargo mais importante do país, de onde se julga, de forma ilusória, supremo.
    Galvão optou pelo caminho da ciência, pautado pelas boas práticas que, ao longo dos últimos dois séculos, trouxeram uma sequência exponencial de progressos para a civilização. Fez a defesa técnica e moral de seu trabalho e de sua instituição, e chamou a atitude do presidente por termos que nenhum dicionário reprovaria: pusilânime e covarde.
    Essa foi a novidade. Alguém topou enfrentar o valentão da escola.

    O desfecho era mais que previsível. Num sinal de que ainda nos resta alguma civilidade (e a luta é diária para não nos desapegarmos dela), terminou apenas exonerado. Noutros tempos, poderia ter sido pior.
    Fica o exemplo a ser seguido, não só pelos servidores do Inpe, mas por todos os pesquisadores do Brasil. É um pedido: não abandonem a verdade dos fatos em nome de conveniências, quaisquer que sejam.
    Fingir que os dados não existem, ou que estão errados, ou que são fabricados, não resolverá o problema do desmatamento, ou das mudanças climáticas, ou do desemprego, da fome, de massacres indígenas ou de qualquer outra chaga socioambiental. O único caminho para a criação de políticas públicas eficientes é o que passa pelo diagnóstico correto dos problemas. E, numa democracia de verdade, isso necessariamente se faz diante dos olhos da sociedade.
    Por isso, é dever dos cientistas dar publicidade e defender as descobertas que fazem, não só porque é para isso que arcamos com essas despesas (não se iluda, não são os governantes que pagam pelo monitoramento amazônico; somos nós), mas sobretudo porque faz parte de seu rol de responsabilidades realizar seu máximo esforço para que a ciência que produzem seja usada em favor da sociedade.
    Este foi apenas mais um round nessa luta exaustiva contra o obscurantismo (que ocupou o Planalto, mas infelizmente vai muito além dele). Haverá outros. Que os próximos sejam enfrentados com a mesma altivez com que Galvão, em nome da verdade, encarou o bullying do presidente.

    Bússola moral

    Bússola moral


    A postura de Bolsonaro na Presidência amplia a tensão social


    A compaixão é um sentimento de profundo pesar em relação ao sofrimento alheio e a disposição para ajudá-lo. Em alguma medida, a compaixão é uma virtude que nos distingue dos demais seres vivos.

    Ainda que nós sejamos capazes de atos de profunda crueldade e que impõem enormes sofrimentos aos nossos semelhantes, também desenvolvemos ao longo da história a capacidade de julgar inaceitáveis muitos desses atos e de combater e proibir a sua prática —e, com isso, criamos paz e prosperidade.

    Basta pensar na escravidão ou na tortura, que no passado recente eram aceitas como parte essencial do funcionamento do sistema econômico e do sistema penal e hoje são vistas como práticas repugnantes e abomináveis, compondo o elenco dos chamados crimes contra a humanidade.

    Essa condição de adotarmos regras que limitam nossas próprias condutas é o que nos transforma em humanos. Jamais veremos uma hiena moralmente consternada por ter matado uma pobre gazela ou um frondoso flamboyant constrangido por ter privado de luz e levado à morte uma margarida no chão da floresta. Não há nada de errado nisso, pois animais e plantas vivem de acordo com a regras da natureza. Já as pessoas são responsáveis pelos seus próprios atos.

    Digo isso pois a falta de compaixão demonstrada pelo presidente da República ao infligir sofrimento, sem qualquer justificativa ou posterior arrependimento, a uma pessoa que teve o pai executado pelo Estado brasileiro —provavelmente após ser torturado nos porões do regime militar— gerou enorme perplexidade, inclusive entre muitos dos seus apoiadores.

    Na mesma direção causou embaraço a indiferença demonstrada em relação ao massacre de 58 presos, sob a custódia do Estado, que tem a obrigação de assegurar-lhes a integridade física e moral, em Altamira, no Pará.

    Essas posturas se tornam ainda mais graves quando contrastadas à indignação em relação ao que o presidente chamou de "terror" imposto pela Constituição Federal aos produtores rurais, que correm o risco de verem expropriadas suas terras, se nelas comprovada a prática de trabalho análogo à escravidão.

    É o mesmo tipo de solidariedade que já havia demonstrado em relação aos que ambicionam portar armas, derrubar as florestas, minerar em terras indígenas, utilizar agrotóxicos, descumprir as regras básicas de segurança no transito ou no trabalho.

    A postura do presidente não deveria ter causado grande espanto, pois ele sempre deixou clara a direção para onde apontava sua bússola moral. Imaginava-se, no entanto, que no exercício da Presidência tivesse um pouco mais de comedimento e moderação, pois, além de ter jurado respeitar a Constituição, que proíbe a escravidão e a tortura, entre tantas outras coisas, há uma certa liturgia e decoro inerentes ao cargo que não deveriam ser desprezadas. O padrão, entretanto, parece ter recrudescido.

    Essa postura presidencial, além de ampliar a tensão social e contribuir para que setores da sociedade e do Estado se sintam legitimados e respaldados a perseguir seus interesses à margem do direito e em detrimento, sobretudo, dos direitos de grupos vulneráveis e do meio ambiente, tende também a ser muito contraproducente da perspectiva da inserção internacional de nossa economia e da sua própria sustentabilidade, como deixa claro o editorial da revista The Economist desta semana.

    Ao que parece, a desorientada bússola moral do governo irá custar muito caro a todos os brasileiros.


    Oscar Vilhena Vieira
    Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

    Fale mais, Bolsonaro

    Fale mais, Bolsonaro

    O peixe e o falastrão quase sempre morrem pela boca


  • Bolsonaro disse que não vai mudar seu jeito. Ele está certo. Tem que continuar desse jeitinho, tão "espontâneo", sem filtro, que seus eleitores admiram. Apoio total para que diga tudo o que pensa. Fale mais, presidente. Fale tudo o que vossa excelência, ops, pensa. Faça piada com pinto de japonês, chame nordestino de paraíba, diga que não tem fome no Brasil, minimize a questão do trabalho infantil, ameace jornalista de pegar cana.

    Diga que não houve ditadura, que jornalista torturada não foi torturada. Insinue que sabe o que aconteceu com desaparecido político. Chame de balela documentos oficiais sobre os mortos do regime. Diga que o nazismo é de esquerda. E que o Exército não matou ninguém, afinal, o que são 80 tiros?
    Diga que pode perdoar o Holocausto, que vai fechar a Ancine, que não pode filme com prostituta ou propaganda com transexual. Proíba as palavras "lacrou" e "morri" em peças do governo. Diga mais, mito, diga que vai privilegiar o filhão com uma embaixada e que vai mandar a família passear com helicóptero da FAB.
    Fale para quem quiser ouvir que o Brasil não pode ser país de turismo gay, mas quem quiser sexo com mulher, fique à vontade. Fale mais, tiozão do pavê. Diga que só os veganos se preocupam com o meio ambiente. Defenda trabalho forçado para presidiários. É proibido, mas e daí?
    Fale mais, sincerão. Diga que o IBGE não sabe nada sobre desemprego, que a Fiocruz não tem dados confiáveis sobre drogas, que o Inpe mente sobre o desmatamento, que o Brasil é exemplo para o mundo em preservação ambiental, o país que menos usa agrotóxico.
    Fale mais, todos os dias, sem falhar nenhum, para que seja de conhecimento geral, para que não nos esqueçamos nem por um único dia o autocrata, ignóbil, sem empatia, o ser obtuso que desgoverna este país. Fale mais, que tá pouco. Fale mais porque o peixe e o falastrão quase sempre morrem pela boca.

    Mariliz Pereira Jorge
    Jornalista e roteirista de TV.

    Militares

    Militares

    Forças Armadas ainda não assimilaram plenamente o conceito de soberania popular


    Quem quer que se interesse por política deveria ler o livro “Forças Armadas e Política no Brasil" (2005), de José Murilo de Carvalho, relançado em 2019 com textos inéditos.
    O autor nota que cinco das nossas sete Constituições, inclusive a atual, atribuem papel político aos militares, como se a República precisasse de uma bengala e a democracia não pudesse resolver os problemas nacionais nos seus próprios termos.
    Um novo capítulo relembra postagem do general Villas Bôas às vésperas do julgamento pelo STF de pedido de habeas corpus a favor de Lula. Embora a mensagem do general falasse de respeito à Constituição, na realidade a agredia, pois pressionava um poder da República a contrariá-la.
    O livro recupera a participação política dos militares desde a proclamação da República (1889), passando pela Revolução de 1930, e o poder desestabilizador do tenentismo nesses dois episódios.
    Retoma, também, o papel que os militares desempenharam nos golpes de Estado de 1937 e 1964 que interromperam o calendário eleitoral, invocando o fantasma do comunismo e impondo a volta ao regime autoritário.

    Depois da leitura, impossível não conjecturar sobre as semelhanças e diferenças com o momento atual.
    Em relação às semelhanças, há dois paralelos inevitáveis.
    Em primeiro lugar, assim como Getúlio (quando os militares lhe retiraram o apoio) e Jango, Lula parece ter sido vítima de um sentimento antipopular refratário à promoção da incorporação das massas via participação no mercado e na política.
    Soberania popular é um conceito que não foi plenamente assimilado pelos militares.
    Em segundo, parece que tensões corporativas, como as que precederam 1889 e 1930, originando movimentos ostensivos das briosas Forças Armadas, parecem ter sido reacendidos após a instalação da Comissão da Verdade.
    Quanto às diferenças, vejo duas importantes.
    Em primeiro lugar, a instrumentalização do Poder Judiciário com fins político-partidários. As reportagens publicadas por esta Folha em parceria com The Intercept não deixam dúvidas sobre a atuação ilegal e parcial de Moro e Dallagnol (Batman e Robin, na opinião do general Augusto Heleno) na condução da Lava Jato.
    Em segundo lugar, a deturpação do conceito de soberania nacional, reduzida à ideia de defesa do território. Os militares parecem totalmente entregues a agenda ultraliberal de Guedes, que anunciou a pretensão de vender todas as empresas estatais brasileiras e de abrir unilateralmente o nosso mercado.
    Pelo jeito, restará ao povo deste novo protetorado americano vender bijuterias de nióbio em Angra dos Reis.

    Fernando Haddad
    Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

    Jair Berlusconi


    Jair Berlusconi

    Sempre cabe mais uma aberração na galeria de monstros do lado obscuro da força

    Mario Sergio Conti

  • O supremo mandatário foi pego falando que a chanceler Angela Merkel era uma “bunduda incomível”. Disse que ele próprio vivia “num país de merda”. Revelou que concordava “com tudo que o presidente americano pensava”.
    Ninguém se espantaria se as três eructações fossem de Jair Bolsonaro. Mas quem as proferiu foi Silvio Berlusconi, o premiê que mais tempo ficou no poder na Itália desde o fim da Segunda Guerra —17 anos.
    Pouco depois da eleição de Trump, o filósofo francês Alain Badiou disse que o primeiro ministro italiano, além de predecessor do americano, fora um político sob medida para os novos tempos, tempos de triunfo incontrastável do capitalismo sem amarras e desbussolado.
    Tanto Berlusconi como Trump, disse ele, têm em comum “certa relação patológica com o sexo feminino, e a possibilidade de dizer e fazer em público algumas coisas que são inaceitáveis para a maior parte da humanidade de hoje”. Bolsonaro cabe na definição.

    O italiano teve e o americano tem —assim como Duterte, Erdogan, Orbán, Putin “et caterva”— um pé dentro e outro fora do sistema. As aberrações ocupam o centro do poder político, ao qual chegaram por meio de eleições, mas dizem coisas tão escabrosas que parecem estar fora dele.
    Como a democracia só lhes interessa se vencem, solapam suas instituições e enxovalham quem atrapalhe sua perpetuação no poder. Não se importam em ser tidos por bufões e beócios. Repetem a lição de Berlusconi: a política é uma peça burlesca na qual o chefe deve causar.
    Badiou recitou um verso de Racine para delinear o pano de fundo do triunfo de Trump: “Foi durante o horror de uma noite profunda”. Isso porque, no seu entender, Berlusconi teve um precursor na aurora da espetacularização da política: Mussolini, o decano do lado obscuro da força.
    Ao descrever a noite profunda na qual bestas feras da extrema direita empalmam o poder, o filósofo chamou os regimes políticos nascentes de “novo fascismo”. Além de vaga, a caracterização força a barra.
    Isso porque, no século passado, o fascismo italiano apelou para a violência —legal e ilegal— e destruiu partidos operários, sindicatos e associações democráticas. Mobilizou o lumpemproletariado e teve apoio da grande burguesia para criar um Estado corporativo.
    Isso não ocorreu com Berlusconi nem acontece com Bolsonaro. Não se esqueça, porém, o que disse outro italiano, Primo Levi: “Cada época tem o seu próprio fascismo”.
    Como a palavra-chave que define o fascismo é “violência”, a crise brasileira corre o risco, sim, de extravasar da destrambelhada oratória presidencial para ações autoritárias de governo.
    Para tanto, Bolsonaro precisaria transformar em força material o que fala: o incentivo a que seus seguidores se armem; o louvor de milícias paraestatais; o incitamento ao assassinato de “bandidos” (que ele define quem são); o elogio da tortura; a ameaça em prender ou banir dissidentes.
    Há distância entre retórica e realidade. O sultão Berlusconi contratava piranhas para suas festas bunga-bunga, por exemplo. Já Bolsonaro ficou nas imagens e no palavrório: alardeou um vídeo obsceno, jactou-se de não usar “aditivos”, admitiu que gosta de abraçar marmanjos e se disse apaixonado por Trump.
    No plano político, a distância entre palavras e atos vem diminuindo. Os surtos verbais do presidente são um índice. Eles servem para que atice seus cupinchas. Nas redes sociais, a corriola radicaliza o que o chefe vituperou. E este último, se achando, parte para a ignorância. O círculo vicioso deprava o discurso público.
    Na Itália, Berlusconi chegou ao poder devido à ruína de liberais e social-democratas. Aqui, Bolsonaro se beneficiou do fracasso de tucanos e petistas.
    Lá, a cultura antifascista do pós-Guerra deu lugar ao salve-se quem puder do egoísmo berlusconiano. Cá, o orgulho antiditatorial se esvaneceu na proteção de torturadores fardados e na farra do boi da indenização das vítimas.
    Berlusconi e Bolsonaro foram adubados na estufa da Mãos Limpas e da Lava Jato —seja pelas artimanhas de procuradores cúpidos, seja pela manipulação de juízes interesseiros.
    O pano de fundo foi, é, a crise econômica. Ela fez com que o mercado de trabalho se contraísse, esgarçando os laços de solidariedade social. A desesperança e a apatia política derivam daí.
    Há milhões de brasileiros vagando pelas ruas. Estão amargurados, ressentidos, sem perspectiva. Uma hora, eles se mexerão. O que fizerem definirá o destino do Brasil de Bolsonaro.

    Mario Sergio Conti
    Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

    sexta-feira, 2 de agosto de 2019

    Doente de Brasil Como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade


    Doente de Brasil

    Como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade 

    Eliane Brum     

     02 ago 2019 - 

    Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já que o corpo é um só.
    É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.

    O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura.
    Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.
    Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.
    Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.
    Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.
    Não há normalidade nem jogo democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da mentira
    Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam acontecer com vários colegas.
    O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.
    Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.
    “Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções.
    Cresce nos consultórios os casos de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social
    Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. “O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”
    O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que ocorriam no outro lado do mundo.
    O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de dividir a casa com alguém.
    A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde.
    O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante
    Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.
    “Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista, ela vai ser processada – e não virar presidente do país. O que vivemos agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma realidade que não corresponde aos fatos.”
    A documentação das experiências de autoritarismo em diferentes épocas e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das vítimas, mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu num campo de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no Doi-Codi, em São Paulo, durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é imediato. O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem demonstrado é o quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do cotidiano, aquela que se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na paralisia que vira um modo de ser, nas covardias que deixamos de questionar.
    O cotidiano de exceção tem se infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e ausência no Brasil
    Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de conformação acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora me conta que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a palavra sexualidade.... para falar de sexualidade. Uma diretora me diz que vestiu os corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de teatro. A professora de uma das mais importantes universidades públicas do país me relata que muitos colegas já deixaram de analisar determinados temas em salas de aula por medo do “poder de polícia” dos alunos, que têm gravado as aulas e se comportado de forma ainda mais violenta que a polícia formal. Um curador de eventos preferiu não fazer o evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar uma pensadora que certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca saberemos o que poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não sofrer o risco de ser impedido.
    Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem, simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o autoritarismo se infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo se infiltra. E é também assim que se adoece uma população por aquilo que ela já tem medo de fazer, porque antecipa o gesto do opressor e se cala antes de ser calada. E em breve talvez tenha medo também de sussurrar dentro de casa, num mundo em que os aparelhos tecnológicos podem ser usados para a vigilância. Chega o dia em que o próprio pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o autoritarismo vence antes mesmo de vencer.
    Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a colonização de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias, com suas violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente. Faça o teste: quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro, sem citar uma bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas sobre isso poucos falam.
    Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalíptica do mundo
    Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do mundo, é preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo estrangeiro me conta que, desde que Donald Trump assumiu, a primeira coisa que ele faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade que o presidente americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta diretamente a vida dele. E afeta.
    Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não é possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento fora do contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo primeiro-ministro (referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no Brasil, é que além de toda a crise global, elegemos um cretino para presidente”, diz o psicanalista. “O que assusta é que não há freios para impedi-lo. E, assim, ele segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro é covarde, ele não engrossa com os maiores que ele.”
    Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald Trump chega a ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, as instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil, não chega a ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para fechar o STF, como sugeriu o futuro possível embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto zerotrês. Mas a precariedade – e com frequência a omissão – das instituições – quando não conivência – são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma ditadura total, porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a ditadura pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu como autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’ digo é o que é.”
    “A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu”
    Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, a autoverdade é a amputação da palavra no sentido pleno. “Este é um grande disparador do sofrimento das pessoas, ao constatarem que estão fora no nível mais importante. Não é que você está fora porque não tem uma casa ou um carro, hoje você está fora das possibilidades de leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento.
    A autoverdade, como escrevi neste espaço, determinou a eleição de Bolsonaro. E seguiu moldando sua forma de governar pela guerra, o que implica a destruição da palavra. Assim, desde o início do governo, Bolsonaro tem chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não gosta do resultado das pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que o número de desempregados tinha aumentado no seu governo.
    Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi. Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso porque apenas no mês de julho de 2019 foi destruída uma área de floresta maior do que a cidade de São Paulo, e o índice de desmatamento foi três vezes maiores do que em julho do ano passado. E Bolsonaro decidiu ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o meio ambiente.
    Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade.
    O que vivemos não é mal-estar, mas horror
    “Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do horror.”
    Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura combate a guerra.
    Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum.
    É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.

    Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook:Facebook: @brumelianebrum