sábado, 3 de agosto de 2019

Bússola moral

Bússola moral


A postura de Bolsonaro na Presidência amplia a tensão social


A compaixão é um sentimento de profundo pesar em relação ao sofrimento alheio e a disposição para ajudá-lo. Em alguma medida, a compaixão é uma virtude que nos distingue dos demais seres vivos.

Ainda que nós sejamos capazes de atos de profunda crueldade e que impõem enormes sofrimentos aos nossos semelhantes, também desenvolvemos ao longo da história a capacidade de julgar inaceitáveis muitos desses atos e de combater e proibir a sua prática —e, com isso, criamos paz e prosperidade.

Basta pensar na escravidão ou na tortura, que no passado recente eram aceitas como parte essencial do funcionamento do sistema econômico e do sistema penal e hoje são vistas como práticas repugnantes e abomináveis, compondo o elenco dos chamados crimes contra a humanidade.

Essa condição de adotarmos regras que limitam nossas próprias condutas é o que nos transforma em humanos. Jamais veremos uma hiena moralmente consternada por ter matado uma pobre gazela ou um frondoso flamboyant constrangido por ter privado de luz e levado à morte uma margarida no chão da floresta. Não há nada de errado nisso, pois animais e plantas vivem de acordo com a regras da natureza. Já as pessoas são responsáveis pelos seus próprios atos.

Digo isso pois a falta de compaixão demonstrada pelo presidente da República ao infligir sofrimento, sem qualquer justificativa ou posterior arrependimento, a uma pessoa que teve o pai executado pelo Estado brasileiro —provavelmente após ser torturado nos porões do regime militar— gerou enorme perplexidade, inclusive entre muitos dos seus apoiadores.

Na mesma direção causou embaraço a indiferença demonstrada em relação ao massacre de 58 presos, sob a custódia do Estado, que tem a obrigação de assegurar-lhes a integridade física e moral, em Altamira, no Pará.

Essas posturas se tornam ainda mais graves quando contrastadas à indignação em relação ao que o presidente chamou de "terror" imposto pela Constituição Federal aos produtores rurais, que correm o risco de verem expropriadas suas terras, se nelas comprovada a prática de trabalho análogo à escravidão.

É o mesmo tipo de solidariedade que já havia demonstrado em relação aos que ambicionam portar armas, derrubar as florestas, minerar em terras indígenas, utilizar agrotóxicos, descumprir as regras básicas de segurança no transito ou no trabalho.

A postura do presidente não deveria ter causado grande espanto, pois ele sempre deixou clara a direção para onde apontava sua bússola moral. Imaginava-se, no entanto, que no exercício da Presidência tivesse um pouco mais de comedimento e moderação, pois, além de ter jurado respeitar a Constituição, que proíbe a escravidão e a tortura, entre tantas outras coisas, há uma certa liturgia e decoro inerentes ao cargo que não deveriam ser desprezadas. O padrão, entretanto, parece ter recrudescido.

Essa postura presidencial, além de ampliar a tensão social e contribuir para que setores da sociedade e do Estado se sintam legitimados e respaldados a perseguir seus interesses à margem do direito e em detrimento, sobretudo, dos direitos de grupos vulneráveis e do meio ambiente, tende também a ser muito contraproducente da perspectiva da inserção internacional de nossa economia e da sua própria sustentabilidade, como deixa claro o editorial da revista The Economist desta semana.

Ao que parece, a desorientada bússola moral do governo irá custar muito caro a todos os brasileiros.


Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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