Pauta de costumes
Ativismo é coisa de ecochato, de bicha louca, de feminazi, de
Black Power
Antonio Prata
Quando ouço alguém dizer que é liberal na
economia e conservador nos costumes , imagino um investidor do mercado
financeiro cruzando a Faria Lima num cabriolé. Se for um bom investidor,
porém, certamente
desconsideraríamos a charrete como uma pequena excentricidade: economia é importante, costume, não —eis o que costumamos pensar.
Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?!
Acredito que mais da metade dos brasileiros elegeu um
presidente com posições tão escancaradamente abjetas, em parte, por
achar que os horrores ditos por ele durante três décadas estavam
restritos ao tupperwarezinho dos “costumes”. Se ele vai fazer as
reformas, qual o problema que não goste de gay? Se vai ter peru no
próximo Natal, e daí ele
dizer que não estupraria uma mulher por ela ser feia? Se asfaltarem a nossa rua, que que tem ele dar uma pescada em reserva ecológica? Ah, fala sério! Vamos tratar do que importa!
Vamos tratar do que importa. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança, 4,4 milhões de mulheres foram agredidas em 2016. A cada hora, foram 503.
Isso dá algumas dezenas de mulheres tomando porrada de seus maridos e namorados durante o tempo que você demora pra ler essa crônica. Mas machismo e feminismo, claro, são assuntos irrelevantes, são “pauta de costumes”.
Apanhem em silêncio, por favor, mulheres, pois não estou conseguindo ouvir o debate sobre a CPMF.
Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente.
Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras —e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude. Coisa importada dos Estados Unidos.
Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor!
Pensando assim, votamos neste que, uma vez eleito, prometeu “acabar com todos os ativismos”. E seguimos acreditando que ele não estava falando nada de importante. Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma
da Previdência.
Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal.
Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas.
Pensando bem, nosso falso liberal não anda de cabriolé, mas de liteira. Os olhos em Chicago, os pés em Daomé, trazendo as ideias mais modernas para eternizar o nosso atraso. Não chega a ser uma grande novidade. Este é, há meio milênio, um dos nossos mais arraigados costumes.
desconsideraríamos a charrete como uma pequena excentricidade: economia é importante, costume, não —eis o que costumamos pensar.
Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?!
Isso dá algumas dezenas de mulheres tomando porrada de seus maridos e namorados durante o tempo que você demora pra ler essa crônica. Mas machismo e feminismo, claro, são assuntos irrelevantes, são “pauta de costumes”.
Apanhem em silêncio, por favor, mulheres, pois não estou conseguindo ouvir o debate sobre a CPMF.
Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente.
Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras —e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude. Coisa importada dos Estados Unidos.
Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor!
Pensando assim, votamos neste que, uma vez eleito, prometeu “acabar com todos os ativismos”. E seguimos acreditando que ele não estava falando nada de importante. Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma
da Previdência.
Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal.
Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas.
Pensando bem, nosso falso liberal não anda de cabriolé, mas de liteira. Os olhos em Chicago, os pés em Daomé, trazendo as ideias mais modernas para eternizar o nosso atraso. Não chega a ser uma grande novidade. Este é, há meio milênio, um dos nossos mais arraigados costumes.
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