sábado, 30 de novembro de 2019

A TERRA TREME

mário sérgio conti
A TERRA TREME
É tanta revolta que, para não esquecer nenhuma, é bom botá-las em ordem alfabética. Em um mês, houve rebeliões na Argélia, Catalunha, Chile, Colômbia, Equador, Haiti, Hong Kong, Irã, Iraque e Líbano. Milhões e milhões de pessoas querem mudar de vida. Agora, e não depois.

Diferentes entre si, os motins têm traços insurrecionais pela duração (desde fevereiro, Argel fecha para protestos às sextas-feiras), pela abrangência (em Santiago, mais de um milhão de pessoas participaram de uma passeata) e pela coragem (centenas de mortos em Teerã e Bagdá).

Na regra, os levantes começaram com demandas particulares que logo se alastraram. Secundaristas pularam catracas do metrô para se insurgir contra o aumento das passagens —e em dez dias uma greve geral parou o Chile.

O governo libanês quis impor uma taxa para mensagens de WhatsApp —e 12 dias depois o primeiro ministro se demitiu. O reajuste da gasolina desencadeou quebra-quebras em Quito. A corrupção alimentou convulsões em Bagdá e Teerã.

As reivindicações foram atendidas e as praças não se aquietaram. A China voltou atrás na intenção de querer que o Partido Comunista julgasse os dissidentes de Hong Kong. Mas, como quando da renúncia do presidente argelino, a contestação só fez aumentar.
Com o quebra-quebra,  governo chileno teve que convocar plebiscito sobre constituinte. No Líbano, a palavra de ordem passou a ser a unidade nacional, acima das divisões religiosas. O separatismo ganhou força na Catalunha e em Hong Kong.

É preciso aguardar os desdobramentos para avaliar a insurgência. Dá para dizer, contudo, que ela lembra as revoluções europeias de 1848 e tem algo da explosão do stalinismo, em 1989-1991. Parece um segundo momento da Primavera Árabe de 2011, só que agora em vários cantos do globo.

Embora o seu alcance geográfico seja muito maior, as explosões não pegaram em cheio os países centrais. Mas, também neles, algo fermenta: coletes amarelos na França; passeatas pró e contra o brexit na Inglaterra; a greve da GM nos Estados Unidos.
O que fermenta é a insatisfação com a política apodrecida. Com o status quo criado pela economia neoliberal. Com a ordem mundial sino-americana. Com a espoliação de milhões por um punhado de bilionários. O combustível da turbulência é a desigualdade social.

As multidões sabem o que repudiam. Mas apenas intuem o que querem: justiça, democracia, igualdade.

Os poderes constituídos têm horror a isso. Sua reação automática foi cair de pau na plebe rude.

A teocracia tirou a internet do ar no Irã e, segundo a Anistia Internacional, matou mais de cem. O exército encarcerou dezenas de dissidentes na Argélia, a começar pela médica Louisa Hanoune. A polícia chilena atirou na cabecinha e cegou dezenas de insatisfeitos.
As multidões cantam seus mutilados e mártires. E os bens de vida zelam para que os pés-rapados não se aposentem nunca, os desempregados sejam taxados e o agronegócio queime a Amazônia: é cultural, tá oquei?

Bolsonaro vem se armando para enfrentar eventuais revoltas. Pôs 2.500 militares em ministérios e cargos de chefia. Moro quase dobrou o contingente verde-oliva no Ministério da Justiça; e toda a milicada trabalha fardada às quartas-feiras.

Agora, o presidente mandou ao Congresso um projeto de lei que isenta de punições policiais e militares que, em defesa da lei e da ordem, cometam excessos. Na prática, inocenta previamente soldados e meganhas que cegarem, aleijarem ou matarem quem protestar contra Bolsonaro.
Por fim, lançou a Aliança pelo Brasil. Seu manifesto de fundação fala em “ordem nova”, “degeneração moral” e de “livrar o país dos larápios, dos espertos, dos demagogos e dos traidores”. É explícito: não usa nunca a palavra democracia.

A Aliança não precisa disputar as próximas eleições, como admitiu. Seu objetivo implícito é juntar a banda podre das polícias, do Exército, das seitas, das milícias e de toda a corja lúmpen numa organização de combate —de luta ideológica e física, nas ruas.

Enquanto os bem-pensantes batem papo sobre 2022, e avaliam as chances de Huck e Haddad, Bolsonaro se prepara. Tem o apoio de empresários e de Guedes, de moralistas e de Moro, de generais e de Villas Bôas, de pastores e do bispo Macedo, do império e de Trump.

Continuará a provocar arruaças, a destruir direitos e a solapar as liberdades públicas. Se a revolta vier e tiver condições, Bolsonaro posará de salvador da pátria, de Bonaparte. Tentará um golpe.  
 
(por Mario Sergio Conti)

MORO USOU PF PARA INTIMIDAR PORTEIRO E PROTEGER CLÃ BOLSONARO

MARCELO FREIXO ACUSA SERGIO MORO DE ADOTAR "AGRESSIVIDADE DE UM CAPANGA" PARA DEFENDER O CLÃ BOLSONARO

anielle franco e marcelo freixo
MORO USOU PF PARA INTIMIDAR
PORTEIRO E PROTEGER CLÃ BOLSONARO
O ministro da Justiça Sergio Moro sempre dedicou ao assassinato da vereadora Marielle Franco o seu absoluto silêncio e omissão. 

Ao longo de 600 dias, nunca manifestou solidariedade, procurou a família ou se pronunciou sobre o grave ataque que a execução de uma parlamentar representa à democracia. Quando questionado, dizia que não caberiam comentários a uma apuração realizada na esfera estadual. 

Tudo mudou após os nomes de seu chefe Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro aparecerem nas investigações sobre quem seria o mandante da execução. Moro passou da profunda indiferença à agressividade de um capanga. O ministro assumiu de vez o papel de advogado particular do clã presidencial. 

A mudança de postura ficou evidente em entrevista à rádio CBN. O ex-juiz classificou como "total disparate" a menção ao presidente e falou em politização do crime. Ora, quem politiza o assassinato é o ministro da Justiça, que não se constrange em usar o aparato policial do Estado brasileiro para intimidar um porteiro, homem humilde que mora numa área controlada por milícia, transformando uma testemunha em réu, para proteger a família Bolsonaro. 

Moro também politiza o crime ao defender a federalização das investigações, que estão sob a responsabilidade da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, sem o devido embasamento técnico que sustente a mudança. 

Certamente, o ex-juiz sabe que o art. 109, V-A, §5º da Constituição brasileira é claro ao definir os requisitos para que haja a transferência da apuração de um crime para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. 
Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a quem caberá o julgamento do pedido de federalização, também aponta que o deslocamento de competência só poderá ocorrer quando se verifica a incapacidade das autoridades locais em oferecer respostas efetivas, seja por leniência, omissão ou conluio. 

Nenhum desses critérios são observados quando analisamos as investigações realizadas pela Polícia Civil e Ministério Público do RJ. Afinal, dois suspeitos de terem cometido a execução foram identificados e presos. 

Um deles, o PM reformado Ronnie Lessa, nunca havia entrado numa delegacia na condição de acusado, apesar de ser um dos mais perigosos matadores do Estado e membro de um grupo de assassinos profissionais chamado Escritório do Crime. Sua prisão mostra que as apurações, por mais difíceis que sejam, estão progredindo. 

Para além da fragilidade jurídica, o posicionamento de Moro desrespeita a família de Marielle, que já manifestou publicamente ser contra a federalização. Os familiares redigiram uma carta aos ministros do STJ pela qual apresentam argumentos legais para que a investigação permaneça na esfera estadual. Estamos nos reunindo com ministros da corte para entregar esse documento e apresentar as preocupações dos parentes com essa tentativa de intervenção. 

Se Moro quer de fato contribuir com o caso, ele pode descobrir onde está o capitão Adriano Nóbrega, miliciano e membro do Escritório do Crime, que está foragido. A esposa e a mãe do bandido, que é comparsa de Ronnie Lessa, eram assessoras do filho mais velho do presidente. 
Marielle era companheira de luta do Freixo

Em vez de federalizar esse crime, o ministro poderia federalizar o combate às milícias, como já sugerimos no Congresso Nacional através de uma proposta de emenda à Constituição. Mas por que não o faz? 

Há muitas formas de Moro colaborar sem agredir a família de Marielle e sem politizar seu assassinato.
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(reproduzido do Blog do Sakamoto, este artigo foi escrito a quatro mãos
por Anielle Franco, irmã de Marielle, e o deputado federal Marcelo Freixo)

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Golpe escondido com tudo de fora

Golpe escondido com tudo de fora

José Goulão    20.Nov.19   

Na Bolívia, houve um golpe de Estado; uma mudança de regime inspirada na velha tradição, com terrorismo nas ruas, uma venenosa campanha de mentiras e os clássicos pronunciamentos policiais e militares impedindo o funcionamento das instituições eleitas com toda a legitimidade. E, como sempre, com os EUA a encabeçar e os seus lacaios regionais a assessorar.
«A mensagem mediática do caso da Bolívia é clara: um golpe não é um golpe se os resultados nos agradarem», Alan MaCleod, in FAIR (Fairness & Accuracy in Reporting).
Quem seguir o mundo através dos media corporativos fica a saber que na Bolívia não houve qualquer golpe de Estado no domingo, 10 de Novembro de 2019. Houve a renúncia do presidente, que partiu para o exílio na sequência de protestos populares através dos quais se manifestou a revolta contra a falsificação dos resultados das eleições realizadas em 20 de Outubro. Seguindo a letra da Constituição boliviana, a senadora Jeanine Áñez, presidente do Senado, foi proclamada presidente da República.
E assim se faz a história para os presentes e os vindouros. As coisas não se passaram assim? Que importa, se estes são os factos que chegam aos olhos e aos ouvidos de mais de 90% da população mundial?
Na Bolívia, porém, houve um golpe de Estado; e não um «golpe suave», como parecia estar na moda, mas uma mudança de regime inspirada na velha tradição, com terrorismo nas ruas, uma venenosa campanha de mentiras e os clássicos pronunciamentos policiais e militares impedindo o funcionamento das instituições eleitas com toda a legitimidade. O presidente e o vice-presidente eleitos, Evo Morales e García Linera, do Movimento para o Socialismo (MAS), que obtiveram mais de 47% dos votos nas eleições de 20 de Outubro, foram «convidados» a renunciar pelo chefe das Forças Armadas ao compasso de uma campanha organizada de terror contra titulares de órgãos de soberania e suas famílias, bens e propriedades, incluindo a residência pessoal do chefe de Estado.
Na vanguarda do golpismo emergiram duas figuras: o antigo presidente Carlos Mesa, um dos favoritos de Washington, segundo classificado nas eleições com mais de dez pontos percentuais de atraso do vencedor, Evo Morales; e Luis Fernando Camacho, conhecido por El Macho, chefe de milícias fascistas originárias da região de Santa Cruz, oriundo de uma poderosa família da oligarquia colonial e racista, indivíduo que, à frente de um gang de evangélicos pentecostais, fez questão de teatralizar a «reentrada da Bíblia» no palácio presidencial de Los Quemados, entretanto assaltado.
Embora sejam conhecidas na Bolívia as actividades de longa data desenvolvidas pelo NED (New Endowment for Democracy), entidade dirigida conjuntamente pelo Departamento de Estado norte-americano e pela CIA para incrementar «a democracia», a superestrutura golpista foi a Organização de Estados Americanos (OEA), instrumento financiado maioritariamente pelos Estados Unidos e que presta serviços a Washington em todo o «quintal das traseiras». É certo que agentes norte-americanos estiveram directamente envolvidos na trama, sob cobertura da embaixada em La Paz, mas foi a OEA quem deu substância às acusações de «fraude eleitoral» que começaram a ser brandidas por Carlos Mesa, El Macho e outras figuras ainda muito antes do acto eleitoral.
As teses golpistas de Almagro
Luis Almagro, secretário da OEA – que recentemente estivera em evidência em todas as manobras golpistas relacionadas com Juan Guaidó e a Venezuela – até reconhece que «sim, houve golpe de Estado na Bolívia: no momento em que pretenderam roubar as eleições de 20 de Outubro e perpetuar Evo Morales no poder», tweetou à moda de Trump. Portanto, houve golpe mas foi dado por Morales; a OEA terá, neste caso, patrocinado o contra-golpe. É assim o comportamento do responsável executivo de uma organização que integra a constelação da chamada «comunidade internacional».
Sobre a acusação de «perpetuação no poder» cabe dizer que Morales decidiu candidatar-se a um terceiro mandato na sequência de um parecer do Tribunal Constitucional segundo o qual não havia objecções a levantar.
Quanto ao «roubo de eleições», a própria comissão da OEA encarregada de observar as votações parece contradizer o secretário da organização ao afirmar que, «embora sem fraudes, o processo foi impreciso». Esta foi a formulação ambígua encontrada para, ao-fim-e-ao-cabo, não reconhecer as eleições e ditar a sua repetição, o que Morales aceitou. Nessa altura, porém, os golpistas tinham dado passos em frente, rejeitando uma repetição em que Morales e o seu vice, Linera, concorressem. Deste modo, de uma penada, quase metade do universo eleitoral transformou-se em lixo. Daí aos levantamentos policiais e ao pronunciamento das Forças Armadas foi um ápice.
A intenção de que a OEA fosse o instrumento de um golpe anunciado foi revelada, inclusivamente, pela própria composição da comissão da organização encarregada de «observar» as eleições. Embora o assunto esteja envolvido num secretismo revelador, no dia 2 de Novembro demitiu-se o chefe da equipa designada, o mexicano Arturo Espinosa, confrontado com o facto de ter escrito artigos contra Evo Morales antes de ser designado para o cargo. Que, no fundo, terá desempenhado a contento: a demissão não apaga o que ficou feito e tão-pouco restaura a dignidade a quem não a tem.
«Não há provas de fraudes»
Quem acompanhou pormenorizadamente as eleições foi uma equipa de um think tank sediado em Washington, o Center for Economic and Policy Research (CEPR, Centro de Estudos Económicos e Políticos), que apurou o seguinte: «Nem a OEA nem qualquer outra entidade demonstraram que houve irregularidades generalizadas ou sistematizadas nas eleições de 20 de Outubro de 2019.» O CEPR considera que os resultados finais, que garantiram a vitória de Morales na primeira volta, «são consistentes» com as contagens rápidas e parciais que foram sendo anunciadas durante o processo. De acordo com a mesma fonte, não há qualquer surpresa com o reforço da votação do vencedor nas últimas fases da contagem, uma vez que se tratava de resultados oriundos de zonas rurais e afastadas dos grandes centros, principalmente indígenas, importantes focos de apoio social a Evo Morales, ele próprio um indígena – facto que os sectores coloniais e oligárquicos sempre foram incapazes de aceitar, amarrados ao seu racismo atávico.
Denuncia ainda o CEPR: «Dúvidas infundadas lançadas sobre a contagem dos votos, sem qualquer prova a apoiá-las, tiveram influência significativa na cobertura dos media e, portanto, na opinião pública.»
A usurpadora
E de repente surge em cena a «presidente» Jeanine Áñez. Explicam os meios golpistas que também não existe sombra de golpe neste processo: segundo a Constituição boliviana, a presidente do Senado assume a presidência da República no caso de impedimento do presidente e do vice-presidente.
A realidade também nada tem a ver com esta ficção.
Áñez não era presidente do Senado eleito em 20 de Outubro. Militante de direita, era apenas uma das vice-presidentes da Câmara.
Acontece que os eleitos do MAS que assumiram as posições cimeiras do Senado acabaram por renunciar porque foram vítimas de violência e tiveram familiares sequestrados por milícias terroristas.
Áñez autoproclamou-se presidente do Senado nestas condições e em sessão em que a câmara não tinha quórum regimental para funcionar.
Depois de se autoproclamar presidente do Senado, Jeanine Añez autoproclamou-se presidente da República. A Bolívia tem assim um émulo de Guaidó na Venezuela, neste caso do género feminino para acertar quotas entre os usurpadores latino-americanos.
A Bolívia deixada por Morales
Evo Morales foi forçado a deixar a Bolívia ao cabo de quase 14 anos na presidência. Mais do que o próprio possa afirmar agora no seu exílio mexicano, os indicadores falam por si: o país progrediu nesse período mais do que nos últimos 500 anos dominados pelo colonialismo espanhol e pela oligarquia que o continuou.
Os governos de Morales devolveram soberania à Bolívia, transformaram a economia colocando-a ao serviço das populações, estabilizaram um crescimento económico acima dos 4%, multiplicaram por oito o PIB da nação – de cinco mil milhões de dólares em 2006 para 40 800 milhões de dólares em 2018 –, aumentaram o PIB per capita de 900 para quatro mil dólares, deram voz às mulheres e aos povos indígenas, desde sempre párias da sociedade; e, não menos importante, reduziram a pobreza extrema de 80% da população para menos de 15% por cento.
Esta a nova Bolívia que a oligarquia tradicional e os seus mentores imperialistas herdam. O golpe é o sinal de que não estavam dispostos a esperar pelo fim de mais um mandato para combater este mau exemplo humanista.
O golpe do lítio
Além disso, olhando a economia e avaliando a importância de alguns dos principais recursos naturais bolivianos, há motivos para concluir que existem razões económicas pressionantes que os golpistas – e sobretudo os seus mandantes – consideram incompatíveis com mais delongas.
Podem citar-se os interesses movidos pela necessidade de pôr fim ao controlo do Estado sobre a generalidade dos produtos mineiros e os hidrocarbonetos.
Entre todas as motivações emerge, porém, as que estão relacionadas com o lítio, o metal indispensável nas baterias que alimentam as novas tecnologias, especialmente agora com o boom dos veículos movidos a energia eléctrica.
Cálculos comuns predizem que as necessidades mundiais de lítio deverão duplicar até 2025, que é já amanhã.
E acontece que, embora haja fontes contraditórias, a Bolívia tem reservas desse metal que podem transformar o país no primeiro produtor mundial de uma matéria com tão elevado peso estratégico. Qualificar os acontecimentos em curso como o «golpe do lítio» pode não ser desadequado de todo.
As administrações de Morales defenderam o lítio, e todos os outros recursos naturais, como bens do povo boliviano e não das grandes corporações transnacionais; uma defesa extensiva à «preservação da Mãe Terra», preocupação que não tem a ver com modismos mas com as relações genuínas e intrínsecas dos povos indígenas com a natureza.
Por isso, no dia 4 de Novembro, isto é, duas semanas depois das eleições, Evo Morales considerou procedentes os protestos de comunidades indígenas da região de Potosí e cancelou o contrato de exploração de lítio celebrado com a empresa alemã ACI Systems.
Não é de estranhar que este acontecimento tenha alimentado ainda mais o golpismo num ambiente em que – como se constatou – nos 14 anos de gestão do Estado as administrações Morales não sintonizaram as forças militares e de segurança, herdadas dos regimes oligárquicos, com as transformações políticas e económicas promovidas no país.
Onde entram empresas chinesas
A imensa reserva de lítio que desequilibra a balança mundial do produto a favor da Bolívia são os vastíssimos campos de sal do Salar de Uyuni, situados a 3600 metros de altitude, em condições que exigem investimento e metodologias especiais para a exploração. Minas de sal em altitudes onde a precipitação é abundante não podem ser aproveitadas através da evaporação solar, tal como acontece em outros grandes produtores mundiais como o Chile e a Argentina.
Acresce que os governos de Morales puseram como condições de exploração do lítio por investidores estrangeiros a celebração de acordos de partilha de investimentos e lucros com empresas estatais bolivianas – o que as grandes transnacionais, designadamente a norte-americana Tesla e a Canadiana Pure Energy Metals, entre outras, não aceitaram.
O mesmo não aconteceu com empresas chinesas que já estão envolvidas na exploração do lítio boliviano. Mais uma situação susceptível de incomodar os proprietários do «quintal das traseiras».
Além disso, o que está a acontecer no Chile – que os media norte-americanos qualificam como «tumultos» – e os recentes resultados nas eleições argentinas tornaram, de um momento para o outro, dois dos principais mercados de lítio eventualmente menos prestimosos perante a ganância das transnacionais, o que também poderá ter aconselhado maior rapidez na mudança forçada de governo em La Paz.
Nestas conjecturas existem, é certo, elementos especulativos.
O que já não pode considerar-se especulação é o facto de as acções da Tesla, o fabricante de automóveis eléctricos, terem subido vertiginosamente ao som dos tambores do golpe na Bolívia.
Silêncios que dizem muito
Admite-se como provável que o presidente da República Portuguesa, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros tenham canais próprios de informação além dos media corporativos, incluindo os que o são por afinidade regimental, como a televisão pública.
Por isso, deve estranhar-se que personalidades habitualmente tão loquazes como o ministro Santos Silva nada tenham dito ainda sobre o que se passa na Bolívia. Foram lépidos a reconhecer o golpismo de Guaidó na Venezuela mas parece faltar-lhes agora o ânimo para saudarem a usurpadora Jeanine Áñez em La Paz.
Precipitação na anterior aposta num cavalo erradíssimo sugere alguma contenção agora?
Aguardam que Washington e Bruxelas digam, sem rodeios, o que lhes vai nas almas? Donald Trump já sentenciou que estamos perante um passo acertado «no caminho da democracia».
Não poderiam Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e/ou Santos Silva ao menos invocar o princípio de que a Constituição Portuguesa não tolera golpes de Estado? Ou será que ainda têm dúvidas de que foi um golpe de Estado?
Não ter voz perante atrocidades deste tipo contra a democracia é impróprio de um país que diz prezar a sua soberania.
Fonte: https://www.abrilabril.pt/internacional/golpe-escondido-com-tudo-de-fora

Show de racismo e insensatez na Câmara é prova de retrocesso civilizatório

Show de racismo e insensatez na Câmara é prova de retrocesso civilizatório

por Bruno Boghossian
Eleição deu megafones àqueles que preferem comportamento
As últimas eleições colocaram megafones nas mãos de gente que não tem vergonha da própria insensatez. A disputa que consagrou aqueles que “falam o que pensam” parece ter dado um salvo-conduto a alguns políticos que se alimentam de um comportamento selvagem e de impropérios animalescos.
O espetáculo indecente protagonizado por um grupo de deputados na Câmara nesta terça (19) é mais um sinal de que o país se lança num retrocesso civilizatório –e há disputa para saber quem será o passageiro mais desvairado.
O deputado Coronel Tadeu (PSL) pediu que um assessor gravasse o momento em que ele arrancava da parede uma placa exposta num dos corredores do Congresso. A imagem mostrava um homem negro algemado e morto diante de um policial, que andava com uma arma fumegante.
O parlamentar certamente não gostou da referência que o cartaz fazia ao “genocídio da população negra”, associado à PM. Em vez de protestar como qualquer ser humano, atirou a placa ao chão e partiu ao meio. Depois, publicou um vídeo nas redes sociais para se vangloriar.
O coronel foi aplaudido por um especialista no assunto, o deputado Daniel Silveira (PSL). Na campanha de 2018, ele quebrou uma placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL).
“Há mais negros com arma, mais negros cometendo crime, mais negros confrontando a polícia, mais negros morrem”, afirmou. “Não venha atribuir à polícia mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”, completou, pedindo que o show de racismo fosse reproduzido no rádio, na Voz do Brasil.
Não fossem esses digníssimos senhores responsáveis pela elaboração de políticas de segurança pública e pela fiscalização de atos dos governos, eles poderiam ficar reduzidos à própria ignorância. Mas suas palavras provam que, no coração do poder, estão pessoas que fingem não enxergar as vítimas inocentes e a desigualdade racial dramática do país. É assim que se anda para trás.
*Publicado na Folha de S.Paulo

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Discussão do Supremo sobre caso Coaf joga luz em lacuna legislativa

Discussão do Supremo sobre caso Coaf joga luz em lacuna legislativa

Decisão será sobre relatórios que especifiquem dados bancários detalhados sem autorização da Justiça


Luís Greco  
Alaor Leite 
 
Berlim 
 
 
O STF decidirá em breve, com repercussão geral, sobre a possibilidade de órgãos de fiscalização, entre eles o antigo Coaf, compartilharem informações financeiras de cidadãos com o Ministério Público.
No centro do debate, tem-se a exigência de ordem judicial prévia para que o compartilhamento possa ocorrer. A questão, contudo, é mais ampla e apresenta outras dimensões pouco lembradas no debate atual, mas que podem iluminar o problema.
No fundo, trata-se de impor limites ao poder informacional do Estado.
Uma primeira dimensão se refere à fonte delimitadora desse poder informacional. Em democracias, essa é tarefa que incumbe à própria população, através de seus representantes, isto é, o Parlamento.
As atribuições institucionais que atinjam direitos individuais não podem ser determinadas pelas próprias instituições e por suas regras internas (resoluções, portarias).
Em outras palavras, teria de existir lei formal prevendo os pressupostos materiais para o compartilhamento, sobretudo em quais hipóteses, quais os dados e com que finalidade podem eles ser colhidos, usados, compartilhados e armazenados.
Também os aspectos procedimentais teriam de estar regulados: por quanto tempo devem ficar armazenados os dados? Que instituições, públicas ou privadas, podem requisitá-los? Deve ocorrer alguma notificação aos afetados? Os dados deverão ser apagados?
A autorização judicial deveria avaliar o atendimento a esses critérios. Não se pode reduzir o problema a uma questão de competência, porque não se trata apenas de reserva de jurisdição, mas de reserva de lei.
Essa lei, contudo, não existe —e a reserva de jurisdição, sem lei, é órfã. Dessa notória lacuna legislativa decorre uma disputa por poderes informacionais.
 

Outra dimensão esquecida tem natureza institucional. A atividade estatal de coleta, uso, compartilhamento e armazenamento de dados dos cidadãos serve a finalidades importantes, como a prevenção à lavagem de dinheiro.
Porém, se saber significa poder, e não pode haver poder ilimitado, passa a ser relevante definir as atribuições dos órgãos vocacionados à produção geral de informações –órgãos de inteligência– e as atribuições que competem ao órgão que possui o poder de agir em face de pessoas concretas suspeitas de prática de ilícito –os órgãos de persecução penal.
Num Estado cujo poder encontra limites, ou não se pode saber tudo, ou quem tudo sabe terá as mãos amarradas para que não se transforme em alguém que tudo pode.
Daí se derivou em alguns países europeus, em especial na Alemanha, um imperativo institucional no sentido de uma separação informacional de poderes: o direito tem de criar barreiras e cautelas ao fluxo de informações dentro do Estado, para impedir o surgimento de um poder ilimitado.
O Coaf, rebatizado de UIF (Unidade de Inteligência Financeira), por exemplo, que tem amplo e generalizado acesso a informações sigilosas, não deve poder tomar medidas concretas, de natureza processual penal, contra uma pessoa específica.
O Ministério Público, que tem a seu dispor essas medidas, com intermediação do Poder Judiciário, não deve, assim, saber o mesmo que sabe o antigo Coaf. Seu acesso a informações não pode ser amplo e generalizado, mas sempre pontual e individualizado.
É nesse contexto que o STF terá de decidir a questão. Deverá o STF, para o futuro, contentar-se em amarrar as mãos dos órgãos estatais até que Congresso Nacional regule a questão em todos os seus aspectos? Não parece ser o caso.
Convém recordar o exemplo alemão. O Tribunal Constitucional Federal, diante do mesmo dilema, equacionou-o por meio da figura do bônus de transição: declara-se a inconstitucionalidade, mas confere-se ao legislador um prazo de tolerância, dentro do qual ele deverá remediá-la.
E quanto ao passado? Parece difícil afirmar que tudo o que foi feito deve ser anulado. Há incertezas, por exemplo, quanto ao conteúdo do que deve constar dos relatórios de inteligência financeira (os RIFs) transmitidos às autoridades persecutórias —muitas vezes com tamanho detalhamento que perdem sua natureza.
Algumas desordens parecem toleráveis e atribuíveis à omissão legislativa. O limite talvez esteja ultrapassado quando se verifica um ambiente para que órgãos de persecução passem a circunvir ou burlar as poucas limitações eventualmente existentes à obtenção e à utilização de dados.
Concretamente: quando o órgão de persecução instigue órgão de inteligência a produzir dados especificamente relacionados a pessoas concretas, invertendo a cronologia informacional e gerando RIFs que mais se assemelham a minutas de acusações criminais, contornado exigências legais já existentes quanto à quebra de sigilo de dados.
As atribuições repressivas do Ministério Público pressupõem, cronologicamente, que tenha chegado a seu conhecimento a chamada notícia de um delito. Não há convalidação possível em face desse tipo de burla.
Como se vê, a questão é muito maior do que a mera exigência de autorização judicial. Não se trata de disputa informacional entre órgãos estatais ou de mera questão de competência ou atribuição, mas de limitação legal do poder informacional do Estado.
Enxergar essas questões e colocá-las na ordem do dia do Legislativo e da sociedade brasileira como um todo pode ser a maior contribuição que o país pode esperar da decisão do STF.

ENTENDA A DECISÃO DE TOFFOLI SOBRE O COAF

O que Toffoli decidiu em julho?
O presidente do Supremo suspendeu investigações criminais que envolvam relatórios com dados bancários detalhados sem que tenha havido autorização da Justiça --ainda que o inquérito tenha outros elementos que o embasem. A decisão atinge inquéritos de todas as instâncias baseados em informações de órgãos de controle, como o antigo Coaf (hoje UIF), Receita Federal e Banco Central. É esse o tema do julgamento desta quarta (20)
O que seriam "dados detalhados"?
Informações que vão além da identificação dos titulares das transações suspeitas e do valor movimentado
O que isso tem a ver com Flávio Bolsonaro?
A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador e paralisou a investigação do MP-RJ que envolve Flávio e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A apuração começou com o envio à Promotoria de um relatório do Coaf apontando movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz
O que está sendo investigado sobre Flávio?
O MP-RJ apura se houve "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no RJ. Nesse esquema, servidores devolvem parte do salário aos deputados. Há suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa


Luís Greco é professor catedrático da Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, e Alaor Leite é docente assistente na Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, e doutor pela Universidade de Munique, Alemanha

domingo, 17 de novembro de 2019

Bozonauro é a revanche do homem comum,

Bozonauro é a revanche do homem comum

Quando Bolsonaro mostra saídas simples (e falsas) para os problemas nacionais, todos os ignorantes se sentem contemplados: não falei? É isso o que penso?


A grande questão: existe bolsonarismo sem Bolsonaro?
O bolsonarismo é um agregado de grupos fundamentalistas, de evangélicos fundamentalistas, ultradireita terraplanista, lavajatistas, milícias do Rio de Janeiro, milícias digitais, uma massa disforme juntada apenas pelo cimento do antiesquerdismo e do antipetismo.
Está infiltrado nos Ministérios Públicos, na administração pública, nas polícias e na base das
Forças Armadas, no meio empresarial, no Judiciário, especialmente entre juízes criminais, mas provavelmente não de forma orgânica.
Tem pontos em comum, que caracterizam como movimento:
– Crença de que não apenas o PT é comunista-revolucionário, como qualquer pauta identitária ou qualquer laivo de modernidade nos costumes.
– Crença em todas as fake news disseminadas, do Foro de São Paulo ao comunismo do
Papa.
– Desconfiança absoluta nas instituições, especialmente no Supremo Tribunal Federal e
na mídia. Anos atrás, bem antes da campanha do impeachment, quando o jornalismo
de esgoto estava a pleno vapor, ouvi, em uma mesa de juizes estaduais de São Paulo,
que Veja e Jornal Nacional eram dominados pelos comunistas.
Bolsonaro foi a expressão máxima desse estado de espírito, não por qualidade intrínsecas a Estadistas, mas pelo fato de representar a barbárie em estado puro.
A história do mito foi aceita sim. Bem antes da facada, tive a oportunidade de estar em alguns locais do interior que receberam ou receberiam sua visita. E o clima era de entusiasmo próximo ao paroxismo.
Lula era visto como o pai dos pobres. Bolsonaro é a própria personificação da estupidez do
homem comum. Essa identificação direta de Bolsonaro com estúpidos de todas as classes
sociais produz fenômenos de solidariedade inéditos. Quando seu despreparo é destacado, o
bolsonaristas comum se sente pessoalmente atingido. Quando um ignorante bolsonarista é
desqualificado por um especialista, todos os ignorantes bolsonaristas se sentem atingidos, o ignorante empresário, o ignorante motorista de táxi, o ignorante classe média do interior. A ignorância gera o complexo de inferioridade mais universal que existe, porque pega todo tipo de pessoa, independentemente de sua classe social.
Quando Bolsonaro mostra saídas simples (e falsas) para os problemas nacionais, todos os
ignorantes se sentem contemplados: não falei? É isso o que penso.
Esse simplismo mistificador é praticado, revestido do manto diáfano da fantasia, pelos
procuradores da Lava Jato, por Sérgio Moro, pelo Ministro Luis Roberto Barroso, e por uma
legião de oportunistas que valem-se do desmonte das instituições para lançar fórmulas
salvadoras.
Aqui em Montreal, conheci pesquisadores de porte investigando o fenômeno do “regressismo” no mundo e, particularmente, no Brasil. Não será difícil mostrar as relações de causa e efeito entre o “novo iluminismo” pregado por Barroso, e o seu resultado final, o “regressismo” atual no Brasil.
Por todos esses fatores, minha opinião é que o bolsonarismo não sobrevive sem Bolsonaro.
Quem seria o substituto? Dória, o almofadinha, cuja representação pública da violência são os chiliques e o menosprezo a tudo o que não seja Avenida Faria Lima? Wilson Witzel, que só conseguirá atrair sociopatas com seu o discurso da morte e da violência?
A única liderança capaz de substituir Jair Bolsonaro é Eduardo Bolsonaro. Mas Bolsonaro sem presidência será apenas uma milícia no Rio, com órfãos pelo Brasil.

O pecado da República foi não ter incluído o povo

O pecado da República foi não ter incluído o povo

Da Folha de S.Paulo, em entrevista a Fernanda Onofre
República extinguiu privilégio apenas dos Braganças, diz Murilo de Carvalho
Historiador lembra que regime proclamado em 1889 não incluiu o povo, e democracia ficou ausente até os anos 1940
O pecado original da República, na avaliação de José Murilo de Carvalho, foi não ter incluído o povo. “A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais”, afirma o historiador sobre a proclamação que completa 130 anos nesta sext a-feira (15).
“Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940″, diz Murilo de Carvalho, 80, que é cientista político e imortal da Academia Brasileira de Letras.
A ausência de povo, eis o pecado original da República, segundo o senhor. Como e por que o povo não fez parte dela? A afirmação refere-se à origem de nossa República. Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940. Até essa data, tínhamos uma participação eleitoral inferior à que existiu até 1881, quando foi introduzido o voto direto. Era uma república patrícia, uma república sem democracia.
Qual o significado de uma República sem povo? Na Grécia, Roma, Estados Unidos a República convivia com a escravidão e com a exclusão política das mulheres. Mas todo homem livre era cidadão ativo. A partir da Revolução Francesa, no entanto, a democracia passou a ser componente indispensável das repúblicas. No Brasil, a efetiva incorporação de povo, homens e mulheres, no sistema representativo só aconteceu após a queda do Estado Novo. A partir daí houve rápida e massiva inclusão eleitoral de povo. Nossa República não suportou a carga e desmoronou em 1964.
O fato de ela ter vindo por um golpe militar e não por uma revolução mudou o curso dela? Só Silva Jardim acreditava em revolução do tipo da Francesa e pregava o fuzilamento do conde d’Eu [marido da princesa Isabel, descendente da dinastia Orleans]. Não foi nem avisado do golpe. Ninguém mais, além dele, queria sangue. A busca do apoio dos militares do Exército foi oportunismo dos civis, sobretudo de Quintino Bocaiuva.
O problema dos políticos na primeira década da República foi livrarem-se dos militares. Floriano Peixoto garantiu o novo regime, mas era incômodo por despertar um movimento popular jacobino. A posição dominante entre os republicanos, sobretudo os paulistas, era esperar a morte do imperador e então impedir que Isabel tomasse posse. A transição viria de preferência via Constituinte, solução aceita até mesmo por monarquistas como Saraiva [José Antônio Saraiva, que chegou a ser nomeado pelo imperador para formar um gabinete na madrugada de 16 de novembro mas nunca assumiu].
A partida da família imperial foi antecipada para evitar conflitos. Mas o Brasil é um país violento, sustentou séculos de escravidão e tem sequelas. Qual o papel da violência na nossa questão republicana? A violência está embutida em nosso DNA, independentemente de regimes políticos. Os dez primeiros anos da República foram violentos: revoltas militares, guerra federalista no Sul, Revolta da Armada e, sobretudo, o terrível massacre de Canudos.
Qual tem sido o papel dos militares na nossa República, visto que vez ou outra eles assumem papel na política? O papel variou ao longo do tempo. Após a consolidação do regime com Campos Sales até 1930, a participação foi em boa parte antioligárquica, liderada por oficiais subalternos do Exército. Depois do Estado Novo, o papel passou a ser de tutela, quando não de intervenção direta, comandada pela cúpula militar.
Antes da Proclamação da República, tivemos várias repúblicas que não vingaram pelo Brasil. O que lhes faltou? Eram manifestações locais e provinciais, todas derrotadas pelas armas. A de maior êxito foi a Farroupilha que separou o Rio Grande do Sul por dez anos e terminou por um acordo do Império com os gaúchos. A repressão mais violenta verificou-se em revoltas que envolviam segmentos populares, como a Confederação do Equador, a Cabanagem e, já na República, Canudos e Contestado.
O que os brasileiros desse final do século 19 entendiam então por República? Os republicanos, sobretudo os paulistas, queriam autogoverno, isto é, eleição dos governantes, e federalismo à moda norte-americana. A monarquia significava privilégio de uma família ou dinastia, marca do antigo regime. A palavra democracia, significando governo pelo povo, fazia parte da retórica, mas em nenhum momento foi ativada.
Esse conceito mudou de alguma forma até 2019? Hoje é difícil saber o que as pessoas querem dizer quando falam em República, além de um sistema de governo. O conceito confunde-se com o de democracia, como queriam os propagandistas.
Os poucos que ainda o distinguem de democracia corretamente o vinculam a certos valores como a igualdade perante a lei, a ausência de privilégios, o bom governo, o cuidado com o bem público. Nesse sentido, pode-se dizer que há hoje mais democracia do que República e talvez seja este um de nossos principais problemas.
O senhor cita em seus escritos a exclusão pelo voto de 30,6 milhões de brasileiros, apenas 2,4 milhões podiam votar na virada do século 19 para 20 e, além dele, a questão da abstenção nas eleições de 1910, chegou a 40%. Qual a importância do voto para uma República? Segundo a distinção proposta, participação eleitoral tem mais a ver com democracia e menos com República. Hoje, uma não pode existir sem a outra. Democracia sem república, sem bom governo, sem igualdade civil, marcada por clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, é frágil. Assim como República sem ampla participação não tem futuro.
Desde 1930, só cinco eleitos pelo voto direto conseguiram concluir seus mandatos [o atual presidente está no primeiro ano de governo]; quatro não completaram a gestão e sete presidentes não foram eleitos pelo voto. Essa democracia é fruto de falhas da República? É em boa parte fruto da entrada tardia e rápida do povo no sistema político, da democratização da República. A República patrícia não suportou o impacto e recorreu aos militares para conter a onda democrática, aproveitando-se do conflito ideológico que dominava o cenário internacional.
A República está em crise? Quase todas as repúblicas estão. A nossa continua sujeita à interferência “moderadora” das Forças Armadas.
Como o senhor analisa a questão federativa? A Federação foi uma das demandas mais fortes dos propagandistas, sobretudo dos paulistas e gaúchos. O federalismo norte-americano era o modelo, embora ele tenha assumido aqui sentido oposto.
Isto é, os federalistas norte-americanos eram os que queriam salvar a união das colônias contra as tendências separatistas afinal adotadas pelos sulistas para garantir a escravidão. O federalismo dos pais fundadores acabou preservando a União e abolindo a escravidão, embora à custa de uma sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que dava ampla liberdade às unidades federadas.
Entre nós, federalismo e centralização é um debate secular. A enorme desigualdade das unidades da Federação leva a uma grande dependência do governo central que, por sua vez, coíbe iniciativas estaduais.
Por volta de 1627, frei Vicente do Salvador escreve uma citação que virou clássico sobre o Brasil: “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. O que nos fez assim? Apesar de ser lugar-comum, não é possível deixar de mencionar a gênese de nossa economia e de nossa sociedade. Não é que o passado nos condene. Mas as sociedades têm biografia, têm valores e práticas arraigadas. Se não, como entender que com tanta desigualdade não tenhamos tido qualquer revolução social? Como entender que com uma das maiores franquias eleitorais do mundo não consigamos produzir políticas redistributivas, limitando-nos ao assistencialismo distributivista?
O Brasil de hoje tem repúblicos? Nossos repúblicos podem ser contados nos dedos. Olhando pelo ângulo da preocupação com o bem coletivo, só os positivistas ortodoxos do início da República foram republicanos. Até iniciativas republicanas acabam comprometidas. Veja-se a Operação Lava Jato.
Nada mais republicano do que igualdade perante a lei. Rico e poderoso no Brasil nunca ia para a cadeia. A Lava Jato os mandou para lá. Vitória da República. Mas aí vem a denúncia de práticas arbitrárias por parte de promotores e juízes que ameaçam a validade das sentenças. Podemos voltar à estaca zero. Derrota da República.
E nossa República, tem salvação? Só por milagre de frei Vicente. Temos que avançar aos trancos e barrancos, combatendo sistematicamente as desigualdades na economia e os privilégios na sociedade. A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.
Temos pela frente o imenso problema de incorporar ao mercado de trabalho os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. Só uma combinação de República e democracia, de bom governo e inclusão, pode resolver o problema, se ainda tiver solução.

JOSÉ MURILO DE CARVALHO, 80

Nascido em Andrelândia (MG), é formado em sociologia e política pela UFMG, mestre e doutor ciência política pela Universidade de Stanford (EUA). Entre suas obras estão “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não Foi” (1987), “A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil” (2003), “O Pecado Original da República: Debates, Personagens e Eventos para Compreender o Brasil” (2017) e “Forças Armadas e Política no Brasil” (2019, 2ª ed.)

A maldição de Caim

A maldição de Caim


Renato Sérgio de Lima 
 
A maldição de Caim, que ao matar Abel é considerado pelos Cristãos  como o primeiro homicida da história, é uma das derivações teológicas utilizadas como justificativas para a Escravidão. Em 1455, o Papa Nicolau V, promulga a Bula Romanus Pontifex, que dava legitimidade teológica e, sobretudo, jurídica à escravização e à expropriação da África pelo Reino de Portugal.
Nela, a maldição divina sobre Caim de marcá-lo na carne de forma indelével para que não morresse e pudesse viver em constante expiação de seu pecado capital foi associada aos africanos ao afirmar que estes últimos eram seus descendentes e que, por isso, a cor de suas peles era prova jurídica que justificava subjugá-los à escravidão e submetê-los à vontade de Deus.
Ela é base para compreendermos a escravidão no Brasil e lembrar de sua existência serve para jogarmos luz às opções políticos-institucionais do Estado e da sociedade brasileira que fazem com que os negros permaneçam, até hoje, como o segmento populacional mais vulnerável à violência e à criminalidade.
Opções político-institucionais que evitam discutir a questão racial na segurança pública e invisibilizam, mesmo contra todas as evidências, o fato de que para cada pessoa não negra assassinada, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídio. Ou, ao contrário daqueles que defendem que são criminosos matando criminosos, da constatação de que estas mortes atingem a todos: 51,7% dos policiais mortos entre 2017 e 2018 eram negros; e 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras (dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Opções que provocaram, ao longo do Século XX, um apagamento da memória institucional sobre a questão racial e torna extremamente complexo se obter dados e evidências sobre a raça/cor dos indivíduos objetos da atenção das instituições públicas. Falar da maior violência contra negros é ainda tabu no interior do sistema de justiça criminal e segurança pública.
Assim, todo o debate sobre segurança pública fica subsumido aos aspectos técnicos operacionais do funcionamento das instituições de justiça criminal e segurança pública e não incluímos as opções políticas e estratégicas que regem a área no rol de prioridades de reflexão, modernização e reforma. A questão racial é refutada como um não problema da área e os que falam sobre o assunto são rotulados de ideológicos. Vamos reproduzindo acriticamente iniquidades e desigualdades raciais.
E isso é ainda mais relevante pois, em tempos de reforço conservador e de reafirmação das tradições judaico-cristãs, é válido relembrar que muitas dessas tradições não têm nada de inocentes ou divinas e têm suas fundamentações históricas/ideológicas no elo que liga a dominação econômica europeia ao cristianismo e à conquista de territórios.
Por trás do resgate ao discurso de”certas” tradições (outros legados europeus como iluminismo, fraternidade ou igualdade são convenientes esquecidos na atual quadra histórica) e da recusa ao debate sobre identidades ou desigualdades, escondem-se projetos obscurantistas e autoritários que precisam ser trazidos à tona. No caso da segurança, é preciso explicitar que a violência é uma das marcas mais persistentes da sociedade brasileira e até o momento não criamos alternativas à ela.
Dito isso, às vésperas de mais um dia da consciência negra e da reafirmação de dados que mostram o quão violentas, perenes e perversas são as marcas da escravidão no Brasil, fico-me perguntando sobre como superar o nosso déficit civilizatório e contribuir no debate sobre a construção da cidadania ampla e universal no país.
Por certo várias são as saídas e soluções, mas, todas elas, dependem de mobilização social e do que, dadas as referências do tempo, seria uma nova cruzada; uma cruzada dedicada à transparência radical na segurança e à construção de uma ética pública não violenta.

O novo valor do zero


O novo valor do zero

Quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate

Janio de Freitas

  • Zero. É apenas um cisco de vergonha, não uma quantidade, que se encosta na verdade para estabelecer em 0,1% o crescimento econômico da América Latina neste ano, na mais recente estimativa da Cepal —a instituição mantida pela Organização das Nações Unidas para estudo da economia regional.
    Zero de crescimento e, no entanto, excetuada a Venezuela, as classes altas não estiveram queixosas em nenhum país desta geografia do desemprego, das favelas, de vida com R$ 4,50 por dia, de morte pela falta de saneamento e violência sem limite. Da desigualdade e da injustiça como princípios básicos de cada país.
    Não é preciso lembrar por que as classes altas não estiveram nem estão queixosas dessas políticas econômicas nacionais.

    Jair Bolsonaro e Paulo Guedes não faltam com a já esperada contribuição ao divisionismo. O estudo da Cepal coincide com as atuais previsões daqui mesmo sobre o crescimento brasileiro neste ano.
    Da campanha até à posse, os dois falavam em crescimento de 3%, e mesmo de 3,5% neste ano. O previsto está em 0,8%. A caminho da adesão às 17 economias, entre as 20 da região, já comprometidas com o ano de desaceleração. Mas as nossas classes altas não emitiram, até agora, nem a mais sussurrante insatisfação com algo do governo Bolsonaro. Bem ao contrário.
    Os casos do Chile e da Bolívia são resumos perfeitos da América Latina. O Chile convulsionado seguia para crescer no ano quase 2%. Mas, fora as classes altas, os chilenos estão nas ruas, manifestando-se ou combatendo, por redução das usurpações e das opressões econômicas a que são submetidos.
    Diz o noticiário que já são “mais de 25 mortos e mais de 200 com lesões nos olhos”. E, inerte, o que o governo Sebastián Piñera —um dos mais opulentos empresários do país— tem afinal a propor, “para a pacificação”, é um plebiscito em abril, daqui a cinco meses, sobre o tipo de Constituinte. É claro que pensa no esmorecimento da rebelião, para voltar ao que Paulo Guedes definiu como “paraíso chileno”. Explosivo, porém.
    Recordista de golpes, país mais pobre do grupo latino-americano, embora seu território riquíssimo, a Bolívia enfim experimentou com Evo Morales quase 15 anos de estabilidade. Nesse período, o crescimento econômico, sem precedente, foi de 5% ao ano.
    A pobreza, da ordem de 60% da população na posse de Morales, foi reduzida a quase 30%. As medidas de inclusão dos indígenas não se fizeram à custa dos abastados históricos, que não tiveram queixas econômicas.
    O caudilhismo de que a direita brasileira acusa Evo Morales, por pretender o quarto mandato, não encontra justificativa no estilo que praticou, como o de seu decisivo companheiro de governo, o cientista e vice Álvaro García Linera.
    A situação degenerou com os estímulos oposicionistas à rebelião de policiais, em resposta a decisões de governo contra a escandalosa corrupção da polícia. A campanha contrária à candidatura e logo à eleição da dupla prosperou com facilidade.
    Mas o que precipitou a intervenção do comando militar na crise foi o chamado de Morales a uma nova eleição. Proposta que resolvia as acusações de fraude e dava outra oportunidade à oposição. Recusá-la seria desmoralizante. Aceitá-la? E se Morales ganhasse outra vez?
    Melhor ativar os generais do que responder à proposta. Antes de acabar a semana, “mais de dez mortos”, centenas de feridos, convulsão instalada e uma falsa presidente apoiada pelo governo Bolsonaro, como o falso presidente venezuelano Juan Guaidó (Bolsonaro é adepto de falsas presidências).
    Há, contudo, a inclusão da América Latina no recurso à violência urbana em progressão. Como na França dos coletes amarelos, na Espanha dos separatistas, no Equador do já derrotado Lenín Moreno, no “paraíso chileno”, na prosperidade interrompida da Bolívia, nos bravos de Hong Kong: quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate. É parte da fase global de transformações, à qual o Brasil, até agora, não fugiu.
    Janio de Freitas
    Jornalista

    quinta-feira, 14 de novembro de 2019

    Extra! Já estão usando até a escravidão para dinamitar cláusula pétrea

    Extra! Já estão usando até a escravidão para dinamitar cláusula pétrea


    Abstract: Para Cristovam Buarque, vai um trecho de Rei Lear, de Shakespeare: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.

    Há um conceito novo na praça. Muniz Sodré, em belo artigo na Folha de S.Paulo, conta-nos: “A distopia televisiva Years and Years (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos designar como sociedade incivil”. Tempos de raiva, de anti-intelectualismo e quejandos.
    Um bom exemplo dessa incivilidade foi o Twitter do ex-senador Cristovam Buarque sobre cláusulas pétreas, que bem demonstra o buraco em que estamos metidos:
    “Perguntas brasileiras: e se nossa primeira Constituição tivesse colocado a propriedade de escravos como cláusula pétrea, por sua importância fundamental na economia da época?”
    Sim, ele postou isso. Mas não é o primeiro e nem o único. Grupos de WhatsApp — as novas células terroristas das neocavernas — disseminam esse tipo de asneira ofensiva. Não me surpreende que Cristovam não tenha sido reeleito. Manchou sua história como professor. Que feio. A resposta ao ex-senador veio fulminante, pela voz do advogado Silvio Almeida: “Senador, sinto-me, como negro que sou, profundamente ofendido com sua comparação ridícula, sem sentido e desrespeitosa. O senhor tornou-se um homem triste e vulgar. Que a história trate de colocá-lo em seu devido lugar”. Amém, Silvio. And I rest my case.
    Eis uma boa amostra destes tempos de incivilidade, em que um professor, ex-senador, ex-governador, diz uma barbaridade destas. Ele não deve ter amigos ou alguém em casa que o aconselhe. Será que não tem nenhum parente que tenha estudado Direito ou que tenha lido algum livro de Direito Constitucional? Mesmo um livro de Direito Constitucional facilitado ensinaria ao ex-senador (e aos outros disseminadores dessa nesciedade).
    Sigo. O Brasil deve ser o único país do mundo em que as garantias constitucionais e processuais são vistas como inimigas. Pior: quem dissemina mais essa lenda é gente da comunidade jurídica.
    Veja-se a reação raivosa dessa gente ao julgamento do Supremo no caso das ADCs. Uma advogada do RS disse que os filhos e filhas dos ordinários ministros deveriam ser estuprados. Outros posts em Twitter e Facebook incentivam o ódio. Gente do direito — e alguns do parlamento — pedindo que o STF seja fechado. Gente do MP pró-sociedade fazendo uma ode ao uso desmesurado do meio ambiente para fazer a felicidade de cada pessoa, afora outras coisas desse quilate (ver meu MP Pró-sociedade chama Lei do Abuso de Lei do Bandido Feliz). Eis o paradigma da incivilidade.
    Ao lado disso tudo, o exercício da advocacia tem se transformado em uma corrida de obstáculos. Tem de matar dois leões por dia, desviar das antas, cruzar por um fosso de jacarés, beijar um leão e, ainda por cima, cuidar para não ser esnobado pelo meirinho.
    Bom, esse é o trivial do cotidiano pelo qual passam centenas de milhares de causídicos. Mas, nos últimos anos, há um fenômeno novo, o da criminalização da advocacia. Advogados que fazem pareceres como procuradores de município ou autarquias são enquadrados como criminosos e, quiçá, membros de orcrim.
    Escritórios são violados. Constantemente a OAB tem de recorrer ao STF — e tenho sido protagonista em alguns casos por indicação do Conselho Federal da OAB —, buscando medidas, especialmente reclamações, para proteger o exercício da profissão. Chegamos a esse ponto.
    Eis a tempestade perfeita: juíza mede o tamanho das saias das advogadas, o que demonstra, simbolicamente, o grau de autoritarismo que se encalacrou nas instituições. Advogados são pressionados para que seus clientes façam delação. Advogados são vetados em delações. Querem alterar até o conceito de coisa julgada, afogando Liebman no rio de história.
    Sobre tudo isso temos de refletir. Agora mesmo há um movimento nacional — até com passeatas em ruas e praças — pela aprovação de Emenda(s) Constitucional para alterar o julgado do STF nas ADC 43, 44 e 54. Vi um ex-senador do RS falando, efusivamente, que o parlamento deve salvar o país (leia-se: para ele, só com a alteração da Constituição é que poderemos livrar o país da impunidade proporcionada pelo STF). Nem vou falar de deputados boquirrotos que dizem barbaridades e depois pedem desculpas, prática, aliás, muito comum nesta terra patrimonialista. Faz o mal... e pede desculpas. Já propus até que se ampliasse o artigo do Código Penal que trata das exclusões de ilicitude: “o pedido de desculpas”.
    Um ponto em comum na maioria (falei maioria) das manifestações bizarras e reacionárias: elas vêm de gente (de)formada em... Direito. Sim, o Direito é locus privilegiado do reacionarismo. As faculdades estão formando reacionários e aprendizes de fascistas. As ofensas maiores que recebo por defender as garantias constitucionais vem de gente da área do... Direito. Claro. Não me admira que 57% da população que não toma vacina age desse modo porque se informa em células terroristas de WhatsApp. E, é claro, 25% das pessoas acreditam que Adão e Eva existiram.
    O terraplanismo jurídico venceu. Bom, para um país em que os alunos já não levam livros para aula e ficam conferindo o que o professor diz revirando a Wikipédia, o que mais pode nos surpreender? Ninguém se operaria com um médico que estudou por livros do tipo “cirurgia cardíaca mastigada”, pois não? Mas no Direito tudo pode. Resumos, resuminhos, mastigados. Viva o macete. Depois dá nisso que estamos vivendo. O sonho de parte da comunidade jurídica é fechar o STF e prender o réu já em primeiro grau. E suspender a garantia de habeas corpus. E permitir uso de prova ilícita de boa-fé (como, aliás, constou no pacote de Dallagnol). O que houve com a comunidade jurídica?
    Do jeito que vai a coisa, o símbolo da justiça — a balança — será substituída por um ovo, que é o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, que dá às palavras o sentido que quer.
    Por isso, coisa julgada é... aquilo que quero; cláusula pétrea é cláusula dúctil, fofinha... com a qual se pode dizer qualquer bobagem e fazer qualquer tipo de comparação hedionda. E assim por diante.

    terça-feira, 12 de novembro de 2019

    O Partido Republicano não é para homens honestos


    O Partido Republicano não é para homens honestos 

    Sua natureza o torna pouco simpático à democracia, e isso deveria nos assustar

  • Em 2010, uma explosão em uma mina de carvão operada pela Massey Energy matou 29 homens. Em 2015, Don Blankenship, antigo presidente-executivo da empresa, recebeu uma sentença de prisão por violar padrões de segurança na mineração. Em 2018, ele parece ter chance real de se tornar o candidato do Partido Republicano a uma cadeira no Senado pela Virgínia Ocidental.
    Blankenship é um dos quatro republicanos com históricos criminais que estão disputando vagas para a eleição deste ano, e diversos deles têm chance de obter a indicação de seu partido. E existe uma lista muito mais ampla de políticos republicanos que enfrentam acusações críveis quanto a grandes tropeços éticos e que ainda assim emergiram vitoriosos das primárias republicanas, de Roy Moore a, bem, Donald Trump.
    Com certeza o Partido Democrata também já abrigou muitos políticos corruptos. Mas em geral a revelação de sua corrupção pôs fim à carreira política desses líderes. O que é notável no cenário republicano atual é que pessoas que são obviamente corruptas, criminosas ou pior continuam a atrair forte apoio da base do partido. Moore foi derrotado por margem estreita em uma eleição especial para o Senado no Alabama, mas recebeu 91% dos votos das pessoas que se declaram republicanas.
    E Trump, embora impopular a um ponto sem precedentes para um presidente a esta altura de seu mandato, continua a receber apoio inabalável da base republicana. Alguns políticos republicanos admitiram abertamente que isso faz com que a bancada legislativa do partido hesite em responsabilizar Trump até mesmo pelos mais espetaculares delitos, entre os quais, é claro, o conluio com uma potência estrangeira.
    O que está acontecendo, quanto a isso? Não acho que seja por acidente que o Partido Republicano moderno contenha tantos trapaceiros, e que trapaceiros pareçam prosperar nas disputas políticas internas do partido. Pelo contrário. O sucesso de pessoas como Blankenship —ou Trump— foi consequência inevitável da estratégia política que os republicanos vêm seguindo há décadas. Pois a verdade simples é que, desde a era Reagan, os republicanos vêm basicamente trapaceando os eleitores norte-americanos.
    A agenda invariável e persistente do partido é a redistribuição de renda em benefício dos ricos: cortar impostos sobre os ricos e debilitar a rede de segurança social. Essa agenda é impopular: apenas uma pequena minoria dos norte-americanos deseja ver cortes de impostos para os ricos, e minoria ainda mais ínfima deseja cortes nos grandes programas sociais. Mas os republicanos venceram eleições, em parte por ocultar sua agenda política real mas principalmente ao se fazerem passar por defensores dos valores sociais tradicionais dos Estados Unidos —acima de todos a maior tradição norte-americana, o racismo.
    Essa dependência prolongada quanto a uma grande trapaça exerceu forte efeito seletivo tanto sobre a liderança quanto sobre a base do partido. Os políticos republicanos tendem desproporcionalmente a ser trapaceiros porque o jogo político do partido requer disposição de, e talento para, dizer uma coisa e fazer outra. E a base do partido consiste desproporcionalmente de eleitores facilmente enganáveis —aqueles que acreditam sem esforço em afirmações de que aquelas pessoas são o problema, e não percebem o quanto a agenda real dos republicanos os prejudica.
    O ponto é que Trump estava mais ou menos fadado a acontecer. O racismo grosseiro e a desonestidade gritante do presidente são apenas versões exageradas daquilo que seu partido vêm vendendo há décadas, e sua agenda política concreta —reduzir impostos sobre as empresas e os ricos, privar as famílias mais pobres de planos de saúde— é completamente ortodoxa.
    Mesmo seu protecionismo se afasta menos do que as pessoas imaginam das normas republicanas. George W. Bush aplicou tarifas sobre as importações de aço, e Reagan limitou as importações de automóveis japoneses. Cortar os impostos dos ricos é um princípio fundamental do Partido Republicano; livre comércio não.
    Assim que você percebe até que ponto essa grande trapaça determina as posições políticas republicanas, três implicações emergem.
    Primeiro, não haverá redenção vinda da dentro. Políticos éticos e com princípios sólidos não retomarão o controle do partido das mãos de Trump, porque não é isso que a base quer. O Partido Republicano moderno não é um país para homens honestos. Os trapaceiros continuarão a dominar até que, ou a menos que, o partido sofra grandes e repetidas derrotas e passe anos no ostracismo político.
    Segundo, o partido está de fato vulnerável, porque sempre existe o risco de que os eleitores percebam sua trapaça. Os ataques republicanos ao sistema de saúde, e não os muitos escândalos em que seus integrantes estão envolvidos, parecem ter sido o maior fator para as vitórias democratas em eleições especiais recentes. E em novembro essa reação pode dar aos democratas não só o controle de uma ou de ambas as casas do Congresso, mas o de muitos governos estaduais.
    E se isso não acontecer? Há uma terceira implicação, que deveria nos assustar: a natureza do Partido Republicano moderno o torna pouco simpático à democracia. Afinal, um político precisa se proteger contra eleitores que percebam o que ele está fazendo e busquem detê-lo via voto. Suprimir eleitores e manipular radicalmente os distritos eleitorais já são partes cruciais da estratégia republicana, mas o que vimos até agora pode ser só o começo.
    E se você acredita que os líderes republicamos hesitariam em manipular grosseiramente as eleições, não está prestando atenção às notícias. No passado existiam republicanos que se preocupavam com isso, mas eles deixaram o partido há muito tempo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    domingo, 10 de novembro de 2019

    Da ortotanásia à necropsia

    Da ortotanásia à necropsia

    por FRAGA

    Escolhi: jamais serei entubado. E já decidi: vou doar o corpo para estudos. É uma carcaça um pouco estropiada, certamente Rembrandt a recusaria como modelo. Mas, para a eterna carência de corpos nas faculdades de medicina, está de bom tamanho, e não me refiro à circunferência abdominal.
    No estado em que está, preenche os requisitos básicos para incontáveis e proveitosas lições de anatomia: contém, na íntegra, todas as peças originais de fábrica. A instituição que topar a doação levará, a custo zero, órgãos, glândulas, tecidos, ossos, cartilagens, sistemas completos. Não aceitarei devoluções, é lógico. Piadinhas junto à mesa, tudo bem – não creio em auto-estima após a morte.
    Embora não seja conservado em álcool, com certeza meu corpo se adaptará bem ao formol diluído a 10%. E apesar de flexível com a vida e com as idéias, prometo não resistir à rigidez cadavérica. Quer dizer, lá estarei, seja qual for a aula e quais forem os alunos, um organismo disponível, submisso, literalmente aberto à curiosidade científica.
    Antes que recusem, melhor realçar as qualidades físicas da oferta. Este corpo, de menos de 1,70m e acima dos 80kg, eu o reputo saudável, graças à relatividade: comparado com os mais idosos, estou relativamente moço; e só relativamente velho se comparado à gurizada.
    Ciente da importância dos cuidados com um corpo a ser doado, eu o mantenho, senão na sua plenitude fisiológica, pelo menos em atividade normal, com funções satisfatórias e regularmente higienizado. Tomo os remedinhos sempre que lembro, não corro mas ando bastante, nunca fumei, nada de insônia e gastrite e hemorróidas, o que atesta certa saúde mental. De fora, a impressão que dá é que estou vivo. Assim, em prol da ciência, chegado o momento – antes, não! – até à vitalidade renunciarei.
    Tirando a aparência (mais de seis décadas de moderado uso contínuo, até agora) e intervenções mínimas (uma ponte mamária), devo bastar para as lições de anatomia de alunos não tão exigentes. Ao saber que o corpo é de um ex-humorista, quem sabe tentem perscrutar esse mistério da natureza, que é o software do riso, exclusivo da espécie. Onde estará ele? Duvido que bisturis e pinças o encontrem no meu hardware fatiado. Não custa procurar, candidato a neurologista.
    Como fonte de saber, quem sabe eu renda alguma inédita investigação, contribua de alguma maneira para o currículo da moçada de avental branco. Sou cardíaco, hipertenso, diabético e ainda tenho hipotireoidismo, afora coisas que desconheça. Até lá, nunca se sabe, poderei adquirir outras porcarias, males que só os centenários acumulam. Sem querer me gabar já me gabando: este corpo aqui tem tudo para suprir pesquisas em várias especializações clínicas!
    Pensar nessa doação dá o que pensar. Nas dificuldades dos cursos e nos efeitos sobre os novos médicos. Em questões de consciência social – se quase ninguém se motiva a doar órgãos para salvar vidas, irão doar corpos para estudantes terem melhores condições de aprendizado?
    Em aspectos ritualísticos: cemitérios verticais são monumentos à morbidez e templos de hipocrisia; e cremação torra mais grana que matéria. (Na verdade, meu sonho de consumo post-mortem era virar uma peça daquele anatomista alemão, o Gunther von Hagens. Infelizmente o artista tem um pendor por corpos atléticos.)
    O mais convincente argumento interior para esta decisão, porém, é filosófico. Já que a minha sabedoria não foi aproveitada em vida por ninguém, sempre me restaria uma vaidade metafísica. Que adianto aos meus futuros e estudiosos dissecadores: aprendam comigo enquanto estou morto.

    #minhaarmaminhasregras

    #minhaarmaminhasregras

    Enquanto o mar quebrava na praia, os jagunços faziam o trabalho sujo

     
    Surpresa: os jagunços não ouvem João Gilberto. Surpresa: os jagunços não leram Montesquieu. Surpresa: os jagunços desprezam Fernanda Montenegro. Surpresa: os jagunços vestem camisas falsificadas do Palmeiras. Surpresa: os jagunços preferem SBT. Surpresa: os jagunços comem Miojo. Surpresa: os jagunços são fãs do Rambo. Surpresa: os jagunços moram no condomínio dos jagunços. Surpresa: os jagunços andam armados. Surpresa: os jagunços são jagunços.
    Paulo Guedes passou toda a campanha presidencial indo de Casa Grande a Casa Grande, de capitania hereditária a capitania hereditária, de engenho a engenho, dizendo: calma, não prestem atenção no que ele fala, sabe como é, coisa de jagunço, mas eu mando nele. A gente usa o bando dele pra acabar com o PT e depois de eleito ele vai calçar botina e parar de cuspir no chão e saberá se colocar no seu lugar, como os jagunços sempre souberam. Ele vai entender quem manda aqui. Vai respeitar a Globo e a Folha e a USP e o Inpe e o Leblon e os Jardins e até a Constituição. “Ele já é um outro animal”, disse o futuro ministro —e a Casa Grande acreditou.
    Acontece que o mundo mudou, parceiro. As mulheres se empoderaram. Os negros se empoderaram. Os LGBT se empoderaram. Por que os jagunços não se empoderariam? Jagunço também é filho de Deus. Não o Deus do Papa comunista, mas o Deus dos jagunços, do Edir Macedo, do Marco Feliciano, o Deus de Mateus, 10:34: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” e Mateus, 12:30: “Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha”. Aos amigos, gato-Net, aos inimigos, bala.
    Oh, mas o Brasil era um país tão terno! Era o país da democracia racial, o país sem guerras onde o mar, quando quebrava na praia, era bonito, era bonito. Mentira. Enquanto o mar quebrava na praia os jagunços faziam o trabalho sujo. Raposo Tavares e João Ramalho estavam metendo os pés descalços na lama muito além do Tratado de Tordesilhas para trazer índio pra moer no engenho. (Um país cujo RH fundou-se, literalmente, no “head-hunting”, iria terminar como?).
    Séculos depois, jagunços fardados foram exibir as cabeças decepadas dos jagunços desgarrados do bando do Lampião. Jagunços fardados derrotaram o bando do Antonio Conselheiro. E quando milhares da Casa Grande foram pro pau de arara, outro dia mesmo, os militares disseram que não sabiam de nada, desvios acontecem, coisa dos jagunços dos porões.
    Que injustiça: nenhum ditador, entre 1964 e 1984, foi à TV comemorar a tortura, os extermínios. Era diferente o ethos da nossa violência. Ela era escamoteada. O chicote comia solto lá longe enquanto, na sala, os bacharéis discutiam o espírito das leis ouvindo polca, Nara Leão ou iê-iê-iê.
    Chega de hipocrisia. Há quinhentos anos que, a mando dos donos do poder, os jagunços matam os Lampiões, os Conselheiros, os Chico Mendes, as Mareielles e protegem o asfalto da ameaça dos morros, seja em Belo Monte ou no Morumbi: agora eles querem crédito, querem reconhecimento.
    Por que não? Eles não são só filhos de Deus —veja que terrível ironia—, eles são filhos da Revolução Francesa, são fruto da democracia, a arma na cintura é seu black power, a placa quebrada da Marielle é sua rainbow flag, emoldurada na parede, e enquanto MC Reaça toca alto na Bastilha do Planalto, os bacharéis Paulo Guedes, Sergio Moro e Ricardo Salles seguem tentando tranquilizar a Casa Grande, sem perceber —ou sabendo muito bem?— que não passam de jagunços dos jagunços.

    Publicado em Antonio Prata - Folha de São Paulo |