«A
mensagem mediática do caso da Bolívia é clara: um golpe não é um golpe
se os resultados nos agradarem», Alan MaCleod, in FAIR (Fairness &
Accuracy in Reporting).
Quem seguir o mundo através dos media corporativos fica a saber que na
Bolívia não houve qualquer golpe de Estado no domingo, 10 de Novembro de
2019. Houve a renúncia do presidente, que partiu para o exílio na
sequência de protestos populares através dos quais se manifestou a
revolta contra a falsificação dos resultados das eleições realizadas em
20 de Outubro. Seguindo a letra da Constituição boliviana, a senadora
Jeanine Áñez, presidente do Senado, foi proclamada presidente da
República.
E assim se faz a história para os presentes e os vindouros. As coisas
não se passaram assim? Que importa, se estes são os factos que chegam
aos olhos e aos ouvidos de mais de 90% da população mundial?
Na Bolívia, porém, houve um golpe de Estado; e não um «golpe suave»,
como parecia estar na moda, mas uma mudança de regime inspirada na velha
tradição, com terrorismo nas ruas, uma venenosa campanha de mentiras e
os clássicos pronunciamentos policiais e militares impedindo o
funcionamento das instituições eleitas com toda a legitimidade. O
presidente e o vice-presidente eleitos, Evo Morales e García Linera, do
Movimento para o Socialismo (MAS), que obtiveram mais de 47% dos votos
nas eleições de 20 de Outubro, foram «convidados» a renunciar pelo chefe
das Forças Armadas ao compasso de uma campanha organizada de terror
contra titulares de órgãos de soberania e suas famílias, bens e
propriedades, incluindo a residência pessoal do chefe de Estado.
Na vanguarda do golpismo emergiram duas figuras: o antigo presidente
Carlos Mesa, um dos favoritos de Washington, segundo classificado nas
eleições com mais de dez pontos percentuais de atraso do vencedor, Evo
Morales; e Luis Fernando Camacho, conhecido por El Macho, chefe de
milícias fascistas originárias da região de Santa Cruz, oriundo de uma
poderosa família da oligarquia colonial e racista, indivíduo que, à
frente de um gang de evangélicos pentecostais, fez questão de
teatralizar a «reentrada da Bíblia» no palácio presidencial de Los
Quemados, entretanto assaltado.
Embora sejam conhecidas na Bolívia as actividades de longa data
desenvolvidas pelo NED (New Endowment for Democracy), entidade dirigida
conjuntamente pelo Departamento de Estado norte-americano e pela CIA
para incrementar «a democracia», a superestrutura golpista foi a
Organização de Estados Americanos (OEA), instrumento financiado
maioritariamente pelos Estados Unidos e que presta serviços a Washington
em todo o «quintal das traseiras». É certo que agentes norte-americanos
estiveram directamente envolvidos na trama, sob cobertura da embaixada
em La Paz, mas foi a OEA quem deu substância às acusações de «fraude
eleitoral» que começaram a ser brandidas por Carlos Mesa, El Macho e
outras figuras ainda muito antes do acto eleitoral.
As teses golpistas de Almagro
Luis Almagro, secretário da OEA – que recentemente estivera em
evidência em todas as manobras golpistas relacionadas com Juan Guaidó e a
Venezuela – até reconhece que «sim, houve golpe de Estado na Bolívia:
no momento em que pretenderam roubar as eleições de 20 de Outubro e
perpetuar Evo Morales no poder», tweetou à moda de Trump. Portanto,
houve golpe mas foi dado por Morales; a OEA terá, neste caso,
patrocinado o contra-golpe. É assim o comportamento do responsável
executivo de uma organização que integra a constelação da chamada
«comunidade internacional».
Sobre a acusação de «perpetuação no poder» cabe dizer que Morales
decidiu candidatar-se a um terceiro mandato na sequência de um parecer
do Tribunal Constitucional segundo o qual não havia objecções a
levantar.
Quanto ao «roubo de eleições», a própria comissão da OEA encarregada de
observar as votações parece contradizer o secretário da organização ao
afirmar que, «embora sem fraudes, o processo foi impreciso». Esta foi a
formulação ambígua encontrada para, ao-fim-e-ao-cabo, não reconhecer as
eleições e ditar a sua repetição, o que Morales aceitou. Nessa altura,
porém, os golpistas tinham dado passos em frente, rejeitando uma
repetição em que Morales e o seu vice, Linera, concorressem. Deste modo,
de uma penada, quase metade do universo eleitoral transformou-se em
lixo. Daí aos levantamentos policiais e ao pronunciamento das Forças
Armadas foi um ápice.
A intenção de que a OEA fosse o instrumento de um golpe anunciado foi
revelada, inclusivamente, pela própria composição da comissão da
organização encarregada de «observar» as eleições. Embora o assunto
esteja envolvido num secretismo revelador, no dia 2 de Novembro
demitiu-se o chefe da equipa designada, o mexicano Arturo Espinosa,
confrontado com o facto de ter escrito artigos contra Evo Morales antes
de ser designado para o cargo. Que, no fundo, terá desempenhado a
contento: a demissão não apaga o que ficou feito e tão-pouco restaura a
dignidade a quem não a tem.
«Não há provas de fraudes»
Quem acompanhou pormenorizadamente as eleições foi uma equipa de um
think tank sediado em Washington, o Center for Economic and Policy
Research (CEPR, Centro de Estudos Económicos e Políticos), que apurou o
seguinte: «Nem a OEA nem qualquer outra entidade demonstraram que houve
irregularidades generalizadas ou sistematizadas nas eleições de 20 de
Outubro de 2019.» O CEPR considera que os resultados finais, que
garantiram a vitória de Morales na primeira volta, «são consistentes»
com as contagens rápidas e parciais que foram sendo anunciadas durante o
processo. De acordo com a mesma fonte, não há qualquer surpresa com o
reforço da votação do vencedor nas últimas fases da contagem, uma vez
que se tratava de resultados oriundos de zonas rurais e afastadas dos
grandes centros, principalmente indígenas, importantes focos de apoio
social a Evo Morales, ele próprio um indígena – facto que os sectores
coloniais e oligárquicos sempre foram incapazes de aceitar, amarrados ao
seu racismo atávico.
Denuncia ainda o CEPR: «Dúvidas infundadas lançadas sobre a contagem dos
votos, sem qualquer prova a apoiá-las, tiveram influência significativa
na cobertura dos media e, portanto, na opinião pública.»
A usurpadora
E de repente surge em cena a «presidente» Jeanine Áñez. Explicam os
meios golpistas que também não existe sombra de golpe neste processo:
segundo a Constituição boliviana, a presidente do Senado assume a
presidência da República no caso de impedimento do presidente e do
vice-presidente.
A realidade também nada tem a ver com esta ficção.
Áñez não era presidente do Senado eleito em 20 de Outubro. Militante de direita, era apenas uma das vice-presidentes da Câmara.
Acontece que os eleitos do MAS que assumiram as posições cimeiras do
Senado acabaram por renunciar porque foram vítimas de violência e
tiveram familiares sequestrados por milícias terroristas.
Áñez autoproclamou-se presidente do Senado nestas condições e em sessão
em que a câmara não tinha quórum regimental para funcionar.
Depois de se autoproclamar presidente do Senado, Jeanine Añez
autoproclamou-se presidente da República. A Bolívia tem assim um émulo
de Guaidó na Venezuela, neste caso do género feminino para acertar
quotas entre os usurpadores latino-americanos.
A Bolívia deixada por Morales
Evo Morales foi forçado a deixar a Bolívia ao cabo de quase 14 anos
na presidência. Mais do que o próprio possa afirmar agora no seu exílio
mexicano, os indicadores falam por si: o país progrediu nesse período
mais do que nos últimos 500 anos dominados pelo colonialismo espanhol e
pela oligarquia que o continuou.
Os governos de Morales devolveram soberania à Bolívia, transformaram a
economia colocando-a ao serviço das populações, estabilizaram um
crescimento económico acima dos 4%, multiplicaram por oito o PIB da
nação – de cinco mil milhões de dólares em 2006 para 40 800 milhões de
dólares em 2018 –, aumentaram o PIB per capita de 900 para quatro mil
dólares, deram voz às mulheres e aos povos indígenas, desde sempre
párias da sociedade; e, não menos importante, reduziram a pobreza
extrema de 80% da população para menos de 15% por cento.
Esta a nova Bolívia que a oligarquia tradicional e os seus mentores
imperialistas herdam. O golpe é o sinal de que não estavam dispostos a
esperar pelo fim de mais um mandato para combater este mau exemplo
humanista.
O golpe do lítio
Além disso, olhando a economia e avaliando a importância de alguns
dos principais recursos naturais bolivianos, há motivos para concluir
que existem razões económicas pressionantes que os golpistas – e
sobretudo os seus mandantes – consideram incompatíveis com mais
delongas.
Podem citar-se os interesses movidos pela necessidade de pôr fim ao
controlo do Estado sobre a generalidade dos produtos mineiros e os
hidrocarbonetos.
Entre todas as motivações emerge, porém, as que estão relacionadas com o
lítio, o metal indispensável nas baterias que alimentam as novas
tecnologias, especialmente agora com o boom dos veículos movidos a
energia eléctrica.
Cálculos comuns predizem que as necessidades mundiais de lítio deverão duplicar até 2025, que é já amanhã.
E acontece que, embora haja fontes contraditórias, a Bolívia tem
reservas desse metal que podem transformar o país no primeiro produtor
mundial de uma matéria com tão elevado peso estratégico. Qualificar os
acontecimentos em curso como o «golpe do lítio» pode não ser desadequado
de todo.
As administrações de Morales defenderam o lítio, e todos os outros
recursos naturais, como bens do povo boliviano e não das grandes
corporações transnacionais; uma defesa extensiva à «preservação da Mãe
Terra», preocupação que não tem a ver com modismos mas com as relações
genuínas e intrínsecas dos povos indígenas com a natureza.
Por isso, no dia 4 de Novembro, isto é, duas semanas depois das
eleições, Evo Morales considerou procedentes os protestos de comunidades
indígenas da região de Potosí e cancelou o contrato de exploração de
lítio celebrado com a empresa alemã ACI Systems.
Não é de estranhar que este acontecimento tenha alimentado ainda mais o
golpismo num ambiente em que – como se constatou – nos 14 anos de gestão
do Estado as administrações Morales não sintonizaram as forças
militares e de segurança, herdadas dos regimes oligárquicos, com as
transformações políticas e económicas promovidas no país.
Onde entram empresas chinesas
A imensa reserva de lítio que desequilibra a balança mundial do
produto a favor da Bolívia são os vastíssimos campos de sal do Salar de
Uyuni, situados a 3600 metros de altitude, em condições que exigem
investimento e metodologias especiais para a exploração. Minas de sal em
altitudes onde a precipitação é abundante não podem ser aproveitadas
através da evaporação solar, tal como acontece em outros grandes
produtores mundiais como o Chile e a Argentina.
Acresce que os governos de Morales puseram como condições de exploração
do lítio por investidores estrangeiros a celebração de acordos de
partilha de investimentos e lucros com empresas estatais bolivianas – o
que as grandes transnacionais, designadamente a norte-americana Tesla e a
Canadiana Pure Energy Metals, entre outras, não aceitaram.
O mesmo não aconteceu com empresas chinesas que já estão envolvidas na
exploração do lítio boliviano. Mais uma situação susceptível de
incomodar os proprietários do «quintal das traseiras».
Além disso, o que está a acontecer no Chile – que os media
norte-americanos qualificam como «tumultos» – e os recentes resultados
nas eleições argentinas tornaram, de um momento para o outro, dois dos
principais mercados de lítio eventualmente menos prestimosos perante a
ganância das transnacionais, o que também poderá ter aconselhado maior
rapidez na mudança forçada de governo em La Paz.
Nestas conjecturas existem, é certo, elementos especulativos.
O que já não pode considerar-se especulação é o facto de as acções da
Tesla, o fabricante de automóveis eléctricos, terem subido
vertiginosamente ao som dos tambores do golpe na Bolívia.
Silêncios que dizem muito
Admite-se como provável que o presidente da República Portuguesa, o
primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros tenham canais
próprios de informação além dos media corporativos, incluindo os que o
são por afinidade regimental, como a televisão pública.
Por isso, deve estranhar-se que personalidades habitualmente tão
loquazes como o ministro Santos Silva nada tenham dito ainda sobre o que
se passa na Bolívia. Foram lépidos a reconhecer o golpismo de Guaidó na
Venezuela mas parece faltar-lhes agora o ânimo para saudarem a
usurpadora Jeanine Áñez em La Paz.
Precipitação na anterior aposta num cavalo erradíssimo sugere alguma contenção agora?
Aguardam que Washington e Bruxelas digam, sem rodeios, o que lhes vai
nas almas? Donald Trump já sentenciou que estamos perante um passo
acertado «no caminho da democracia».
Não poderiam Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e/ou Santos Silva ao
menos invocar o princípio de que a Constituição Portuguesa não tolera
golpes de Estado? Ou será que ainda têm dúvidas de que foi um golpe de
Estado?
Não ter voz perante atrocidades deste tipo contra a democracia é impróprio de um país que diz prezar a sua soberania.
Fonte:
https://www.abrilabril.pt/internacional/golpe-escondido-com-tudo-de-fora