#minhaarmaminhasregras
Enquanto o mar quebrava na praia, os jagunços faziam o trabalho sujo
Surpresa: os jagunços não ouvem João Gilberto. Surpresa: os jagunços não leram Montesquieu. Surpresa: os jagunços desprezam Fernanda Montenegro.
Surpresa: os jagunços vestem camisas falsificadas do Palmeiras.
Surpresa: os jagunços preferem SBT. Surpresa: os jagunços comem Miojo.
Surpresa: os jagunços são fãs do Rambo. Surpresa: os jagunços moram no
condomínio dos jagunços. Surpresa: os jagunços andam armados. Surpresa:
os jagunços são jagunços.
Paulo Guedes passou toda a campanha
presidencial indo de Casa Grande a Casa Grande, de capitania hereditária
a capitania hereditária, de engenho a engenho, dizendo: calma, não
prestem atenção no que ele fala, sabe como é, coisa de jagunço, mas eu
mando nele. A gente usa o bando dele pra acabar com o PT e depois de
eleito ele vai calçar botina e parar de cuspir no chão e saberá se
colocar no seu lugar, como os jagunços sempre souberam. Ele vai entender
quem manda aqui. Vai respeitar a Globo e a Folha e a USP e o Inpe e o
Leblon e os Jardins e até a Constituição. “Ele já é um outro animal”,
disse o futuro ministro —e a Casa Grande acreditou.
Acontece que o mundo mudou, parceiro. As mulheres se empoderaram.
Os negros se empoderaram. Os LGBT se empoderaram. Por que os jagunços
não se empoderariam? Jagunço também é filho de Deus. Não o Deus do Papa
comunista, mas o Deus dos jagunços, do Edir Macedo, do Marco Feliciano, o
Deus de Mateus, 10:34: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim
trazer a paz, mas a espada” e Mateus, 12:30: “Quem não é por mim é
contra mim; e quem comigo não ajunta espalha”. Aos amigos, gato-Net, aos
inimigos, bala.
Oh, mas o Brasil era um país tão terno!
Era o país da democracia racial, o país sem guerras onde o mar, quando
quebrava na praia, era bonito, era bonito. Mentira. Enquanto o mar
quebrava na praia os jagunços faziam o trabalho sujo. Raposo Tavares e
João Ramalho estavam metendo os pés descalços na lama muito além do
Tratado de Tordesilhas para trazer índio pra moer no engenho. (Um país
cujo RH fundou-se, literalmente, no “head-hunting”, iria terminar
como?).
Séculos depois, jagunços fardados foram
exibir as cabeças decepadas dos jagunços desgarrados do bando do
Lampião. Jagunços fardados derrotaram o bando do Antonio Conselheiro. E
quando milhares da Casa Grande foram pro pau de arara, outro dia mesmo,
os militares disseram que não sabiam de nada, desvios acontecem, coisa
dos jagunços dos porões.
Que injustiça: nenhum ditador, entre
1964 e 1984, foi à TV comemorar a tortura, os extermínios. Era diferente
o ethos da nossa violência. Ela era escamoteada. O chicote comia solto
lá longe enquanto, na sala, os bacharéis discutiam o espírito das leis
ouvindo polca, Nara Leão ou iê-iê-iê.
Chega de hipocrisia. Há quinhentos anos
que, a mando dos donos do poder, os jagunços matam os Lampiões, os
Conselheiros, os Chico Mendes, as Mareielles e protegem o asfalto da
ameaça dos morros, seja em Belo Monte ou no Morumbi: agora eles querem
crédito, querem reconhecimento.
Por
que não? Eles não são só filhos de Deus —veja que terrível ironia—,
eles são filhos da Revolução Francesa, são fruto da democracia, a arma
na cintura é seu black power, a placa quebrada da Marielle é sua rainbow
flag, emoldurada na parede, e enquanto MC Reaça toca alto na Bastilha
do Planalto, os bacharéis Paulo Guedes, Sergio Moro e Ricardo Salles
seguem tentando tranquilizar a Casa Grande, sem perceber —ou sabendo
muito bem?— que não passam de jagunços dos jagunços.
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