Discussão do Supremo sobre caso Coaf joga luz em lacuna legislativa
Decisão será sobre relatórios que especifiquem dados bancários detalhados sem autorização da Justiça
Luís Greco
Alaor Leite
Berlim
O STF decidirá em breve, com repercussão geral,
sobre a possibilidade de órgãos de fiscalização, entre eles o antigo
Coaf, compartilharem informações financeiras de cidadãos com o
Ministério Público.
No centro do debate, tem-se a exigência de ordem judicial prévia para que o compartilhamento possa ocorrer. A questão, contudo, é mais ampla e apresenta outras dimensões pouco lembradas no debate atual, mas que podem iluminar o problema.
No fundo, trata-se de impor limites ao poder informacional do Estado.
No centro do debate, tem-se a exigência de ordem judicial prévia para que o compartilhamento possa ocorrer. A questão, contudo, é mais ampla e apresenta outras dimensões pouco lembradas no debate atual, mas que podem iluminar o problema.
No fundo, trata-se de impor limites ao poder informacional do Estado.
Uma primeira dimensão se refere à fonte delimitadora desse
poder informacional. Em democracias, essa é tarefa que incumbe
à própria população, através de seus representantes, isto é, o
Parlamento.
As atribuições institucionais que atinjam direitos individuais não
podem ser determinadas pelas próprias instituições e por suas regras
internas (resoluções, portarias).
Em outras palavras, teria de existir lei formal prevendo os pressupostos materiais para o compartilhamento, sobretudo em quais hipóteses, quais os dados e com que finalidade podem eles ser colhidos, usados, compartilhados e armazenados.
Também os aspectos procedimentais teriam de estar regulados: por quanto tempo devem ficar armazenados os dados? Que instituições, públicas ou privadas, podem requisitá-los? Deve ocorrer alguma notificação aos afetados? Os dados deverão ser apagados?
A autorização judicial deveria avaliar o atendimento a esses critérios. Não se pode reduzir o problema a uma questão de competência, porque não se trata apenas de reserva de jurisdição, mas de reserva de lei.
Essa lei, contudo, não existe —e a reserva de jurisdição, sem lei, é órfã. Dessa notória lacuna legislativa decorre uma disputa por poderes informacionais.
Outra dimensão esquecida tem natureza institucional. A atividade
estatal de coleta, uso, compartilhamento e armazenamento de dados dos
cidadãos serve a finalidades importantes, como a prevenção à lavagem de
dinheiro.
Porém, se saber significa poder, e não pode haver poder ilimitado, passa a ser relevante definir as atribuições dos órgãos vocacionados à produção geral de informações –órgãos de inteligência– e as atribuições que competem ao órgão que possui o poder de agir em face de pessoas concretas suspeitas de prática de ilícito –os órgãos de persecução penal.
Num Estado cujo poder encontra limites, ou não se pode saber tudo, ou quem tudo sabe terá as mãos amarradas para que não se transforme em alguém que tudo pode.
Daí se derivou em alguns países europeus, em especial na Alemanha, um imperativo institucional no sentido de uma separação informacional de poderes: o direito tem de criar barreiras e cautelas ao fluxo de informações dentro do Estado, para impedir o surgimento de um poder ilimitado.
O Coaf, rebatizado de UIF (Unidade de Inteligência Financeira), por exemplo, que tem amplo e generalizado acesso a informações sigilosas, não deve poder tomar medidas concretas, de natureza processual penal, contra uma pessoa específica.
O Ministério Público, que tem a seu dispor essas medidas, com intermediação do Poder Judiciário, não deve, assim, saber o mesmo que sabe o antigo Coaf. Seu acesso a informações não pode ser amplo e generalizado, mas sempre pontual e individualizado.
É nesse contexto que o STF terá de decidir a questão. Deverá o STF, para o futuro, contentar-se em amarrar as mãos dos órgãos estatais até que Congresso Nacional regule a questão em todos os seus aspectos? Não parece ser o caso.
Convém recordar o exemplo alemão. O Tribunal Constitucional Federal, diante do mesmo dilema, equacionou-o por meio da figura do bônus de transição: declara-se a inconstitucionalidade, mas confere-se ao legislador um prazo de tolerância, dentro do qual ele deverá remediá-la.
E quanto ao passado? Parece difícil afirmar que tudo o que foi feito deve ser anulado. Há incertezas, por exemplo, quanto ao conteúdo do que deve constar dos relatórios de inteligência financeira (os RIFs) transmitidos às autoridades persecutórias —muitas vezes com tamanho detalhamento que perdem sua natureza.
Algumas desordens parecem toleráveis e atribuíveis à omissão legislativa. O limite talvez esteja ultrapassado quando se verifica um ambiente para que órgãos de persecução passem a circunvir ou burlar as poucas limitações eventualmente existentes à obtenção e à utilização de dados.
Concretamente: quando o órgão de persecução instigue órgão de inteligência a produzir dados especificamente relacionados a pessoas concretas, invertendo a cronologia informacional e gerando RIFs que mais se assemelham a minutas de acusações criminais, contornado exigências legais já existentes quanto à quebra de sigilo de dados.
As atribuições repressivas do Ministério Público pressupõem, cronologicamente, que tenha chegado a seu conhecimento a chamada notícia de um delito. Não há convalidação possível em face desse tipo de burla.
Como se vê, a questão é muito maior do que a mera exigência de autorização judicial. Não se trata de disputa informacional entre órgãos estatais ou de mera questão de competência ou atribuição, mas de limitação legal do poder informacional do Estado.
Enxergar essas questões e colocá-las na ordem do dia do Legislativo e da sociedade brasileira como um todo pode ser a maior contribuição que o país pode esperar da decisão do STF.
O presidente do Supremo suspendeu investigações criminais que envolvam relatórios com dados bancários detalhados sem que tenha havido autorização da Justiça --ainda que o inquérito tenha outros elementos que o embasem. A decisão atinge inquéritos de todas as instâncias baseados em informações de órgãos de controle, como o antigo Coaf (hoje UIF), Receita Federal e Banco Central. É esse o tema do julgamento desta quarta (20)
O que seriam "dados detalhados"?
Informações que vão além da identificação dos titulares das transações suspeitas e do valor movimentado
O que isso tem a ver com Flávio Bolsonaro?
A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador e paralisou a investigação do MP-RJ que envolve Flávio e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A apuração começou com o envio à Promotoria de um relatório do Coaf apontando movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz
O que está sendo investigado sobre Flávio?
O MP-RJ apura se houve "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no RJ. Nesse esquema, servidores devolvem parte do salário aos deputados. Há suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa
Em outras palavras, teria de existir lei formal prevendo os pressupostos materiais para o compartilhamento, sobretudo em quais hipóteses, quais os dados e com que finalidade podem eles ser colhidos, usados, compartilhados e armazenados.
Também os aspectos procedimentais teriam de estar regulados: por quanto tempo devem ficar armazenados os dados? Que instituições, públicas ou privadas, podem requisitá-los? Deve ocorrer alguma notificação aos afetados? Os dados deverão ser apagados?
A autorização judicial deveria avaliar o atendimento a esses critérios. Não se pode reduzir o problema a uma questão de competência, porque não se trata apenas de reserva de jurisdição, mas de reserva de lei.
Essa lei, contudo, não existe —e a reserva de jurisdição, sem lei, é órfã. Dessa notória lacuna legislativa decorre uma disputa por poderes informacionais.
Porém, se saber significa poder, e não pode haver poder ilimitado, passa a ser relevante definir as atribuições dos órgãos vocacionados à produção geral de informações –órgãos de inteligência– e as atribuições que competem ao órgão que possui o poder de agir em face de pessoas concretas suspeitas de prática de ilícito –os órgãos de persecução penal.
Num Estado cujo poder encontra limites, ou não se pode saber tudo, ou quem tudo sabe terá as mãos amarradas para que não se transforme em alguém que tudo pode.
Daí se derivou em alguns países europeus, em especial na Alemanha, um imperativo institucional no sentido de uma separação informacional de poderes: o direito tem de criar barreiras e cautelas ao fluxo de informações dentro do Estado, para impedir o surgimento de um poder ilimitado.
O Coaf, rebatizado de UIF (Unidade de Inteligência Financeira), por exemplo, que tem amplo e generalizado acesso a informações sigilosas, não deve poder tomar medidas concretas, de natureza processual penal, contra uma pessoa específica.
O Ministério Público, que tem a seu dispor essas medidas, com intermediação do Poder Judiciário, não deve, assim, saber o mesmo que sabe o antigo Coaf. Seu acesso a informações não pode ser amplo e generalizado, mas sempre pontual e individualizado.
É nesse contexto que o STF terá de decidir a questão. Deverá o STF, para o futuro, contentar-se em amarrar as mãos dos órgãos estatais até que Congresso Nacional regule a questão em todos os seus aspectos? Não parece ser o caso.
Convém recordar o exemplo alemão. O Tribunal Constitucional Federal, diante do mesmo dilema, equacionou-o por meio da figura do bônus de transição: declara-se a inconstitucionalidade, mas confere-se ao legislador um prazo de tolerância, dentro do qual ele deverá remediá-la.
E quanto ao passado? Parece difícil afirmar que tudo o que foi feito deve ser anulado. Há incertezas, por exemplo, quanto ao conteúdo do que deve constar dos relatórios de inteligência financeira (os RIFs) transmitidos às autoridades persecutórias —muitas vezes com tamanho detalhamento que perdem sua natureza.
Algumas desordens parecem toleráveis e atribuíveis à omissão legislativa. O limite talvez esteja ultrapassado quando se verifica um ambiente para que órgãos de persecução passem a circunvir ou burlar as poucas limitações eventualmente existentes à obtenção e à utilização de dados.
Concretamente: quando o órgão de persecução instigue órgão de inteligência a produzir dados especificamente relacionados a pessoas concretas, invertendo a cronologia informacional e gerando RIFs que mais se assemelham a minutas de acusações criminais, contornado exigências legais já existentes quanto à quebra de sigilo de dados.
As atribuições repressivas do Ministério Público pressupõem, cronologicamente, que tenha chegado a seu conhecimento a chamada notícia de um delito. Não há convalidação possível em face desse tipo de burla.
Como se vê, a questão é muito maior do que a mera exigência de autorização judicial. Não se trata de disputa informacional entre órgãos estatais ou de mera questão de competência ou atribuição, mas de limitação legal do poder informacional do Estado.
Enxergar essas questões e colocá-las na ordem do dia do Legislativo e da sociedade brasileira como um todo pode ser a maior contribuição que o país pode esperar da decisão do STF.
ENTENDA A DECISÃO DE TOFFOLI SOBRE O COAF
O que Toffoli decidiu em julho?O presidente do Supremo suspendeu investigações criminais que envolvam relatórios com dados bancários detalhados sem que tenha havido autorização da Justiça --ainda que o inquérito tenha outros elementos que o embasem. A decisão atinge inquéritos de todas as instâncias baseados em informações de órgãos de controle, como o antigo Coaf (hoje UIF), Receita Federal e Banco Central. É esse o tema do julgamento desta quarta (20)
O que seriam "dados detalhados"?
Informações que vão além da identificação dos titulares das transações suspeitas e do valor movimentado
O que isso tem a ver com Flávio Bolsonaro?
A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador e paralisou a investigação do MP-RJ que envolve Flávio e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. A apuração começou com o envio à Promotoria de um relatório do Coaf apontando movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão na conta de Queiroz
O que está sendo investigado sobre Flávio?
O MP-RJ apura se houve "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no RJ. Nesse esquema, servidores devolvem parte do salário aos deputados. Há suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa
Luís Greco é professor catedrático da
Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, e Alaor Leite é docente
assistente na Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, e doutor pela
Universidade de Munique, Alemanha
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