domingo, 9 de outubro de 2011

Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito

Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito

Não importa quem me julgue, basta que garanta meus direitos de acusado!


Don Quixote - Picasso
Não importa quem me julgue, basta que garanta meus direitos de acusado!


Gerivaldo Neiva *

Em uma dessas tantas palestras que faço por aí, falava sobre as garantias fundamentais e, ao final, um jovem de muito boa aparência e discurso bem articulado me questionou se a Constituição e o ECA não protegiam demais aos “bandidos” e adolescentes infratores, pois com tantas garantias assim estava muito difícil para a polícia prender alguém. E continuou: ora, se um adolescente com 17 anos me aponta uma arma e rouba meu celular ele não pode sequer ser conduzido em um viatura. Isto não está errado, professor?
A conclusão do discurso foi uma repetição do que a mídia nos incute diariamente: bandido bom é bandido morto, (ouvi de um adolescente, certa vez, que bandido morto deveria ser enterrado em pé para não ocupar espaço de outros defuntos), que a lei protegia bandidos, que a polícia prendia e justiça soltava, que adolescente infrator era cheio de direitos etc.
Meu discurso, respondendo ao estudante, não podia ser diferente. Olhe, meu jovem, garantias constitucionais não servem apenas para “bandidos” ou adolescentes infratores, mas para todos as pessoas, inclusive para você, para mim, e para todas as pessoas que estão aqui nesta plateia. Disse mais: olhe, meu jovem, nós devemos repensar certos conceitos de que a lei serve para uns e não para outros. A lei deve servir para todos, sem distinção de qualquer natureza, conforme está escrito na Constituição. Pense, por exemplo, que você pode ser abordado pela polícia na saída deste evento e acusado de crime que não praticou. Nesta hora, é importante que você tenha garantido seus direitos de acusado e, então, vai dar o maior valor ao constituinte que escreveu esses artigos que você está me questionando agora. De outro lado, quando a autoridade, seja um policial ou juiz, atua sem limites constitucionais aí vira um salve-se quem puder, entendeu? Aí, basta o cara não gostar de sua cara que ele pode mandar te prender. Então, é aquela história de primeiro prender porque é bandido, depois prender porque não gosta da cara, depois prender porque tá falando mal e por aí vai. Lembra daquela outra história:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim
e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão
e não dizemos nada.
Até que um dia
o mais frágil dele
entra sozinho em nossa casa
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta
e já não podemos dizer nada. [1]

... e por aí vai. Esta é a chave da questão, entendeu?
Evidente que não sei se convenci o rapaz, mas também não tinha outros argumentos. Seguiram-se outras perguntas e daí veio uma que me desconcertou e precisei medir as palavras para responder. Uma menina de óculos com lentes grossas e com cara de CDF me perguntou sem rodeios: doutor, o senhor não tem medo?
Nesta hora me senti como um advogado na primeira audiência de instrução e julgamento quando o juiz lhe concede a palavra para alegações finais. Respirei fundo, voltei à mesa, enchi o copo de água bem devagar enquanto pensava na resposta. Em segundos, lembrei, por exemplo, de um amigo professor que me revelou um truque seu quando é surpreendido por uma pergunta que não estava no script da aula. Simples: ele sempre respondia perguntando ao perguntador o que ele mesmo pensava sobre o assunto. Assim, poderia começar respondendo àquela menina da seguinte forma: ‘mas o que é o medo’ ou ‘você tem medo de quê’? Lembrei também do lema do Carlos Marighella: ‘não tive tempo para ter medo’. Ou talvez a saída mais medrosa: ‘esta é uma pergunta que não gostaria de responder’.
Resolvi enfrentar a pergunta e saí meio pela tangente: não tenho, tendo! Mas o que significa não ter medo e tendo ao mesmo tempo? Primeiro, vamos deixar claro do que não tenho medo: do escuro, de viver, de morrer, dos mortos, dos vivos, de dialogar com as pessoas, de decidir, de julgar, de sentenciar, de trabalhar, de dizer o que penso, de escrever bobagens e publicar na Internet, de enfrentar um livro de 500 páginas, de cara feia, de ameaças, do desconhecido, de experimentar o novo, de desafios, de avião, de novidades tecnológicas e coisas parecidas.
Depois de todos esses não-medos, do que poderia ter medo, então? Sabe de quê? Tenho medo do poder despótico, do arbítrio, do autoritarismo, das ditaduras, da violência do estado autoritário, de não poder dizer o que penso, de não poder me reunir, de não ser julgado com regras claras, da mordaça, das masmorras, da tortura, da autoridade sem controle, de ser preso sem poder me defender, de ser afastado de minhas funções por causa de minhas ideias, de ver minha intimidade e minha casa violadas pelo Estado... disso tudo tenho medo.
Então, minha cara amiguinha, veja que meus não-medos são absolutamente normais e corriqueiros. De outro lado, meus medos dizem respeito à liberdade e às garantias de pensar e falar o que quiser, sabendo que terei regras claras e prévias quando, em hipótese, for julgado por isso.
Por tudo isso (penso que agora vocês vão me entender melhor), é que insisto tanto nesta história da importância das garantias constitucionais e da resistência constitucional. Ora, se estamos vivendo dias difíceis mesmo tendo uma Constituição pouco efetivada, pior, mas muito pior mesmo, seria sem ela.

* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), em 02.10.2011


[1] Embora seja creditado por muitos como sendo do poeta russo Maiakovski, este poema – No Caminho com Maiakovski - é do brasileiro Eduardo Alves da Costa.

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