''Quem não estiver confuso está mal informado''. Entrevista com Antonio Delfim Netto | |
Houve um tempo no Brasil em que o cargo de ministro da Fazenda era quase tão importante quanto o de presidente da República, dada a autonomia concedida ao seu ocupante, cuja imagem frequentemente se confundia com a da própria política econômica adotada pelo país. Conhecido pela fina ironia, humor ácido e frases de impacto, Antonio Delfim Netto talvez seja um dos maiores expoentes dessa época. Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, ele foi o artífice do polêmico "milagre econômico", período em que o PIB cresceu a taxas superiores a 10% ao ano. Foi também ministro da Agricultura e do Planejamento, embaixador do Brasil na França e, por cinco mandatos consecutivos, deputado federal por São Paulo. Nesta entrevista, Delfim traça um panorama abrangente da economia mundial e mostra que, aos 83 anos, revisitou conceitos, mas manteve intacta a verve que sempre o distinguiu: "Quem não estiver confuso está mal informado". A entrevista é de Cláudio Accioli e publicada pela revista Conjuntura Econômica - FGV, vol. 65, no, 9, setembro de 2011. Eis a entrevista. Como o senhor analisa as transformações que vêm ocorrendo na economia mundial? Em primeiro lugar, é preciso dizer que quem não estiver confuso está mal informado. Todos nós temos hoje uma dificuldade de entender como foi possível chegar a esse ponto. Seguramente, o que vai sair do outro lado é um mundo diferente, mas que continuará no caminho que o homem vem seguindo desde que saiu da África, há 150 mil anos, de procurar um sistema de organização social que lhe assegure três condições: uma certa eficácia produtiva; independência e autonomia cada vez maiores; e uma relativa igualdade. Os dois primeiros objetivos foram construídos ao longo do tempo, num processo de seleção quase biológica. A esses elementos, o Estado tentou acrescentar a igualdade, arbitrando um processo que vem se desenvolvendo principalmente após a Revolução Industrial, com a adoção de políticas sociais. Mas trata-se de um processo altamente competitivo, uma corrida que, para ser honesta, deve permitir que todos se alinhem no mesmo ponto de partida, não importa se você nasceu na suíte presidencial do Waldorf Astoria ou foi fabricado na Lapa. É um processo civilizatório, de justiça dentro do capitalismo. E avançamos muito nessa direção. Hoje, eu vejo críticas de que a atual crise é consequência do welfare state. Coisa nenhuma. Essa crise que está aí resulta de governos incompetentes, míopes, e de uma disfunção do sistema financeiro, que em vez de servir ao setor real acaba servindo-se dele. Os derivativos podem estimular uma melhoria de funcionamento do sistema, mas também podem se tornar armas de destruição em massa, porque os bancos centrais - na verdade, os governos - não conseguiram entender aonde eles iriam nos levar. A crise atual não teria se instalado se o Fed (Federal Reserve, banco central americano), o Banco Central da Inglaterra e o BC europeu soubessem o que estavam fazendo. Deixar quebrar o Lehman Brothers do jeito que deixaram mostrou como eles eram absolutamente míopes, estavam surfando no mundo que produziram. As inovações não são más; elas foram mal usadas. Isso tende a mudar. Qual o caminho mais curto para essa mudança? Qual é a grande dificuldade? É que o setor financeiro deu um passo avante. Agora, ele não só se apropriou do setor real, mas também das instituições políticas. Alguém tem dúvida de que o Fed pertence ao sistema financeiro americano? A Lei Dodd-Frank é a maior prova de que eles são donos do Congresso. Conseguiram produzir um documento com 2.200 páginas, que cria 140 novas instituições. Ou seja, é aquele tipo de solução do "mudar tudo para deixar tudo como está". Essa crise é uma repetição da crise de 1929, o que mostra claramente que o sistema financeiro, uma vez desimpedido e desregulado, produz sempre os mesmos efeitos. Eu costumo brincar dizendo que os banqueiros sempre voltam ao local do crime. É visível que o sistema financeiro e bancário precisava ser salvo, mas não é visível que os acionistas dos administradores desse sistema deveriam ser salvos. Por que a coisa não funciona nos Estados Unidos? Porque o presidente Obama perdeu a credibilidade. Assessorado pela academia, que é simbioticamente ligada ao mercado, protegeu Wall Street e esqueceu-se da Main Street. Qual foi o custo dessa brincadeira? Todos os acionistas perderam alguma coisa, os administradores saíram riquíssimos e o resultado final são 25 milhões de americanos desempregados ou semiempregados. Ou seja, os trabalhadores honestos pagaram o preço do sistema financeiro desonesto. Essas coisas terão que mudar. Não por conta da legislação que aí está, mas porque as duas grandes instituições que mantêm o sistema capitalista, o mercado e a urna, vão se equilibrar: quando o mercado produz muita distorção, a urna corrige; quando a urna produz muita distorção, o mercado penaliza. Esse jogo dialético vai continuar, e o que sairá do outro lado é uma economia de mercado, que eu chamaria de capitalista, provavelmente melhor do que a que temos hoje. É um processo civilizatório para o qual não apareceu alternativa mais interessante. Lentamente, estamos caminhando para instituições em que a cooperação, o altruísmo e as preocupações com o meio ambiente são maiores, enquanto a restrição ao crescimento é um pouco mais aguda, porque pela primeira vez se tem consciência de que não cabem na Terra dez bilhões de pessoas com renda per capita de US$ 20 mil. Há que se acomodar isso da melhor maneira possível. No caso da Europa, os bancos centrais de alguns países socorreram instituições financeiras locais em dificuldades. Porém, como esses riscos são automaticamente assumidos pelo BC europeu, todo o sistema fica ameaçado. Diante desse quadro, qual o futuro do euro? O euro tem uma importância muito grande: é uma decisão política de estabelecer a paz em um continente com tradição de mil anos de guerra. Seu valor civilizatório é uma coisa extraordinária. E por que a Europa está desse jeito? Porque a Comunidade Econômica Europeia foi vítima de um autoengano, ao estabelecer que nenhum país poderia ter mais do que 3% do PIB de déficit fiscal nem uma dívida interna maior do que 60% do PIB. O próprio mercado e as instituições financeiras, com a conivência dos governos, se enganaram. Quando a agência de rating dizia que o papel grego valia AA, ou quando um agente ajudava o governo grego a mistificar os dados financeiros com truques contábeis, ninguém criticava nada. A Europa tem um problema sério: ela não é uma área monetária ótima, porque suas políticas fiscais são contraditórias. Nem os Estados Unidos são, porque lá os estados têm capacidades de endividamento diferentes. No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi um instrumento importante para produzir uma área monetária ótima. Mas, na Europa, mesmo os países mais virtuosos não deixaram de fazer alguma patifaria. Agora, porém, certamente eles estão sentados à mesa, olhando uns para os outros e dizendo: vale a pena conservar o euro? Na minha opinião, vai demorar um pouco, mas haverá um aperfeiçoamento institucional e a conta será paga. Novamente, existem o mercado e a urna. Nos próximos 12 ou 14 meses, haverá eleições em 24 países. Não adianta agora chegar para o grego e dizer: "você comeu demais", simplesmente porque não há como "descomer". É impossível voltar atrás. O único instrumento para se produzir superávit é o crescimento, mesmo que seja baixo. Não se resolvem essas questões produzindo depressões ou recessões nesses países, mas sim encontrando mecanismos capazes de assegurar a cada um deles um mínimo de crescimento. E também terá que haver perdão de dívidas. Não tem jeito. Levará um pouco de tempo, porque é preciso reforçar o capital dos bancos para que eles possam absorver esses novos prejuízos. Na verdade, prejuízos que nem serão deles, mas sim dos pobres-diabos que acreditaram nas agências de risco e compraram pacotes que escondiam junk bonds vendidos como papéis de primeira linha. Os Estados Unidos também atravessam graves problemas fiscais. A seu juízo, tal situação representa uma ameaça aos credores deles ou os títulos do Tesouro americano continuam a ser a melhor proteção para os investidores? Esse é um tema que mostra como as agências de risco não valem coisa nenhuma. Quando a Standard & Poors tirou um “A” dos Estados Unidos, houve uma corrida para os papéis americanos. Ou seja, onde é que as pessoas estão procurando defesa? Os Estados Unidos colocam por semana US$ 250 bilhões a US$ 300 bilhões em papéis de 30 dias, um ano, dois, sete, dez, 30 anos. Todos os papéis americanos continuaram a ser colocados, e a taxas de juros menores. Ou seja, quem perdeu credibilidade foram as agências, não os Estados Unidos. E por que o sistema americano não está funcionando? As famílias estão consumindo menos porque estão usando seus recursos para pagar dívidas e não têm certeza se terão emprego. Os empresários têm em caixa US$ 2 trilhões e não investem porque não têm expectativa de que haverá demanda. Os bancos têm US$ 1,5 trilhão de excesso de reservas e não emprestam porque têm dúvidas sobre os outros bancos. Então, o que acontece? A economia vive de expectativas. Como ninguém tem confiança, todos procuram ficar líquidos, e morrem afogados na liquidez. Se vencer a eleição de 2012, Obama tende a conquistar maioria na Câmara e no Senado e, nessas condições, implementar seu programa, certo ou errado. Se for eleito um republicano, na minha opinião, seria uma pequena tragédia, que pode se transformar em uma grande tragédia, pois eles estão em um processo ideológico que é a coisa mais retrógrada do mundo. Mas creio que há uma lógica invisível operando por trás de tudo. As pessoas estão se divertindo um pouco com o Obama, para fazê-lo pagar pelos equívocos que cometeu. Ele fez tudo o que o livro mandava: aumentou a liquidez, deu dinheiro aos estados para obras públicas etc. E por que não deu certo? Porque você pode levar o burro até a fonte, mas não pode obrigá-lo a beber água. Obama criou todas as condições para o sistema funcionar, mas não conseguiu cooptar o setor privado, ao qual dispensou um tratamento muito duro no início do seu governo. E a sociedade rejeitou. Mas os Estados Unidos têm as duas condições necessárias e suficientes para o crescimento econômico: inovação e crédito. Eles vão voltar a crescer mais rapidamente e já ajustados ao mundo novo, dando mais ênfase à energia renovável e liquidando uma parte da sua dependência externa. O senhor citou as eleições como remédio para corrigir distorções econômicas. Mas é justamente um país sem muita simpatia pelas urnas e até há pouco tempo distante do capitalismo que vem provocando uma revolução na economia mundial. Como decifrar o enigma da China? Não tem enigma. A China na verdade é uma projeção dos Estados Unidos, fruto de um ato político estratégico americano. Quando Mao Tsé-Tung e Stalin se desentenderam e a China se afastou da Rússia, os Estados Unidos aproveitaram o momento para dar à China uma grande chance: “abra zonas especiais que eu levo meu capital e abro o meu mercado para você”. Para que se tenha uma idéia dessa simbiose que se criou entre os dois países, atualmente de 35% a 40% das exportações chinesas são provenientes de empresas americanas instaladas na China. Por que o Congresso americano nunca declarou que a China não é uma economia de mercado? Porque ele seria obrigado a fazer uma tarifa geral equivalente à valorização do yuan. E por que nunca aconteceu? Porque é o próprio sistema financeiro americano que controla o Congresso. Não tem nenhuma teoria conspiratória. É a vida. A China fez um trabalho magnífico, soube aproveitar essa oportunidade, mas já começa a dar sinais daquele pecado dos 30 anos: é claro, evidente, que agora precisa mudar profundamente o eixo da exportação para o mercado interno. É uma condição extremamente difícil. O 12º Plano Quinquenal chinês é de um otimismo enorme e tem hipóteses que são muito pouco prováveis, como a que prevê um grande aumento da produtividade total dos fatores, como alavanca do crescimento. É óbvio que se vive um momento em que a produtividade do capital e o desenvolvimento demográfico estão em queda. Mas eu tenho uma esperança: parece que vão incluir entre os nove membros do grande conselho chinês um sociólogo, um advogado e um economista. Eles nunca mais serão os mesmos. Hoje, qual o peso do Brasil no grupo dos BRICs? Melhoramos nossa posição relativa? Este é um conceito muito pouco adequado e que nos obriga a comparar situações distintas. Na minha opinião, a comparação que nos ajudou foi no sentido de mostrar a melhora dramática que houve na situação brasileira. É uma pena ver que as pessoas não reconhecem isso. Claro que há pecados, claro que há muito a fazer. Mas também é claro que o governo começa a se dedicar à solução dos problemas fundamentais do país, quando tenta, por exemplo, implantar um programa de equilíbrio fiscal de longo prazo, atacando projetos que estão no Congresso, como os de aposentadoria do setor público e restrição de gastos com pessoal. Há uma percepção de que é preciso construir espaço para aumentar a poupança interna. Os críticos dizem que tudo isso não passa de jogo de cena para forçar o Banco Central a baixar os juros. Claro que o governo deseja isso, pois vai gastar este ano R$ 190 bilhões com essa rubrica. Mas alguém de bom senso pode imaginar que o Brasil precisa de uma taxa de juros real de 8% ao ano? Minha esperança é que a nova política fiscal dê ao BC musculatura para reduzir a taxa real de juros, sem violências, para cerca de 2,5% a 3% nos próximos quatro anos. Muita gente vai ter que ganhar a vida honestamente. Muito se critica a forte dependência da pauta de exportações brasileira dos produtos básicos. Mas, em um cenário de menor crescimento da economia mundial, considerando que a demanda por commodities agrícolas tende a ser menos afetada, isso pode ser uma vantagem competitiva para o país? Seria uma loucura abandonar os setores agrícola e mineral. Ninguém está propondo isso. O que se está propondo é desenvolver o mercado interno e dar condições para que os setores industrial e de serviços possam também competir no mercado externo. Não há contradição nenhuma em aproveitar esse boom que ocorre no mundo. Nós já esquecemos que o Brasil quebrou duas vezes, em 1998 e 2002. Hoje, temos US$ 350 bilhões de reservas, que não foram produzidas por nenhuma ação brasileira, mas sim pela expansão do mundo, que soubemos aproveitar muito bem. De país devedor, passamos a país credor. Mas já competimos muito melhor do que competimos hoje. Quando se olham as condições que envolvem os trabalhadores e empresários brasileiros, vemos uma situação complicada: a maior carga tributária bruta entre países com o nosso nível de renda, a maior taxa de juros e a moeda mais valorizada do mundo. Quando alguém apela para modelos de equilíbrio geral e diz que há distorções, eu considero uma maluquice total, porque a teoria de equilíbrio geral não tem nada a ver com o mundo. É uma construção muito elegante para enganar trouxas e ótima para dar aulas, pois dá ao professor um poder enorme sobre o aluno. É grave tirar conclusões normativas de modelos teóricos. Os países emergentes têm conseguido conciliar taxas elevadas de crescimento com estabilidade econômica. Alguns deles, porém, entre os quais o Brasil, voltam a enfrentar problemas relacionados ao aumento da inflação. Como promover o crescimento sem perder o controle da inflação? É preciso ter uma política fiscal de longo prazo crível e exequível, e aumentar a poupança pública, que é a única coisa que pode ser feita com rapidez. Para o Brasil crescer como precisa, na faixa de 4,5% a 5% ao ano, é evidente que necessita de uma taxa de poupança interna em torno de 22%, deixando para a poupança externa algo como 1,5%. Acima de tudo, é preciso convencer os brasileiros de que existe um trade off entre o presente e o futuro: mais distribuição hoje significa menos crescimento para o seu filho e um desastre para o seu neto. Quanto à inflação, considerando-se que é um problema mundial e a dependência do país com relação às importações, não há nenhuma razão para imaginar que o Brasil ficaria dentro da meta. Até porque, no caso brasileiro, existem ainda alguns complicadores. No setor de serviços, por exemplo, mais do que excesso de demanda, observa-se um descompasso entre as estruturas de demanda e oferta. Isso não se corrige com taxa de juros, mas sim com uma política de educação, de preparação de mão de obra. Qual sua avaliação da Era PT, em particular desses primeiros meses do governo Dilma? A eleição do Lula foi a consolidação da democracia no Brasil. Na primeira eleição, quando eu disse que votaria nele, causei uma amolação enorme entre a minha gente. Porque era preciso esse teste. O Lula se revelou um grande presidente. O Fernando Henrique também. E até o Collor teve uma contribuição importante, com a questão da abertura do mercado. Não se deve levar em conta o que é dito nos processos eleitorais, essa questão toda de herança maldita etc. O que importa é que o Brasil vem melhorando durante todo esse tempo. E melhorou ainda mais com o Lula, porque ele atendeu a um aspecto importante da Constituição Federal de 1988: o aumento das oportunidades para as pessoas, que está ligado à igualdade do ponto de partida que mencionei antes. Ele incorporou essa gente, fez um trabalho muito bom, aproveitou o que o mundo oferecia e ainda recebeu no final do mandato o presente do pré-sal. Já a Dilma eu vejo como uma tecnocrata que lê os mesmos livros que nós, que estuda os dossiês, que não se deixa enganar por firulas, por esses modelos que dizem que há distorções. Claro que há distorções, mas a maior delas está na cabeça dos que pensam que existe um modelo de desenvolvimento e que eles são portadores desse modelo. Dilma será uma continuidade muito importante para o país. |
terça-feira, 18 de outubro de 2011
IHU - Instituto Humanitas Unisinos
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