Os domínios do Estado-Mercado
Gaudêncio TorquatoUm novo ser, de tamanho gigantesco, polimorfo e agressivo, invade fronteiras físicas e culturais, rompendo costumes civilizatórios que as Nações, ao longo de sua existência, cultivaram para fazer progredir seu território e produzir o bem estar de seus povos.
Essa entidade refuga submeter-se aos ideários de soberania, independência, cultura e tradições das comunidades que habitam o planeta. Como a água corrente de um rio, que se incrusta nas dobraduras das rochas, desviando-se de obstáculos, vai fazendo o seu caminho e assume, por onde passa, a identidade do Grande Irmão, a figura abstrata que Orwell plasmou para controlar nossas vidas.
Ele é o centro do poder que move o planeta. Provoca, em seu entorno, barulho e comoção, abrigando, sob o mesmo teto, arrufos de desempregados, protestos de estudantes à procura de oportunidades e de membros de uma classe média subitamente empobrecida, que, ao feitio do destrambelhado exército de Brancaleone, se movem na fila do desespero, mesmo sem saberem o que os aguarda mais adiante.
O espaço para a liturgia da indignação foi escolhido pela simbologia que denota: Wall Street, o “coração financeiro” da maior potência mundial, referência proeminente do “cavaleiro imperial” que agita as ruas de Washington, San Francisco, Las Vegas, Londres, Barcelona e Atenas, entre outras.
Cientistas sociais batizam esta engrenagem de poderio descomunal com a expressão Estado-Mercado, cuja definição ligeira aponta para a simbiose entre capital financeiro, grandes interesses privados, administração pública e atores políticos.
Ou, para usar a vertente descrita pelo sociólogo Roger-Gérard Schwartzenberg, estamos diante de uma modelagem que se expande sob o florescimento da “tecnodemocracia”, sistema que se alicerça numa infindável cadeia de organizações complexas, com predomínio de grandes conjuntos privados e comando de uma oligarquia econômica, que agrupa técnicos, gestores públicos e partidos políticos pasteurizados e sem compromisso ideológico.
Portanto, o Estado-Mercado passa a ser o vértice do novo “triângulo do poder”, aqui entendido como integração de núcleos políticos com a burocracia pública e os círculos de negócios. Tal realinhamento institucional ganhou impulso, nas últimas décadas, pelo fato de o Estado-Nação não conseguir prover a sociedade com os encargos sob sua égide, entre os quais, a seguridade social, os programas de educação e saúde, o acesso à justiça, os direitos humanos, enfim, o bem estar social.
Outra abordagem que se pode pinçar para explicar o desvanecimento dos Estados nacionais e dos regimes que os governam é a de Norberto Bobbio, que nos brinda com uma das mais contundentes críticas à democracia representativa. Incapaz, segundo ele, de cumprir promessas clássicas, entre as quais, a educação para a cidadania, o combate às máfias do poder invisível e a igualdade entre os cidadãos.
A crise contemporânea abarca, portanto, o caráter do Estado, a natureza dos sistemas democráticos, os governos que os integram e as forças ambientais. A evolução do Estado, desde sua origem – a partir das cidades-estado como Atenas, Esparta e Tróia – mostra complexa teia de interações com governos e a esfera dos negócios, responsáveis pelo movimento pendular das sociedades capitalistas, como explica o pesquisador Ricardo Correa Coelho.
O Estado intervém no mercado quando este se mostra ineficiente para propiciar segurança e bem estar social, promovendo os ajustes necessários para a correção de falhas. Foi o que fez o governo Obama, por exemplo, para apagar a fagulha imobiliária americana, que expandiu a fogueira da crise financeira internacional.
O sistema estatal, por seu lado, se retrai quando não consegue cumprir metas de desenvolvimento, dando vazão, assim, aos mecanismos de livre regulação. É inescapável, porém, a observação de que os governos não têm sido eficazes para conter os avanços da débâcle, cujo ator principal é o Estado-Mercado.
Recorde-se, a propósito, o depoimento do investidor Alessio Rastani, que, em polêmica entrevista, confessou sonhar “há três anos com a recessão mundial e que os governos não mandam no mundo, mas sim o banco de investimento Goldman Sachs”. Mais um arabesco do Estado-Mercado.
A emergência de uma nova sociedade política mundial, regida pelo mundo financeiro, tem como exemplos a Índia e a China, países que, segundo Philip Bobbit, professor da Universidade do Texas (Época/10/2011), deixaram o circuito dos Estados nacionais. Sob novos parâmetros, tiraram cerca de 40% de sua população da posição abaixo da linha da pobreza e dobraram receitas.
Como se vê, o mercado ganha musculatura no corpo de Nações, cujas fronteiras se imbricam e sobre as quais trilhões de dólares ensaiam a ciclotímica dança da volatilidade.
Injeções volumosas de recursos não conseguem blindar instituições nem atores políticos. Os parceiros, todos sem exceção, passaram a ser vulneráveis. Os Estados nacionais, antes com elevada taxa de confiabilidade, vão desmoronando sob a queda sequencial das pedras do dominó.
A moldura de incertezas joga a pergunta no tabuleiro: qual o futuro do Estado-Nação? As perspectivas não são animadoras. O fermento cívico se esgota. Tocqueville o enxergava nos EUA, em 1831, quando desembarcou em Manhattan para estudar o sistema penitenciário.
No clássico A Democracia na América, frisou: “existe um amor à pátria que tem sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde nasceu”.
O civismo do amor pátrio fermenta, hoje, o ódio ao Estado-Mercado, dominado por uma casta de especuladores. Vislumbram-se portas mais largas no edifício da democracia? No parque Zucotti, no centro financeiro de Nova Iorque, a panela de pressão deixa escapar a esperança, sob o clamor de gritos: “vamos abrir os pulmões da democracia participativa”. Por enquanto, aquilo é apenas vapor.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP,
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