“O fim do imperialismo monetário norte-americano, sobre o qual escrevi pela primeira vez em 1972 em Super Imperialism, surpreende até mesmo um observador bem informado como eu. Requerem-se níveis colossais de arrogância, de visão curta e total desconsideração à lei, para acelerar o declínio norte-americano: isso tudo, precisamente, é o que só neoconservadores completamente alucinados feito John Bolton, Elliot Abrams e Mike Pompeo podem fornecer a Donald Trump.”
Taí! Isso, sim, afinal, explica os Bs no governo, o ônix, a doida no ministério da mulher, o analfabeto no ministério da educação, o animal no ministério do meio ambiente e coisa e tal... [pano rápido].
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Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga -
blog do alok
O fim da dominação econômica norte-americana não contestada chegou antes do esperado, graças aos mesmos neoconservadores que deram ao mundo a guerra do Iraque, da Síria e as sujas guerras na América Latina. Assim como a Guerra do Vietnã arrancou os EUA do padrão ouro em 1971, o patrocínio e o financiamento que estão garantindo as violentas guerras para mudança de regime contra a Venezuela e a Síria – e as ameaças de sanções contra outros países que não se unam na mesma cruzada – estão hoje levando países europeus e outros a ter de criar suas próprias instituições financeiras alternativas.
Esse rompimento está-se armando já há algum tempo, e com certeza aconteceria. Mas quem teria imaginado Donald Trump como o agente catalisador? Nenhum partido de esquerda, líder socialista, anarquista, nacionalista estrangeiro em algum canto do mundo teria conseguido o que Trump está fazendo para quebrar o Império Norte-americano.
O Estado Profundo reage com choque, sem compreender como esse corretor de imóveis de luxo está conseguindo que outros países passem a se autodefender, desmontando a ordem mundial centrada nos EUA.
Como se não bastasse, está usando criminosos incendiários da era Bush e Reagan – John Bolton e, agora, Elliott Abrams, para abanar a brasa e fazer subir as chamas na Venezuela. É quase como uma comédia política noir. O mundo da diplomacia virado de pés para cima. Um mundo no qual já nem se tenta fingir que se respeitam normas internacionais, imagine se se leem leis ou tratados.
Os neoconservadores que Trump nomeou estão fazendo o que há pouco tempo ainda parecia impensável: uniram China e Rússia – o grande pesadelo de Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski. Estão também empurrando a Alemanha e outros países europeus para a órbita da “Terra Central”, ou “pivô geográfico” [ing. Heartland (correspondente à Eurásia)], o pesadelo de Halford Mackinder há um século.
A causa raiz é clara: depois do crescendo de falsidades e embustes em torno do Iraque, da Líbia e da Síria, além da absolvição preventiva que garantimos ao regime criminoso da Arábia Saudita, os líderes políticos em todo o mundo estão começando a ver o que pesquisas de opinião pública em todo o mundo já diziam desde antes de os rapazes dos Contra do Iraque-Irã pusessem os olhos nas reservas de petróleo da Venezuela, as maiores do mundo: os EUA são hoje a maior ameaça à paz no planeta.
Pretender que o golpe que os EUA patrocinam contra a Venezuela seria alguma defesa de alguma democracia revela o Duplipensar que subjaz a toda a política exterior dos EUA. “Democracia” aparece definida, para efeitos de golpe, como: apoiar a política exterior dos EUA; cometer a privatização neoliberal de toda a infraestrutura pública; desmantelar a regulação que haja sobre o governo; e seguir o que ordenem instituições globais comandadas pelos EUA, de FMI e Banco Mundial à OTAN. Durante décadas, as guerras distantes do território dos EUA, que resultaram dessa política, os programas de arrocho doméstico – ditos “de austeridade” (mas não são, são programas de arrocho, NTs) – e intervenções militares só geraram mais violência, nunca alguma democracia.
No Dicionário do Diabo, que diplomatas norte-americanos são ensinados a adotar como guia de ‘Elementos de Estilo’ para Duplipensar, país “democrático” é país que obedeça aos comandos ditados pelos EUA e abra a própria economia ao investimento de empresas norte-americanas e à privatização patrocinada pelo FMI e pelo Banco Mundial. Ucrânia é dita ‘país democrático’ como Arábia Saudita, Israel e outros países que atuam como protetorados financeiros e militares dos EUA, sempre dispostos a tratar os inimigos dos EUA como se fossem inimigos também seus.
Tinha de acontecer e aconteceu, de esses autointeresses dos norte-americanos entrarem em choque com os autointeresses de outros países. E esse conflito está, afinal quebrando as linhas e entrelinhas da retórica das Relações ‘Públicas’ do império. Vários países já cuidam de desdolarizar os próprios negócios e de descartar o que só a diplomacia norte-americana ainda chama de “internacionalismo” (que significa o nacionalismo norte-americano imposto a ferro e fogo ao resto do mundo), para abraçarem, afinal, os próprios respectivos reais autointeresses nacionais.
Essa trajetória já era visível há 50 anos (já escrevi sobre ela em Super Imperialism [1972, em PDF, ing.] e em Global Fracture [1978, em PDF, ing.].) Tinha de acontecer. Mas ninguém pensou que o fim chegaria como está acontecendo hoje. A história virou comédia, ou, no mínimo, ironia, conforme se desdobram os seus movimentos dialéticos.
Ao longo dos últimos 50 anos, os estrategistas norte-americanos, o Departamento de Estado e a ONG do Partido Democrata “Dotação para a Democracia” [ing. Endowment for Democracy (NED)] acreditaram firmemente que a oposição ao imperialismo financeiro dos EUA lhes viria de partidos de esquerda. Por isso gastaram quantias descomunais de recursos para manipular partidos autodenominados socialistas (o Partido Trabalhista Britânico de Tony Blair; o Partido Socialista Francês, o Partido Social-democrata da Alemanha, etc.) no sentido de fazê-los adotar políticas neoliberais que eram diametralmente opostas ao que “social-democracia” significara há um século.
Mas os estrategistas norte-americanos e a CIA dos tocadores do grande “órgão Wurlitzer” simplesmente deixaram de lado a direita, supondo que a direita apoiaria instintivamente a violência norte-americana.
Fato é que os partidos da direita querem ser eleitos, e um nacionalismo populista é hoje quase garantia de vitória eleitoral na Europa e em outros países, como foi nos EUA, em 2016, na eleição de Donald Trump in 2016.
É perfeitamente possível que a agenda de Trump seja realmente rachar o Império Norte-americano, usando a velha retórica isolacionista doUncle Sucker, de há 50 anos. Não há dúvidas de que está atacando os órgãos mais vitais do Império. Mas será agente anti-norte-americano deliberado, consciente? Também é possível que seja – mas não basta, para assumir que Trump esteja agindo deliberadamente, usar um raciocínio simplório de “quem mais ganha”.
Afinal, se nenhum terceirizado, fornecedor, sindicato ou banco quer negociar com Trump... Vladimir Putin, China ou o Irã seriam talvez mais ingênuos? É possível que o problema estivesse maduro para aparecer, como resultado de a dinâmica interna do globalismo patrocinado pelos EUA ter-se tornado inviável, impossível de impor depois de o resultado já verificado ser só ‘austeridade financeira’ (é arrocho!), ondas de emigrados que fogem das guerras patrocinadas pelos EUA e, principalmente, depois de os EUA recusarem-se a seguir regras e leis internacionais que os próprios EUA patrocinaram há 70 anos, imediatamente depois da 2ª Guerra Mundial.
Desmantelar a Lei Internacional e respectivos tribunais
Não há sistema internacional de controle se não há estado de direito e leis. Pode até ser exercício moralmente degradado de poder sem qualquer controle para impor e ‘legalizar’ a exploração, mas ainda assim alguma Lei tem de existir. E a Lei exige tribunais que a apliquem (apoiada por força policial para fazer cumprir as decisões e punir violadores).
Aqui já se vê a primeira contradição da diplomacia global dos EUA, no plano da Lei: os EUA jamais admitiram que qualquer outro país tivesse voz nas políticas domésticas norte-americanas, no Legislativo ou na diplomacia dos EUA. Isso faz dos EUA “a nação excepcional”. Mas há 70 anos os diplomatas norte-americanos só fazem repetir – sem qualquer comprovação na realidade – que aquele seu julgamento ‘superior’ teria promovido um mundo em paz (tão em paz quanto o Império Romano dizia ser), paz a qual teria permitido que outros países partilhassem a prosperidade e os altos padrões de vida dos norte-americanos.
Na ONU, diplomatas dos EUA defendem a manutenção do poder de veto. No Banco Mundial e no FMI, os EUA também cuidam de assegurar que a parte dos EUA no quadro acionário seja suficientemente maior para lhes garantir poder de veto em todos os empréstimos ou outras políticas. Sem esse poder, os EUA recusam-se a participar de qualquer organização internacional. Ao mesmo tempo, os EUA só fazem exibir o próprio nacionalismo como força que protegeria a globalização e o internacionalismo. Tudo isso jamais passou de puro eufemismo, para encobrir um processo absolutamente unilateral autoritário norte-americano de tomar decisões.
Inevitavelmente, o nacionalismo norte-americano acabaria por destruir a miragem do internacionacionalismo no Primeiro Mundo, e, em seguida, até a noção de que pudesse existir alguma corte internacional. Sem poder de veto sobre aqueles juízes, os EUA jamais aceitaram a autoridade de qualquer tribunal, notadamente da Corte Internacional da ONU em Haia. Recentemente, essa corte iniciou investigação dos crimes de guerra dos EUA no Afeganistão, das políticas de tortura ao bombardeio de alvos civis como hospitais, casamento e infraestrutura. “Essa investigação encontrou ‘base razoável’ para crer que houve crimes de guerra e crimes contra a humanidade.”
O conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump explodiu em fúria, ameaçando, em setembro, que “Os EUA usarão todos os meios necessários para proteger nossos cidadãos e cidadãos dos países nossos aliados contra qualquer julgamento ou condenação injusta que seja feita por essa corte ilegítima,” – e ainda acrescentou que a Corte Internacional de Justiça da ONU não se atrevesse a investigar “Israel ou outros aliados dos EUA”. Um veterano juiz, Christoph Flügge, da Alemanha, renunciou em sinal de protesto.
De fato, Bolton disse à Corte que não se intrometesse em assuntos dos EUA. E ameaçou proibir “juízes e promotores dessa corte, de entrar nos EUA”. Nas palavras de Bolton: “Sancionaremos o dinheiro deles no sistema financeiro dos EUA, e os processaremos pelo sistema criminal dos EUA. Não cooperaremos com a Corte Internacional. Cortaremos toda a assistência que damos à Corte Internacional. Deixaremos que a Corte Internacional morra à míngua. Afinal, para todos os seus objetivos e finalidades, a Corte Internacional já está morta.”
Significava, como disse o juiz alemão: “Se esses juízes algum dia intervierem nos interesses domésticos dos EUA ou investigarem algum cidadão norte-americano, [Bolton] disse que o governo dos EUA fará tudo que consiga para assegurar que tais juízes nunca mais entrem nos EUA – e que talvez, mesmo, sejam processados criminalmente.”
A inspiração original dessa corte – usar as leis de Nuremberg que foram aplicadas contra os nazistas alemães, para julgar países e funcionários considerados culpados por crimes de guerra –, verdade seja dita, já deixara de ter qualquer significado quando a corte não conseguiu maioria para indiciar por crimes de guerra, os autores do golpe no Chile, do Iran-Contra ou da invasão do Iraque.
Desmantelar a hegemonia do EUA-dólar, do FMI ao sistema SWIFT de compensações
De todas as áreas da política do poder global hoje, a finança internacional e o investimento estrangeiro tornaram-se as principais. Reservas monetárias internacionais tinham de ser vistas como os itens mais sacrossantos, com a limitação da dívida externa intimamente associada.
Há muito tempo os bancos centrais mantinham suas reservas monetárias, em ouro e outras, nos EUA e em Londres. Parecia razoável à altura de 1945, porque o New York Federal Reserve Bank (em cujo porão era guardado o ouro dos bancos centrais estrangeiros) tinha segurança de nível militar, e porque o London Gold Pool era o veículo pelo qual o Tesouro dos EUA mantinha o dólar “firme como ouro”, a $35 a onça. Outras reservas estrangeiras eram guardadas em papéis do Tesouro dos EUA, para serem vendidos e comprados nos mercados de câmbio de New York e Londres, para estabilizar as taxas de câmbios. Muitos empréstimos externos para outros governos eram denominados em EUA-dólares, de modo que bancos de Wall Street eram tidos normalmente como agentes pagadores.
Foi assim com o Irã do Xá, que os EUA instalaram no poder depois de patrocinar o golpe de 1953 contra Mohammed Mosaddegh, quando ele tentou nacionalizar a empresa Anglo-Iranian Oil (hoje, British Petroleum) ou pelo menos, que fosse, cobrar-lhe impostos. Derrubado o Xá, o regime Khomeini requereu ao seu agente pagador, o banco Chase Manhattan, que usasse as reservas do Irã para pagar os seus acionistas. Por ordem do governo dos EUA, o banco Chase recusou-se a pagar. Tribunais dos EUA então declararam o Irã insolvente, e congelaram seus bens nos EUA e em todos os lugares do planeta onde conseguiram agir.
Assim se viu que a finança internacional era braço do Departamento de Estado dos EUA e do Pentágono. Mas aconteceu já lá se vai uma geração, e só recentemente outros países começaram a manifestar preocupações quanto a deixar o próprio ouro nos EUA, onde poderia ser facilmente confiscado para punir qualquer país que agisse de modo que a diplomacia norte-americana achasse ofensivo. Ano passado afinal a Alemanha arranjou coragem para pedir que parte do ouro alemão fosse devolvido à Alemanha. Funcionários dos EUA manifestaram um simulacro de choque extremo ante o insulto de os alemães suporem que os norte-americanos fossem capazes de fazer a um país cristão civilizado o mesmo que haviam feito ao Irã. E a Alemanha concordou em adiar a transferência do ouro.
Mas na sequência veio a Venezuela. Desesperada para usar as próprias reservas em ouro para pagar por importações que tanta falta faziam à economia nacional devastada por sanções impostas pelos EUA – crise que os diplomatas dos EUA declararam ser efeito do “socialismo”, não das providências dos norte-americanos para “fazer gemer a economia” (como funcionários de Nixon disseram do que faziam ao governo de Salvador Allende no Chile) –, a Venezuela ordenou que o Banco da Inglaterra transferisse para o país parte dos $11 bilhões de dólares em ouro que jaziam nos cofres do Banco da Inglaterra e de outros bancos, em dezembro de 2018. Simples. Como qualquer correntista perfeitamente solvente de qualquer banco, que espera que o banco pague um cheque que aquele correntista emitiu.
A Inglaterra recusou-se a honrar o cheque venezuelano, obedecendo ordens de Bolton e do secretário de Estado Michael Pompeo. Como Bloomberg noticiou: “Funcionários dos EUA estão tentando transferir os fundos venezuelanos no exterior para Juan [Chicago Boy] Guaidó, para aumentar-lhe as chances de efetivamente tomar pleno controle do governo. O $1,2 bilhão de ouro é parcela significativa dos $8 bilhões em reservas estrangeiras depositadas no banco central venezuelano.”
A Turquia apareceu como destino provável, o que levou Bolton e Pompeo a ameaçar a Turquia com sanções, caso auxiliasse a Venezuela a enfrentar sua crise econômica. Quanto ao Banco da Inglaterra e outros países europeus, a matéria de Bloomberg concluía: “Funcionários do banco central em Caracas receberam ordens para não tentar qualquer contato com o Banco da Inglaterra. Caracas foi informada de que funcionários do Banco da Inglaterra foram proibidos de responder mensagens de Caracas.”
Daí surgiram rumores de que a Venezuela estava vendendo 20 toneladas de ouro a serem transportadas num Boeing 777 russo – cerca de $840 milhões de EUA-dólares. O dinheiro provavelmente destinava-se a pagar acionistas russos e chineses e a comprar comida. A Rússia desmentiu a matéria, mas Reuters confirmou que a Venezuela vendera 3 toneladas de planejadas 29 toneladas de ouro aos Emirados Árabes Unidos, com mais 15 toneladas a serem embarcadas na 6ª-feira, 1/2/2019. Rubio, linha-dura cubano-batista no Senado dos EUA, denunciou a operação como “roubo”, como se alimentar o próprio povo para aliviar o sofrimento provocado pela crise gerada e alimentada pelos EUA fosse crime contra a ação diplomática dos EUA.
Se há país que os diplomatas norte-americanos odeiam mais que país rebelde na América Latina, é o Irã. O fim decidido pelo presidente Trump dos acordos nucleares de 2015 negociados por europeus e o governo Obama escalou a ponto de Alemanha e outros países europeus já estarem ameaçados de sanções se não se retirarem dos acordos que assinaram. Como se não bastasse a oposição a que Alemanha e outros países europeus importem gás russo, as ameaças dos EUA acabaram por empurrar a Europa a buscar algum modo de se autopreservar.
As ameaças imperiais já não são militares. Nenhum país (nem Rússia ou China) tem meios para montar invasão militar a outro grande país.
Desde os dias do Vietnã, o único tipo de guerra possível para países ainda democráticos é a guerra atômica, ou pelo menos guerra de bombardeios pesados como os que EUA infligiram ao Iraque, Líbia e Síria. Mas agora a ciberguerra tornou-se meio eficaz para quebrar as conexões de qualquer economia. E as principais ciberconexões hoje são ordens financeiras de transferência de dinheiro – compensações bancárias mundiais –, coordenadas hoje pela SWIFT, sigla em inglês da Sociedade Mundial para Telecomunicações Financeiras Interbancárias (Worldwide Interbank Financial Telecommunication), que tem sede na Bélgica.
Rússia e China já se movimentaram para criar um sistema alternativo de compensações bancárias, para o caso de os EUA desconectarem os dois países, do sistema SWIFT. Mas agora países europeus já entenderam que as ameaças feitas por Bolton e Pompeo podem gerar multas pesadas e confisco de patrimônio, se tentarem insistir em manter o comércio com o Irã, como determinado nos acordos que todos firmaram.
Dia 31 de janeiro, o bloqueio foi rompido, com o anúncio de que a Europa criou seu próprio sistema de compensação de pagamentos para usar com o Irã e outros países que sejam alvo dos ataques ‘diplomáticos’ dos norte-americanos. Alemanha, França e até a Grã-Bretanha, poodledos EUA, uniram-se para criar o INSTEX — Instrumento (também dito “Mecanismo” [NTs]) para Apoio de Compensações Interbancárias [ing. Instrument in Support of Trade Exchanges]. A promessa é que será usado só para ajuda “humanitária” para salvar o Irã de uma devastação provocada pelos EUA semelhante à que a Venezuela sofreu. Mas, se se considera a crescente e cada dia mais furiosa oposição que os EUA fazem à ideia de que o gasoduto Ramo Norte transporte gás russo, essa via alternativa para compensações bancárias está pronta e capacitada para se tornar plenamente operante, caso os EUA tentem um ataque com sanções contra a Europa.
Acabo de voltar da Alemanha e vi impressionante divisão entre empresários e industriais e o governo político. Durante anos, as grandes empresas viram a Rússia como mercado natural, como economia complementar que precisava modernizar a própria base manufatureira e capaz de abastecer a Europa com gás natural e outras matérias-primas. A posição dos EUA nessa Nova Guerra Fria tenta bloquear essa complementaridade comercial. EUA alertaram a Europa contra o risco de se tornar ‘dependente’ do gás russo de baixo preço, para vender o gás natural liquefeito caríssimo que os EUA oferecem (prometendo instalações portuárias que ainda não existem em lugar algum, sequer próximas do volume exigido). O presidente Trump também tem insistido em que membros da OTAN gastem na compra de armas no mínimo 2% dos respectivos PIB – e armas a serem compradas, claro, dos mercadores de morte norte-americanos, não franceses nem alemães.
O modo como os EUA fazem pesar a mão está levando diretamente à realização do pesadelo eurasiano de Mackinder-Kissinger-Brzezinski ao qual me referi no início. Como se não bastasse, os EUA estão aproximando Rússia e China. A diplomacia norte-americana está ‘unindo’ a Europa ao “pivô geográfico” bem conhecido dos norte-americanos, operando contra, até, o mesmo tal estado de dependência, para cuja criação a diplomacia norte-americana trabalha desde 1945.
O Banco Mundial, por exemplo, sempre, tradicionalmente, foi presidido por um secretário da Defesa dos EUA. A política desse banco, desde que foi criado, é prover empréstimos a países que aceitem usar a própria terra para exportar suas colheitas, não para alimentar o próprio povo.
Por isso os empréstimos são sempre feitos em moeda estrangeira, não na moeda doméstica necessária para dar suporte aos preços e aos vários serviços que orbitam em torno da agricultura e a promovem, como os que tornaram a agricultura dos EUA tão produtiva. Cada país que seguiu a orientação dos EUA expôs-se completamente indefeso à chantagem do racionamento de comida – sob a forma de sanções que impedem aqueles países de comprar comida, caso se afastem um passo da linha traçada pela diplomacia norte-americana.
Vale a pena observar que a imposição pelos EUA, da mítica “eficiência” na agricultura, imposição cujo resultado foi converter os países latino-americanos em plantations para exportar colheitas (como café, banana), em vez de cada país cultivar o próprio trigo e o próprio milho, fracassou escandalosamente e jamais melhorou a vida de nenhum cidadão latino-americano, sobretudo na América Central.
O fracasso da receita ensinada nos manuais norte-americanos – as colheitas exportáveis seriam trocadas por alimentos baratos a serem importados dos EUA, a troca miraculosa prometida aos países que seguissem o manual dos norte-americanos – é hoje tragicamente evidente nas procissões de refugiados e sem-teto que cruzam o México.
Claro que os EUA terem apoiado todos os mais brutais militares-ditadores, chefes de milícias e senhores do crime organizado em toda a América Latina não ajudou a fortalecer nossa posição naquela região.
Assim também o FMI foi forçado a admitir que suas ‘orientações’ sempre foram pura ficção, desde o início. Uma das funções centrais do FMI foi obrigar países pobres a pagar dívidas intergovernamentais, usando como instrumento de pressão e chantagem o corte do crédito para países maus pagadores. Essa regra foi instituída num tempo em que praticamente toda a dívida intergovernos tinha os EUA como credor. Mas há alguns anos, a Ucrânia deixou de pagar empréstimo de $3 bilhões devidos à Rússia. O FMI declarou que, de fato, nem a Ucrânia nem qualquer outro país teria qualquer obrigação de pagar dívidas cujo credor fosse a Rússia ou qualquer outro país que mantivesse comportamento excessivamente independente do que os EUA ordenassem. O FMI continua a jogar dinheiro no poço sem fundo do corrupto governo da Ucrânia, para promover a política desse governo, essencialmente anti-Rússia; nada diz ou faz na defesa do princípio de que dívidas intergovernamentais tenham de ser pagas algum dia.
É como se o FMI operasse agora numa salinha no porão do Pentágono em Washington. A Europa já se deu conta de que seu próprio sistema monetário de trocas internacionais e suas conexões financeiras podem a qualquer momento atrair a fúria dos EUA. Foi o que ficou muito claro no outono passado, nos funerais de George H. W. Bush, quando o diplomata representante da União Europeia foi deixado para o fim da lista de autoridades chamadas para assumir seu lugar na cerimônia. Foi informado de que os EUA já não consideram a União Europeia entidade muito importante. Em dezembro, “Mike Pompeo fez um discurso em Bruxelas sobre a Europa – seu primeiro discurso, ansiosamente aguardado – no qual exortou as virtudes do nacionalismo, criticou o multilateralismo e a União Europeia e disse que “corpos internacionais” que limitam a soberania nacional “devem ser reformados ou eliminados.”
A maior parte desses eventos apareceram na mídia num só dia, 31/1/2019. A conjunção de tantos movimentos dos EUA em tantos fronts, contra Venezuela, Irã e Europa (para nem falar da China e das ameaças de retaliação comercial e ações contra a Huawei que também emergiram hoje) faz crer que esse será um ano de fratura no mundo.
Claro que não é feito só do presidente Trump. O Partido Democrata desfila com as mesmas cores. Em lugar de aplaudir a democracia, quando os países não elegem candidato aprovado (quando não nomeado diretamente) pelos diplomatas norte-americanos (seja Allende ou Maduro), os Democratas já deixaram cair a máscara e mostram o que realmente são: imperialistas na Nova Guerra Fria. Saíram do armário. Assumiram o que são, sinceramente, empenhadamente: querem fazer da Venezuela um neo-Chile-de-Pinochet. Trump não está sozinho no apoio à Arábia Saudita e aos seus terroristas wahabistas, nas palavras de Lyndon Johnson “filhos da puta, mas nossos filhos da puta”.
E a esquerda, em tudo isso?!
Comecei o artigo com essa pergunta. É espantoso que só partidos de direita – Alternativa para a Alemanha (al. AFD), ou os nacionalistas franceses de Marine le Pen e de outros países – façam hoje oposição à militarização da OTAN e busquem reativar o comércio e laços econômicos em geral com toda a Eurásia.
O fim do imperialismo monetário norte-americano, sobre o qual escrevi pela primeira vez em 1972 em Super Imperialism, surpreende até mesmo um observador bem informado como eu. Requerem-se níveis colossais de arrogância, de visão curta e total desconsideração à lei, para acelerar o declínio norte-americano: isso tudo, precisamente, é o que só neoconservadores completamente alucinados como John Bolton, Elliot Abrams e Mike Pompeo podem fornecer a Donald Trump.*******
Referência a um instrumento musical (um órgão), e metáfora para descrever a grande operação da CIA para ‘manipular’ longa série de figuras muito conhecidas na sociedade dos EUA nos anos 60s. A expressão apareceu na revista Ramparts. Um funcionário da CIA é citado, vangloriando-se de ser capaz de “tocar, como num grande órgão” qualquer hino de propaganda anticomunista. O órgão era chamado "Todo-poderoso Wurlitzer”. A matéria não poupava ninguém, todos denunciados como ‘braços’ da CIA: emigrados, líderes trabalhistas, artistas, estudantes, mulheres, negros e jornalistas e foi um dos maiores desastres que a CIA enfrentou em toda sua história. O autor oferece análise reveladora da sociedade da Guerra Fria nos EUA, importante ainda hoje [NTs, com informações de Amazon, na página de divulgação do livro The Mighty Wurlitzer: How the CIA Played America, 2009].
Constanze Stelzenmüller, “America’s policy on Europe takes a nationalist turn,” Financial Times, 31/1/2019.