domingo, 19 de maio de 2019

Brasil bolsonarista é casa mal-assombrada em filme de terror



Brasil bolsonarista é casa mal-assombrada em filme de terror

por Jorge Coli
Os filmes de casa mal-assombrada sempre me deixam perplexo. Tomo um exemplo: “A Mansão Macabra”, realizado em 1976 por Dan Curtis, com Bette Davis num papel secundário, mas sempre divina.
A situação é clássica. A família que aluga uma velha casa para férias começa a perceber sinais de estranheza. Acidentes acontecem; sonhos aterradores tomam os novos inquilinos; janelas, portas, lâmpadas passam a ter vida autônoma; a mãe tem reações bizarras. Quando, enfim, decidem escapar da habitação que os hostiliza, é tarde demais e a casa destrói a todos.
Minha questão é: por que cargas d’água não saíram assim que esses avisos estranhos começaram? Havia ficado logo bem claro que algo estava errado. Por que esperar o irreversível? A resposta: porque se assim fizessem, não haveria filmes de casa mal-assombrada.
Esses filmes me fazem pensar em pessoas que têm mais medo de médico do que de doença. “Ah, não; se eu for à consulta, o doutor vai descobrir alguma coisa”. Elas contam com o tempo, na ilusão de que tudo vai se resolver. E se descobre a enfermidade tarde demais.
Penso também naquela frase de ironia sinistra: “Na Alemanha, durante o nazismo, os judeus otimistas ficaram; os pessimistas foram para Hollywood”. Ou seja, quem se assustou logo fugiu e se salvou.
Enquanto quem pensava que, enfim, os nazistas não iam chegar a extremos, de fato tornou-se sua vítima.
É bem evidente que a frase citada é apenas uma boutade e que nem todos os perseguidos pelo regime nazista tiveram condições de escapar. Mas não é difícil imaginar a inércia muito humana diante do perigo, que consistia em pensar: “Como eu vou deixar minha casa, meu trabalho? E, afinal, malgrado as perseguições, eles não podem ir mais longe do que já foram”.
Aí está o ponto tremendo. Sim, eles podem. A natureza dos homens chega a deformar-se até o massacre em massa, até a destruição premeditada. Os corações com sentimentos humanos têm dificuldade em perceber até que ponto vão aqueles que são violentos e obtusos.
É a velha história do sapo dentro da panela de água fria, não sei se verdadeira, mas expressiva. Acende-se o fogo e ele não percebe o progressivo aquecimento. Termina cozido.
No Brasil, estamos assim. A casa já deu sinais de sobra desse terror no qual entramos. A tal ponto que se tornou difícil acompanhar o progresso do obscurantismo.
Um presidente que propõe lei autorizando proprietários de terras a assassinar, se se julgarem ameaçados por invasões. Como a violência dos latifúndios já toma proporções tremendas em várias regiões do país, o que será quando os proprietários obtiverem licença para matar?
O caso abominável do fogo aberto (83 tiros) pelo Exército no Rio de Janeiro contra uma família e um catador de latas mostra o clima desequilibrado em que vivemos, tanto pelo ocorrido quanto pelas raras manifestações de poucas autoridades, minimizando o fato como erro ou fatalidade.
E a triste certeza de que, neste caso, se alguém for punido, será a arraia miúda, e não os responsáveis pela atmosfera de violência que cresceu tanto.
A perseguição ao pensamento e ao saber não tem mais vergonha. Ao ser contestado quando decidiu, por capricho ideológico, cortar 30% dos orçamentos de três universidades federais, o ministro da Educação não teve dúvidas e aplicou o mesmo corte em todas.
O governo do Estado de São Paulo não ficou atrás, aparelhando uma instituição como o Condephaat, destinada a proteger os monumentos históricos e artísticos do estado, expulsando de seu conselho especialistas universitários. Busca também reverter a autonomia financeira das universidades estaduais. E a Assembleia Legislativa de São Paulo institui uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra desvios ideológicos das universidades públicas paulistas.
Entidades diversas se manifestaram contra. Alguns parlamentares esclarecidos tentam organizar resistência. Protestos e abaixo-assinados correm nas redes sociais. Mas, depois das belas manifestações da quarta-feira (15), parece surgir lugar para algum otimismo realista.
O gênio da Laerte criou um cartum por ocasião do Primeiro de Maio: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, se unir o bicho foge.”
Precisamos que haja união dos espíritos livres, vindos de horizontes os mais diversos, sem acirramentos partidários (sobretudo os fraternos, que são os piores), união que permitiria vencer o país mal-assombrado de hoje. Quatro anos é muito tempo —tempo de sobra para a destruição. Não aguardemos até que o sapo morra.
*Jorge Coli é professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.
*Publicado na Folha de S.Paulo

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