quarta-feira, 29 de maio de 2019

Nossas escolas têm cheiro de esgoto



Nossas escolas têm cheiro de esgoto

É um milagre que o Brasil tenha avançado em condições tão ruins


  • Leandro Beguoci

    Era uma tarde de sexta-feira em Belém do Pará, poucos minutos antes da hora da chuva. Entrei em uma das principais escolas públicas da cidade para conversar com um professor de história.
    Atravessei um corredor longo, com a pintura descascando. Era intervalo de aula. Os alunos estavam sentados em blocos de concreto prestes a desmoronar. A quadra estava esburacada no chão e no teto. O único espaço coletivo era uma escadaria que levava ao segundo andar do prédio.
    Entrei com o professor em uma sala de aula que não seria usada pela próxima hora. Havia alguns estudantes conversando, que mal se importaram com a nossa presença. Outro menino, no canto, tinha o celular conectado à tomada e estava concentradíssimo num joguinho. O aparelho de ar condicionado funcionava, é verdade, mas gotejava dentro da sala, criando um fio de infiltração e mofo. As paredes estavam todas pichadas.
    Eleitores aguardam para votar em escola na Ilha Grande, em Belém (PA)
    Eleitores aguardam para votar em escola na Ilha Grande, em Belém (PA) - Avener Prado - 7.out.18/Folhapress
    “Essa escola não é a pior em que dou aula, nem de longe”, me disse o professor. “Aqui, pelo menos, tenho uma boa lousa e todas as lâmpadas funcionam. Não tem a melhor infraestrutura, mas funciona.” O conceito de funcionar, claro, varia de contexto a contexto. Eu nunca aceitaria trabalhar num lugar como aquela escola em Belém. Milhares de professores, todos os dias, aceitam —e vão— trabalhar em lugares muito piores.
    Poucas escolas no Brasil contam com uma infraestrutura decente, como mostram os dados do Censo Escolar. Hoje, metade das escolas brasileiras não está ligada à rede pública de esgoto. Uma em cada quatro escolas não recebe água pelas vias normais —depende de poços artesianos, por exemplo. Ou seja, estamos ensinando muitas crianças e adolescentes Brasil afora em condições insalubres.
    Porém, vamos supor que nossos estudantes conseguissem ficar com sede e conviver com fossa artesiana e o cheiro de esgoto no verão. São brasileiros formados em resiliência prática e aplicada. Pois bem, apenas 37% das escolas brasileiras possuem bibliotecas, um dos fatores que explicam nossa dificuldade em alfabetizar direito e depois em melhorar a leitura e a escrita dos nossos estudantes. Só 11% possuem laboratórios de ciência, também uma disciplina em que vamos muito mal. Internet boa? Sala de informática? Raridade.
    O fato de o Brasil só ter transformado educação em direito na Constituição de 1988 explica essa tragédia de infraestrutura em que vivemos. Os governos investiram pesado em universalização nas últimas três décadas, criando salas de aula de tudo quanto é jeito para colocar todo mundo na escola. Embora pareça absurdo, é um caminho que outros países seguiram no passado quando estavam no mesmo estágio de desenvolvimento educacional. Itália, Finlândia, Coreia do Sul, ninguém começou com escolas espetaculares.
    A questão é que as instituições foram melhorando com o tempo porque a sociedade cobrava e porque havia consenso de que educação era direito universal. Portanto, não bastava simplesmente criar escolas. O projeto também exigia que as instituições melhorassem ano após ano, incluindo a infraestrutura. Esse deveria ser um consenso nacional neste momento. Nossas escolas não podem ser um depósito de alunos. Não podemos aceitar que as nossas instituições operem em lugares nos quais nós nunca aceitaríamos trabalhar ou morar.
    Quando os estudantes e professores pedem mais recursos para suas escolas, eles não estão pedindo televisores 4K, laptops e arroz orgânico. É muito mais básico do que isso. Qualquer pessoa que trabalha com educação sabe que, antes de qualquer disputa maluquinha, existe uma agenda de coisas básicas a fazer. Em tempos conflagrados, deveríamos procurar alguns consensos. Oferecer infraestrutura decente para os nossos estudantes deveria ser um deles.
    Quando sai daquela escola em Belém, fiquei levemente otimista com o país, por mais paradoxal que pareça. O professor estava muito empolgado com a aula que acabara de dar, sobre democracia na Grécia antiga. Naquela tarde, ele me disse, os estudantes fizeram perguntas e associaram o conteúdo da antiguidade a questões atuais. Ele estava muito orgulhoso de si, dos meninos e das meninas. Depois de um tempo, um bom professor sabe quando o conteúdo pega.
    Nós avançamos nos últimos anos, apesar das condições difíceis de muitas escolas neste país. Temos estudantes dispostos a aprender e professores apaixonados por ensinar. Imagine se o país parasse de tratar educadores e alunos como inimigos? Imagine se, em vez de fazer memes para redes sociais, nosso ministro visitasse escolas, conversasse com professores e batalhasse por orçamento para Estados e municípios? Imagine se estivéssemos discutindo como implementar o custo aluno-qualidade, um mecanismo feito para melhorar as nossas aulas e escolas? É pedir muito?

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