sábado, 1 de junho de 2019

Além da Estagnação, Risco de Dolarização,



Além da Estagnação, Risco de Dolarização,

por Fernando Nogueira da Costa

Guedes pretende uma reforma tributária “para estimular o setor privado”. Leia-se: corte de impostos para os ricos e desmanche para tornar o Estado mínimo – e propiciar o máximo de “privataria”.
 

Além da Estagnação, Risco de Dolarização

por Fernando Nogueira da Costa

Em uma piada corporativa se pergunta: – “Qual é a diferença entre economistas e contabilistas?” A resposta é uma única palavrinha: “hipótese”.
Um físico, um químico e um economista estão perdidos em uma ilha deserta, sem nada para comer, exceto com uma lata de sopa enlatada. Entretanto, era preciso abri-la. O físico disse: – “Vamos bater na lata com uma pedra”. O químico disse: – “Vamos fazer uma fogueira e aquecer a lata antes”. Logo, o economista deu sua solução: – “Vamos assumir a hipótese de termos um abridor de lata…”.
Os contadores registram os fatos do passado ao presente. Os economistas são cobrados para desdobrarem da “previsão do passado”, uma causação a partir de determinada hipótese, uma previsão do futuro incerto. A incerteza se dá a respeito de qualquer configuração resultante de múltiplas interações entre decisões a virem ainda ser tomadas de maneira descentralizada, descoordenada e desconhecidas umas das outras.
Minha previsão do passado: 80 anos antes da crise de 2009 tinha ocorrido a maior crise da economia capitalista. Ela maturou por 10 anos, gestando a intervenção econômica do Estado norte-americano com o New Deal de características socialdemocratas. Mas também acabou de chocar “o ovo da serpente”.
Da quebra de sua casca nasceu Adolfo Hitler. Como ditador nazista do Reich Alemão, ele foi o principal instigador da Segunda Guerra Mundial na Europa. A economia de guerra propiciou a superação da Grande Depressão econômica.
Ao contrário, passados 10 anos da depressão de 2009, a guerra comercial decretada por Donald Trump contra a China (e o México) desta vez está levando à desaceleração significativa do comércio mundial. Uma série de indicadores econômicos sugere estar tendo um efeito depressivo crescente sobre a economia mundial.
Martin Wolf (Financial Times, 22/05/19) pergunta: “em qual situação o aprofundamento do conflito econômico entre Estados Unidos e China deixará o restante do mundo, principalmente os aliados históricos dos EUA? Em circunstâncias normais, estes últimos ficariam do seu lado. A União Europeia (UE), afinal, compartilha com os americanos muitas de suas preocupações sobre o comportamento chinês. Mas essas não são circunstâncias normais. Sob o governo Donald Trump, os EUA se tornaram uma superpotência aberrante, hostil, entre muitas outras coisas, às normas fundamentais de um sistema comercial baseado em um acordo multilateral e em regras vinculantes”.
Para a OCDE, a tensão entre as duas maiores economias do mundo é um perigo para os investimentos globais e empregos, além de reduzir o padrão de vida dos consumidores e aumentar custos de produção para as empresas. É um risco global resultar em uma forte desaceleração da China. O rápido crescimento do endividamento privado de corporações não financeiras é outro risco. O volume de US$ 13 trilhões representa quase o dobro do montante de 2008. O crescimento global rastejante vai continuar. A OCDE sugere os governos agirem com urgência, usando todos os instrumentos à disposição para reativar uma expansão para todas as economias – e povos.
A história importa, mas ela se afasta progressivamente das condições iniciais desconhecidas. Por isso, estamos na dependência de uma trajetória caótica. A conjuntura ou configuração atual da economia como um sistema complexo é composta de fatos transcorridos em um processo socioeconômico e político ainda em andamento.
Se os economistas não sabem de onde viemos e para onde vamos, com honestidade intelectual nada poderiam prognosticar. Por dever de ofício, se quisermos entender onde a economia mundial está hoje e onde poderá́ estar amanhã, temos de saber como correu até a provisória linha de chegada. Martin Wolf diagnostica o mundo atual como aquele das taxas de juros reais e nominais ultrabaixas, política populista de eleitos com pequena maioria falarem “em nome de todo o povo”, mas atuarem apenas em função de sua base eleitoral e demonstrarem hostilidade à economia de mercado globalizado.
Os governos de países cujas dívidas são denominadas em suas próprias moedas, ou seja, caso dos Estados Unidos e de outros sem dívida externa expressiva, podem administrar as consequências de uma crise causada pelo crédito excessivo. O dinheiro farto e barato provocou a economia das bolhas, seja a de ações, seja a imobiliária. Os governos alongam o ajuste por vários anos, evitando assim uma Grande Depressão, tal como nos anos 30 do século passado, causada por uma espiral descendente de falências em massa e colapso da demanda. Vivemos sim uma Grande Recessão ou “estagnação secular”, isto é, um mundo de demanda agregada estruturalmente insuficiente para retomada do crescimento sustentado em longo prazo.
Para a desalavancagem financeira, adota-se uma mescla de quatro políticas econômicas: austeridade fiscal; refinanciamento da dívida corporativa (no caso brasileiro via emissões de debêntures com juros mais baixos); afrouxamento monetário pelos bancos centrais, com baixos juros para sustentar os preços dos ativos; e mais transferências de renda e de riqueza para o topo da pirâmide. Nessa desalavancagem se mantém as taxas de juros de longo prazo abaixo do crescimento das rendas nominais para diminuição do grau de fragilidade financeira, isto é, a relação serviço da dívida/renda esperada.
E aqui-e-agora? Foi eleito presidente da República por uma pequena maioria (6% dos eleitores reverteriam o resultado) um representante antes “dissidente” da casta dos guerreiros-militares. Esteve por 27 anos refugiado no baixo clero da casta dos oligarcas da Câmara de Deputado, mas foi “esperto” o suficiente para enriquecer e criar seu clã dinástico político, aliado aos milicianos do Rio de Janeiro.
Sem debater na campanha eleitoral seu programa de governo, o único projeto apresentado foi a agenda de costumes conservadores de acordo com a mescla de valores morais militares e evangélicos: vingança contra os 30 anos de ostracismo militar, coragem para enfrentar os “inimigos” nomeados e adoção cega de programas de outras subcastas como a dos sabidos pastores neopentecostais. Daí defende os principais interesses dos políticos evangélicos: a manutenção de seus privilégios – isenção tributária e concessões de TVs e rádios; o avanço de pautas conservadoras, como a proibição do aborto, mesmo para os casos legalmente previstos; a proibição da discussão sobre gênero e prevenção da homofobia nas escolas, o retrocesso de direitos de grupos vulneráveis, como os travestis e transexuais.
E na área econômica? Dado seu desconhecimento de causa, centralizar toda a economia nas mãos de um ideólogo ultraliberal representante da subcasta dos mercadores, no caso, a dos banqueiros de negócios. O frasista carioca usa frases “espertas” e ocas para esconder sua carência de projeto estruturante de soberania nacional: “com a eleição do Bolsonaro o Brasil não vai virar a Venezuela, mas não garantiu não virar a Argentina”. Para isso, repete seu disco-arranhado: “é necessária a reforma da Previdência Social para o Brasil não virar a Argentina”. É a típica chantagem de tapeador.
Na verdade, sua prioridade é, via ajuste fiscal e privatizações de patrimônio público, controlar o crescimento da relação dívida bruta/PIB. Seus parceiros rentistas a têm como indicador de uma (falsa) ameaça de insolvência governamental. Evidentemente, com estagnação ou queda do PIB não alterará essa trajetória.
Retirada essa tecla única, qual será seu programa? Guedes pretende uma reforma tributária “para estimular o setor privado”. Leia-se: corte de impostos para os ricos e desmanche para tornar o Estado mínimo – e propiciar o máximo de “privataria”.
O ministro refuta a ideia de o Banco Central baixar os juros como forma de estimular o crescimento. Ele tem razão quanto à assimetria da política monetária: uma arma poderosa para provocar recessão, mas frágil para propiciar retomada do crescimento. Não há demanda por crédito sem projeto de investimento, dada ainda a baixa desalavancagem financeira das empresas não-financeiras brasileiras, o baixo ritmo de vendas, a grande capacidade produtiva ociosa e a lentidão para incorporar as inovações disruptivas da indústria 4.0 no Brasil. É bobagem a ladainha tipo Jornal Nacional: “estado de confiança brotará imediatamente após a reforma da Previdência”.
Na realidade, o consumo popular está estagnado pela ameaça de desemprego e o consumo do varejo de alta renda está suspenso pela ameaça previdenciária. Paradoxalmente, com baixa taxa de juro, o “efeito riqueza” se inverte e as famílias de alta renda cortam gastos para aumentar a sobra de renda necessária aos investimentos financeiros. Com o corte de direitos trabalhistas, a meta prioritária passa ser a acumulação de capital financeiro para seus rendimentos futuros substituírem a renda do trabalho na fase inativa.
Enquanto isso, o neto do Roberto Campos propõe a liberação geral das contas em dólares no país! O Private Banking usará o real para pagar e o dólar para investir. Bancos disputam os recursos de 121 mil brasileiros endinheirados, cerca de R$ 1,125 trilhão de 56 mil famílias, atendendo brasileiros já “refugiados” no exterior e ampliando a oferta de produtos para clientes habitantes ainda do Brasil, mas com desejo de investir fora do país. Ao fim e ao cabo, com essa fuga de capitais, o dólar será reserva de valor e unidade de conta. Logo, a depreciação da moeda nacional será rapidamente repassada para todos os preços. Ao contrário do dito pelo Guedes, o Brasil virará a Argentina!
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018).

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