O populismo é filho da democracia
Não somos governados pelos mais capazes, mas pelos de quem gostamos mais
Contardo Calligaris
A cada vez que Bolsonaro anuncia alguma nova
medida ou projeto pelo Twitter, alguém observa que o nosso presidente
parece estar ainda em campanha. Ou seja, ele não estaria preocupado com o
presente e futuro do país, mas, prioritariamente, em ganhar e manter a
simpatia do maior grupo possível de seus eleitores. É como se, para ser
presidente, a cada dia, ele precisasse ser eleito novamente.
Claro, ninguém pretende que um governante, uma vez eleito, faça o contrário do que anunciou, mas, justamente, nas democracias, as eleições são a cada quatro, cinco ou seis anos porque, sem isso, nenhum eleito conseguiria governar, nunca: ele só faria campanha.
Voltando: nosso presidente parece estar governando para uma plateia, e não segundo um plano.
Essa característica (de governar para uma plateia) é comum aos populismos que pipocam hoje pelas democracias ocidentais:
Trump e Bolsonaro são grandes exemplos.
Agora, isso é surpreendente? É uma "monstruosidade" que surgiu só agora, por causa das redes sociais que tornam a tal plateia constantemente presente?
Acredito no contrário: receio que os populismos que governam para a plateia sejam filhos legítimos do sistema democrático moderno. Explico.
A novidade moderna (que vem de longe e triunfa no fim do século 18) é que nosso destino não é decidido por nosso berço e nossos ascendentes. Quem seremos na vida não depende de onde nascemos e de quem: a gente pode esperar se inventar, ser "outro", seguir nosso desejo.
Hoje, posso vir a ser ministro mesmo sem ser nobre, mas isso tem um preço: preciso que os outros (no mínimo, alguns deles) acreditem nos meus dotes e, em síntese, que eles gostem de mim.
Sou livre porque poderei fazer uma série de coisas para ser gostado, enquanto, no antigo regime, não podia fazer nada para corrigir o fato de que eu nascera numa casa sem nobreza.
Na modernidade, aliás, o fato de ser reconhecido, apreciado e gostado se torna mais importante não só que nossa origem, mas também que nossa eventual competência.
No mundo moderno, ser competente ajuda, mas melhor não esperar disso o sucesso se a gente não parecer competente. Ou seja, na modernidade, somos "livres", mas reféns dos outros e do que eles pensam de nós.
A democracia representativa moderna é a expressão política dessa mudança. Não somos governados pelos mais capazes e competentes, mas por aqueles de quem apreciamos o sorriso ou a voz, por quem supomos sermos amados etc. —ou seja, por aqueles de quem gostamos mais.
Claro, nesse "gostar" as ideias podem ter alguma relevância. Mas, de novo, é fácil constatar que os argumentos sem "gostabilidade" não adiantam, enquanto a "gostabilidade" sem argumentos pode ganhar uma eleição.
No jogo democrático, ser gostado é mais importante do que convencer.
Por isso mesmo, talvez o populismo não seja uma monstruosidade, mas a forma conclusiva da democracia.
Daí o clima permanente de campanha: o político não pode deixar de entusiasmar a plateia porque a aprovação dela é o que confirma sua legitimidade. Então, sim, a reforma da Previdência é importante para o país, mas, para o político, é mais importante reformar o código da circulação para ganhar a aprovação dos multados. Qualquer relatório sobre o custo em vidas humanas dessas mudanças pode ser dispensado, porque não importa debater sobre os efeitos das mudanças, o que importa é ser gostado.
As redes sociais são a verdade da democracia: elas escancaram que a fonte do sucesso (e da legitimidade) está no número de likes.
Para os preguiçosos, o lado bom desse mundo é que ninguém precisa pensar para escolher. Precisa é gostar ou não.
O mesmo vale para a realidade. Ninguém precisa se informar, estudar ou fazer as contas. O que importa é gostar: se vários gostarem, a Terra é plana e o genocídio não aconteceu.
Vivemos num clima de boteco em que os argumentos e as competências contam pouco, onde brilham os que ganham a cumplicidade da maioria —os piadistas, por exemplo, ou os que dizem exatamente o que todos pensavam e não ousavam confessar que pensavam.
Trump e Bolsonaro não inventaram esse clima de boteco; como disse, ele não é uma deformação do espírito da modernidade, mas a realização de sua promessa: você será o que você quiser, se for gostado por muitos outros —e poderá dizer qualquer besteira, se ela for gostada pelos mesmos.
Claro, ninguém pretende que um governante, uma vez eleito, faça o contrário do que anunciou, mas, justamente, nas democracias, as eleições são a cada quatro, cinco ou seis anos porque, sem isso, nenhum eleito conseguiria governar, nunca: ele só faria campanha.
Voltando: nosso presidente parece estar governando para uma plateia, e não segundo um plano.
Agora, isso é surpreendente? É uma "monstruosidade" que surgiu só agora, por causa das redes sociais que tornam a tal plateia constantemente presente?
Acredito no contrário: receio que os populismos que governam para a plateia sejam filhos legítimos do sistema democrático moderno. Explico.
A novidade moderna (que vem de longe e triunfa no fim do século 18) é que nosso destino não é decidido por nosso berço e nossos ascendentes. Quem seremos na vida não depende de onde nascemos e de quem: a gente pode esperar se inventar, ser "outro", seguir nosso desejo.
Hoje, posso vir a ser ministro mesmo sem ser nobre, mas isso tem um preço: preciso que os outros (no mínimo, alguns deles) acreditem nos meus dotes e, em síntese, que eles gostem de mim.
Sou livre porque poderei fazer uma série de coisas para ser gostado, enquanto, no antigo regime, não podia fazer nada para corrigir o fato de que eu nascera numa casa sem nobreza.
Na modernidade, aliás, o fato de ser reconhecido, apreciado e gostado se torna mais importante não só que nossa origem, mas também que nossa eventual competência.
No mundo moderno, ser competente ajuda, mas melhor não esperar disso o sucesso se a gente não parecer competente. Ou seja, na modernidade, somos "livres", mas reféns dos outros e do que eles pensam de nós.
A democracia representativa moderna é a expressão política dessa mudança. Não somos governados pelos mais capazes e competentes, mas por aqueles de quem apreciamos o sorriso ou a voz, por quem supomos sermos amados etc. —ou seja, por aqueles de quem gostamos mais.
Claro, nesse "gostar" as ideias podem ter alguma relevância. Mas, de novo, é fácil constatar que os argumentos sem "gostabilidade" não adiantam, enquanto a "gostabilidade" sem argumentos pode ganhar uma eleição.
No jogo democrático, ser gostado é mais importante do que convencer.
Por isso mesmo, talvez o populismo não seja uma monstruosidade, mas a forma conclusiva da democracia.
Daí o clima permanente de campanha: o político não pode deixar de entusiasmar a plateia porque a aprovação dela é o que confirma sua legitimidade. Então, sim, a reforma da Previdência é importante para o país, mas, para o político, é mais importante reformar o código da circulação para ganhar a aprovação dos multados. Qualquer relatório sobre o custo em vidas humanas dessas mudanças pode ser dispensado, porque não importa debater sobre os efeitos das mudanças, o que importa é ser gostado.
As redes sociais são a verdade da democracia: elas escancaram que a fonte do sucesso (e da legitimidade) está no número de likes.
Para os preguiçosos, o lado bom desse mundo é que ninguém precisa pensar para escolher. Precisa é gostar ou não.
O mesmo vale para a realidade. Ninguém precisa se informar, estudar ou fazer as contas. O que importa é gostar: se vários gostarem, a Terra é plana e o genocídio não aconteceu.
Vivemos num clima de boteco em que os argumentos e as competências contam pouco, onde brilham os que ganham a cumplicidade da maioria —os piadistas, por exemplo, ou os que dizem exatamente o que todos pensavam e não ousavam confessar que pensavam.
Trump e Bolsonaro não inventaram esse clima de boteco; como disse, ele não é uma deformação do espírito da modernidade, mas a realização de sua promessa: você será o que você quiser, se for gostado por muitos outros —e poderá dizer qualquer besteira, se ela for gostada pelos mesmos.
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