A
ideia de criar um fundo com dinheiro da Petrobras para financiar
iniciativas de combate à corrupção já existe pelo menos desde fevereiro
de 2018. No dia 1º daquele mês, chegou à Justiça Federal em Nova York,
nos Estados Unidos, a minuta de acordo entre a Petrobras e acionistas da empresa,
autores de uma ação coletiva em trâmite naquele tribunal, em que a
possibilidade da criação de um fundo com dinheiro da estatal foi
prevista. Fundo para combater corrupção com dinheiro da Petrobras já
estava previsto em acordo assinado entre a empresa e acionistas nos
Estados Unidos, um ano antes de assinatura de acordo com MPFMenos de um ano depois, a estatal assinou um acordo com os procuradores da “lava jato” no Paraná
para criar um “fundo patrimonial” para financiar iniciativas de combate
à corrupção. Embora esse acordo já tenha sido homologado pela Justiça
Federal no Paraná, a criação do fundo foi suspensa
pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, porque o
MPF não tem competência para decidir sobre a destinação do dinheiro. Os
acordos não estão formalmente ligados, mas ambos os fundos são
alimentados com dinheiro da Petrobras. O primeiro, da ação coletiva,
prevê o pagamento de US$ 3 bilhões aos acionistas que comprovarem
prejuízo com a desvalorização da estatal na Bolsa de Valores de Nova
York. Já o “fundo patrimonial” seria alimentado com a parte destinada ao
Brasil da multa estipulada pelo Departamento de Justiça dos EUA (DoJ),
ou R$ 2,5 bilhões. No
acordo da ação coletiva, a criação do fundo está prevista na cláusula HH
das considerações iniciais. Diz lá que, depois que o pagamento das
quantias aos acionistas da Petrobras não for mais “economicamente
viável”, o dinheiro deve ser destinado a um "programa no Brasil
destinado a combater a corrupção e melhorar a governança corporativa”. A
viabilidade do pagamento será decidida pelo administrador do pagamento
das indenizações previstas no acordo. O
acordo foi homologado em abril de 2018, pelo juiz Jed Rakoff. Ele se
tornou uma espécie de "embaixador" da "lava jato" nos Estados Unidos.
Com essa referência, passou a dar entrevistas e palestras de apoio à
força-tarefa de Curitiba, inclusive no Brasil, ao lado do desembargador
Fausto De Sanctis, responsável pelas operações castelo de areia e
satiagraha, e da ex-corregedora nacional da Justiça Eliana Calmon. Em nota enviada à ConJur,
a Petrobras afirma que a cláusula HH “não tem qualquer relação com o
fundo previsto no acordo firmado entre a Petrobras e o Ministério
Público Federal”. Segundo
um advogado próximo ao assunto ouvido pela reportagem sob a condição de
não ser identificado, a Petrobras não tem qualquer ingerência sobre o
dinheiro: ele prevê o depósito em três parcelas, e depois disso a
relação processual da estatal com os autores da ação coletiva se
encerra. No entanto,
segundo a cláusula HH, se, depois de seis meses da primeira distribuição
de dinheiro aos acionistas, os administradores do acordo entenderem que
não vale mais a pena continuar o pagamento aos envolvidos na ação,
podem avisar a Petrobras, que constituirá o fundo previsto no acordo. A
última parcela do acordo foi paga no dia 19 de janeiro deste ano.
Quatro dias depois, o acordo com os procuradores da “lava jato” foi
assinado. Disputa de narrativas Na nota enviada à ConJur, a Petrobras
afirma que a cláusula HH é “comum nesse tipo de acordo”. A afirmação é
só em parte confirmada por advogados com experiência em ações coletivas
nos Estados Unidos consultados pela reportagem. Eles consideram inédita a
previsão de que a ré na ação coletiva decida sobre a criação do fundo.
Normalmente, os autores das ações é que ficam com essa atribuição,
dizem. Nos EUA, acordos que preveem envio de dinheiro para fundos
destinados a políticas públicas são normais, diz ex-procurador do DoJ —
estranho é que o réu no processo decida para onde vai a verba 123RFPara esses especialistas, o problema nasce com a
diferença entre o que a Petrobras alega nos EUA e o que alega no Brasil.
Nas instâncias americanas, a empresa reconhece que houve falhas em seus
sistemas de controle que permitiram que seus diretores entrassem num
esquema corrupto de contratação de obras. E reconhece que se beneficiou
desse esquema. No Brasil, a
Petrobras diz que foi vítima de seus diretores corruptos. E em seus
balanços, afirma que não sabe calcular com precisão qual o efeito dessa
corrupção em seus resultados. Desde 2015, vem dizendo ao mercado que o
esquema perpetrado pelos diretores resultou em perdas de R$ 6 bilhões. “Esse
tipo de cláusula como a HH é, de fato, normal. Mas o caso da Petrobras é
único. Se a empresa é culpada pela corrupção e deve reparar os
acionistas, por que vai decidir o destino do dinheiro? Se é vítima, por
que está reparando os acionistas?”, comenta um ex-procurador do DoJ
ouvido pela ConJur que pediu para não ser identificado. No
acordo da ação coletiva, a Petrobras não admite ter cometido
ilegalidades. Mas à Securities and Exchange Commission (SEC), agência
reguladora do mercado de capitais dos EUA, a empresa confessa ter
“enganado acionistas”. A defesa do ex-presidente Lula também vem chamando atenção para essas contradições há algum tempo. Em petição
enviada ao Superior Tribunal de Justiça, os advogados Cristiano Zanin
Martins e Valeska Teixeira Martins pediram que a Petrobras fosse
intimada a explicar a diferença de versões, já que isso pode ter
consequências nas ações penais a que o ex-presidente responde. O
pedido foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça na ação sobre o
apartamento em Guarujá (SP). O STJ já julgou o recurso e reduziu a pena
de Lula. Mas não intimou a Petrobras a se explicar. “Essa
resposta é importante porque, enquanto no Brasil a Petrobras acusa Lula
de comandar um esquema de corrupção de que foi vítima, nos EUA ela não o
menciona em nenhum momento. Diz que o esquema foi tocado por cinco de
seus ex-diretores”, comenta Valeska. Ela agora disputa o acesso à
íntegra dos autos da ação coletiva. O processo tem mais de 20 milhões de
páginas e o acesso à cópia de cada uma delas custa US$ 0,10. Risco Lula Embora Lula não seja mencionado expressamente no
acordo, ele é uma figura importante no processo. Segundo o advogado
Jeremy Lieberman, do escritório Pomerantz Law, um dos representantes dos
acionistas da Petrobras e signatário do acordo, o juiz deveria correr
com a análise da proposta, conforme disse em petição enviada ao juiz Rakoff
no dia 23 de abril de 2018. O Brasil se aproximava das eleições, e o
“bastante popular” ex-presidente Lula já havia anunciado sua
candidatura. Advogado de acionistas da Petrobras alertou juiz para que
agilizasse análise da proposta de acordo, já que Lula anunciara a
candidatura a presidente nas eleições de 2018 e era o favorito ReproduçãoConforme ele, as eleições se aproximavam e o Brasil
se aproximava de um cenário de “instabilidade política”. Ou seja: o
“bastante popular” ex-presidente Lula, que acabara de ter sua pena por
corrupção e lavagem de dinheiro aumentada pelo TRF da 4ª Região, já
havia anunciado que pretendia ser candidato a presidente mesmo preso, e
as pesquisas de opinião o mostravam como favorito ao posto. “Há
um risco considerável de que Lula ou outros possam agir politicamente
ou fazer proposições legislativas para limitar a exposição da Petrobras à
ação coletiva ou para dificultar a execução de uma decisão judicial”,
afirma a petição. A ação
coletiva alega que os acionistas foram prejudicados pela negligência da
Petrobras com suas políticas de controle interno e auditoria. Nos EUA, a
narrativa levada ao Judiciário é que a empresa tem parte da culpa por
alguns de seus principais diretores terem participado de um esquema de
corrupção para superfaturar contratos. Portanto, a estatal brasileira,
acusa a ação, se utilizou de meios ilegais para lucrar, expondo todos os
seus acionistas a risco. O
acordo da empresa com os acionistas deixa isso bem claro. E envolve,
além da Petrobras, as empresas responsáveis pelo controle externo, pelas
políticas de governança corporativa e auditoria. Entre elas, Citigroup,
JP Morgan, Merrill Lynch, HSBC e outras instituições financeiras
internacionais. A auditora PricewaterhouseCoopers (PwC) também assinou acordo para encerrar as ações, pagando US$ 50 milhões. De resto, a conta foi inteiramente arcada pela Petrobras. Quem
acompanhou as negociações diz que isso foi feito como manobra para
acelerar a assinatura do acordo e encerrar logo a ação. A Petrobras
havia passado por uma mudança radical em sua direção depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas a ação coletiva não parecia se aproximar de um fim. Ação coletiva A assinatura do acordo não encerrou a discussão.
Alguns acionistas recorreram da homologação do acordo à segunda
instância da Justiça Federal em Nova York, a Corte Distrital de Nova
York. Na homologação, o juiz Rakoff deixa claro que uma decisão da corte
pode anular o acordo, o que fará a ação voltar a tramitar e o obrigará a
decidir conforme os autos. Antes de troca no comando da Petrobras, empresa contestou
legitimidade ativa de autores de ação coletiva na Suprema Corte dos
Estados Unidos DivulgaçãoE durante os primeiros anos da tramitação da ação
coletiva, a Petrobras foi radicalmente contra todas as alegações dos
acionistas. Inclusive foi à Suprema Corte dos EUA contestar a legitimidade dos acionistas para ajuizar a ação. Nos EUA, ações coletivas se chamam class action,
ou “ações de classe”, em tradução literal. À Suprema Corte, a Petrobras
alega que os acionistas não podem ser considerados uma “classe”
legitimada a ajuizar a ação. Mesmo
os representantes dos acionistas reconhecem as poucas chances de
sucesso da ação. Na petição ao juiz Rakoff, Jeremy Lieberman afirma que
45% das ações coletivas ajuizadas entre 2000 e 2017 foram rejeitadas por
completo. Outras 30% foram rejeitadas em parte. “Processar
ações coletivas sobre o mercado de ações é um negócio arriscado”,
conclui a petição. O advogado Jeremy Liberman foi procurado pela ConJur, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
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