sexta-feira, 21 de junho de 2019

Fundo com dinheiro da Petrobras já estava previsto em acordo com acionistas nos EUA


Intercâmbio jurídico

Fundo com dinheiro da Petrobras já estava previsto em acordo com acionistas nos EUA


A ideia de criar um fundo com dinheiro da Petrobras para financiar iniciativas de combate à corrupção já existe pelo menos desde fevereiro de 2018. No dia 1º daquele mês, chegou à Justiça Federal em Nova York, nos Estados Unidos, a minuta de acordo entre a Petrobras e acionistas da empresa, autores de uma ação coletiva em trâmite naquele tribunal, em que a possibilidade da criação de um fundo com dinheiro da estatal foi prevista.
Fundo para combater corrupção com dinheiro da Petrobras já estava previsto em acordo assinado entre a empresa e acionistas nos Estados Unidos, um ano antes de assinatura de acordo com MPF
Menos de um ano depois, a estatal assinou um acordo com os procuradores da “lava jato” no Paraná para criar um “fundo patrimonial” para financiar iniciativas de combate à corrupção. Embora esse acordo já tenha sido homologado pela Justiça Federal no Paraná, a criação do fundo foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, porque o MPF não tem competência para decidir sobre a destinação do dinheiro.
Os acordos não estão formalmente ligados, mas ambos os fundos são alimentados com dinheiro da Petrobras. O primeiro, da ação coletiva, prevê o pagamento de US$ 3 bilhões aos acionistas que comprovarem prejuízo com a desvalorização da estatal na Bolsa de Valores de Nova York. Já o “fundo patrimonial” seria alimentado com a parte destinada ao Brasil da multa estipulada pelo Departamento de Justiça dos EUA (DoJ), ou R$ 2,5 bilhões.
No acordo da ação coletiva, a criação do fundo está prevista na cláusula HH das considerações iniciais. Diz lá que, depois que o pagamento das quantias aos acionistas da Petrobras não for mais “economicamente viável”, o dinheiro deve ser destinado a um "programa no Brasil destinado a combater a corrupção e melhorar a governança corporativa”. A viabilidade do pagamento será decidida pelo administrador do pagamento das indenizações previstas no acordo.
O acordo foi homologado em abril de 2018, pelo juiz Jed Rakoff. Ele se tornou uma espécie de "embaixador" da "lava jato" nos Estados Unidos. Com essa referência, passou a dar entrevistas e palestras de apoio à força-tarefa de Curitiba, inclusive no Brasil, ao lado do desembargador Fausto De Sanctis, responsável pelas operações castelo de areia e satiagraha, e da ex-corregedora nacional da Justiça Eliana Calmon.
Em nota enviada à ConJur, a Petrobras afirma que a cláusula HH “não tem qualquer relação com o fundo previsto no acordo firmado entre a Petrobras e o Ministério Público Federal”.
Segundo um advogado próximo ao assunto ouvido pela reportagem sob a condição de não ser identificado, a Petrobras não tem qualquer ingerência sobre o dinheiro: ele prevê o depósito em três parcelas, e depois disso a relação processual da estatal com os autores da ação coletiva se encerra.
No entanto, segundo a cláusula HH, se, depois de seis meses da primeira distribuição de dinheiro aos acionistas, os administradores do acordo entenderem que não vale mais a pena continuar o pagamento aos envolvidos na ação, podem avisar a Petrobras, que constituirá o fundo previsto no acordo.
A última parcela do acordo foi paga no dia 19 de janeiro deste ano. Quatro dias depois, o acordo com os procuradores da “lava jato” foi assinado.
Disputa de narrativas
Na nota enviada à ConJur, a Petrobras afirma que a cláusula HH é “comum nesse tipo de acordo”. A afirmação é só em parte confirmada por advogados com experiência em ações coletivas nos Estados Unidos consultados pela reportagem. Eles consideram inédita a previsão de que a ré na ação coletiva decida sobre a criação do fundo. Normalmente, os autores das ações é que ficam com essa atribuição, dizem.
Nos EUA, acordos que preveem envio de dinheiro para fundos destinados a políticas públicas são normais, diz ex-procurador do DoJ — estranho é que o réu no processo decida para onde vai a verba
123RF
Para esses especialistas, o problema nasce com a diferença entre o que a Petrobras alega nos EUA e o que alega no Brasil. Nas instâncias americanas, a empresa reconhece que houve falhas em seus sistemas de controle que permitiram que seus diretores entrassem num esquema corrupto de contratação de obras. E reconhece que se beneficiou desse esquema.
No Brasil, a Petrobras diz que foi vítima de seus diretores corruptos. E em seus balanços, afirma que não sabe calcular com precisão qual o efeito dessa corrupção em seus resultados. Desde 2015, vem dizendo ao mercado que o esquema perpetrado pelos diretores resultou em perdas de R$ 6 bilhões.
“Esse tipo de cláusula como a HH é, de fato, normal. Mas o caso da Petrobras é único. Se a empresa é culpada pela corrupção e deve reparar os acionistas, por que vai decidir o destino do dinheiro? Se é vítima, por que está reparando os acionistas?”, comenta um ex-procurador do DoJ ouvido pela ConJur que pediu para não ser identificado.
No acordo da ação coletiva, a Petrobras não admite ter cometido ilegalidades. Mas à Securities and Exchange Commission (SEC), agência reguladora do mercado de capitais dos EUA, a empresa confessa ter “enganado acionistas”.
A defesa do ex-presidente Lula também vem chamando atenção para essas contradições há algum tempo. Em petição enviada ao Superior Tribunal de Justiça, os advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Martins pediram que a Petrobras fosse intimada a explicar a diferença de versões, já que isso pode ter consequências nas ações penais a que o ex-presidente responde.
O pedido foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça na ação sobre o apartamento em Guarujá (SP). O STJ já julgou o recurso e reduziu a pena de Lula. Mas não intimou a Petrobras a se explicar.
“Essa resposta é importante porque, enquanto no Brasil a Petrobras acusa Lula de comandar um esquema de corrupção de que foi vítima, nos EUA ela não o menciona em nenhum momento. Diz que o esquema foi tocado por cinco de seus ex-diretores”, comenta Valeska. Ela agora disputa o acesso à íntegra dos autos da ação coletiva. O processo tem mais de 20 milhões de páginas e o acesso à cópia de cada uma delas custa US$ 0,10.
Risco Lula
Embora Lula não seja mencionado expressamente no acordo, ele é uma figura importante no processo. Segundo o advogado Jeremy Lieberman, do escritório Pomerantz Law, um dos representantes dos acionistas da Petrobras e signatário do acordo, o juiz deveria correr com a análise da proposta, conforme disse em petição enviada ao juiz Rakoff no dia 23 de abril de 2018. O Brasil se aproximava das eleições, e o “bastante popular” ex-presidente Lula já havia anunciado sua candidatura.
Advogado de acionistas da Petrobras alertou juiz para que agilizasse análise da proposta de acordo, já que Lula anunciara a candidatura a presidente nas eleições de 2018 e era o favorito
Reprodução
Conforme ele, as eleições se aproximavam e o Brasil se aproximava de um cenário de “instabilidade política”. Ou seja: o “bastante popular” ex-presidente Lula, que acabara de ter sua pena por corrupção e lavagem de dinheiro aumentada pelo TRF da 4ª Região, já havia anunciado que pretendia ser candidato a presidente mesmo preso, e as pesquisas de opinião o mostravam como favorito ao posto.
“Há um risco considerável de que Lula ou outros possam agir politicamente ou fazer proposições legislativas para limitar a exposição da Petrobras à ação coletiva ou para dificultar a execução de uma decisão judicial”, afirma a petição.
A ação coletiva alega que os acionistas foram prejudicados pela negligência da Petrobras com suas políticas de controle interno e auditoria. Nos EUA, a narrativa levada ao Judiciário é que a empresa tem parte da culpa por alguns de seus principais diretores terem participado de um esquema de corrupção para superfaturar contratos. Portanto, a estatal brasileira, acusa a ação, se utilizou de meios ilegais para lucrar, expondo todos os seus acionistas a risco.
O acordo da empresa com os acionistas deixa isso bem claro. E envolve, além da Petrobras, as empresas responsáveis pelo controle externo, pelas políticas de governança corporativa e auditoria. Entre elas, Citigroup, JP Morgan, Merrill Lynch, HSBC e outras instituições financeiras internacionais. A auditora PricewaterhouseCoopers (PwC) também assinou acordo para encerrar as ações, pagando US$ 50 milhões. De resto, a conta foi inteiramente arcada pela Petrobras.
Quem acompanhou as negociações diz que isso foi feito como manobra para acelerar a assinatura do acordo e encerrar logo a ação. A Petrobras havia passado por uma mudança radical em sua direção depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas a ação coletiva não parecia se aproximar de um fim.
Ação coletiva
A assinatura do acordo não encerrou a discussão. Alguns acionistas recorreram da homologação do acordo à segunda instância da Justiça Federal em Nova York, a Corte Distrital de Nova York. Na homologação, o juiz Rakoff deixa claro que uma decisão da corte pode anular o acordo, o que fará a ação voltar a tramitar e o obrigará a decidir conforme os autos.
Antes de troca no comando da Petrobras, empresa contestou legitimidade ativa de autores de ação coletiva na Suprema Corte dos Estados Unidos
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E durante os primeiros anos da tramitação da ação coletiva, a Petrobras foi radicalmente contra todas as alegações dos acionistas. Inclusive foi à Suprema Corte dos EUA contestar a legitimidade dos acionistas para ajuizar a ação. Nos EUA, ações coletivas se chamam class action, ou “ações de classe”, em tradução literal. À Suprema Corte, a Petrobras alega que os acionistas não podem ser considerados uma “classe” legitimada a ajuizar a ação.
Mesmo os representantes dos acionistas reconhecem as poucas chances de sucesso da ação. Na petição ao juiz Rakoff, Jeremy Lieberman afirma que 45% das ações coletivas ajuizadas entre 2000 e 2017 foram rejeitadas por completo. Outras 30% foram rejeitadas em parte.
“Processar ações coletivas sobre o mercado de ações é um negócio arriscado”, conclui a petição. O advogado Jeremy Liberman foi procurado pela ConJur, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

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