Batom brasileiro na cueca americana
Marcelo Zero
1. Moro, o juiz "isento e imparcial", era o grande chefe das investigações. Instruía e orientava os procuradores. Chegava ao cúmulo de indicar possíveis testemunhas para a acusação, como está explicitamente posto no diálogo datado de 7 de dezembro de 2015. Dallagnol, como afirmou o Ministro do Supremo Gilmar Mendes, parecia mais um "bobinho", a seguir as orientações e os conselhos do "grande líder brasileiro", que "conduziria multidões" e que já o conduzia.
2. Os métodos utilizados não eram apenas antiéticos e violadores dos princípios do amplo direito à defesa e do devido processo legal, como também, de acordo com Gilmar Mendes e muitos outros juristas, francamente ilegais. No mencionado diálogo de 7 de dezembro de 2015, face à negativa do delator sugerido por Moro, Dallagnol fala em intimá-lo com base em "notícia apócrifa". Moro responde para formalizar a intimação. Ou seja, o procurador propõe algo antiético e ilegal e o juiz o incentiva. A isso se soma, nesse mesmo diapasão injurídico, os vazamentos ilegais e sistemáticos, o uso da prisão preventiva como instrumento de tortura psicológica para forçar e direcionar delações, as arbitrariedades das conduções coercitivas desnecessárias, a espionagem do escritório de advocacia, etc.
3. O conluio entre Moro e os procuradores tinha uma clara e agora explícita conotação política e destinava-se, fundamentalmente, a atacar o PT, derrubar o governo legítimo e impedir a candidatura de Lula, nas eleições de 2018. O fato das investigações terem respingado em outros partidos e encarcerado alguns corruptores e corruptos de fato não invalida essa constatação fundamental. Mais uma vez na história do Brasil, o discurso contra a corrupção foi usado com fins político-ideológicos, como no segundo governo de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964. Algo péssimo para o próprio combate à corrupção.
4. A mídia tradicional aderiu de bom grado a esse conluio e, em vez de questionar os fins políticos e os métodos autoritários, antiéticos e até ilegais da operação, contribuiu decisivamente para enganar a população, disseminar o ódio contra o PT e seus governos, criminalizar a atividade política, fragilizar o sistema de representação, derrubar um governo legítimo, encarcerar o maior líder popular da nossa história, destruir vastos setores produtivos do país e eleger um protofascista que elogia ditaduras e torturadores.
Isso tudo já era bastante óbvio para quem tinha um mínimo de informação, honestidade intelectual e massa cinzenta. As revelações do Intercept, embora importantíssimas, apenas comprovam o que já se sabia.
Aqueles que não sabiam, ou melhor, fingiam não saber o que era o ponto central da Lava Jato e sua verdadeira natureza agora ensaiam uma operação de contenção de danos.
Tal operação visa:
a) Conter as óbvias irregularidades e legalidades nas figuras de Moro e Dallagnol.
b) Manter Lula preso.
c) Manter o discurso da criminalização do PT e da "política".
d) Manter todas ou a maioria das decisões dos processos da Lava Jato.
e) Dissociar o escândalo do governo Bolsonaro.
f) Dissociar o escândalo da atuação pregressa da mídia.
g) Dissociar o escândalo da implementação da agenda ultraneoliberal.
h) Ocultar as ligações externas da operação e sua relação com a nova postura geopolítica do Brasil.
Entre todos esses objetivos, o mais importante é esse último.
De fato, como já escrevi em artigo anterior, a Lava Jato foi criada no âmbito da cooperação bilateral entre Brasil e EUA, no campo jurídico. Na realidade, ela foi conduzida essencialmente pelo Departamento de Justiça (DOJ) dos EUA, que usa seus instrumentos jurídicos extraterritoriais para fazer valer os interesses daquele país em todo o mundo.
Não se trata de teoria da conspiração. É somente um fato básico da geopolítica mundial. O exemplo recente da perseguição jurídica à Huawei é bem eloquente a esse respeito.
Embora tal perseguição contrarie o direito internacional público, há de se reconhecer que os procuradores norte-americanos defendem os interesses de seu país. Jamais passaria pela cabeça de algum procurador dos EUA conduzir uma operação que resultasse na destruição de empresas norte-americanas e de empregos norte-americanos. Caso houvesse, ele seria rapidamente enquadrado. Talvez preso.
No Brasil, infelizmente...........
Do ponto de vista dos EUA, o objetivo principal pretendido com a Lava Jato e com o golpe de 2016 foi alcançado: o Brasil tornou-se aliado incondicional dos EUA, em sua luta geoestratégica contra China e Rússia.
Deixamos de ser país soberano e voltamos a ser quintal.
Para os interesses do Império, é vital que essa "conquista" recente seja mantida e aprofundada. Podem cair Moro e Dallagnol, pode até cair Bolsonaro, mas a atual política externa passiva e submissa não pode mudar no essencial.
Para tanto, é também fundamental que as revelações do Intercept não escancarem que o juiz e os procuradores brasileiros atuavam, em boa parte, sob a batuta jurídica, técnica e política do DOJ.
Entretanto, nas últimas conversas divulgadas, Dallagnol confessa que que as operações da Lava Jato dependiam estreitamente da "articulação" com os norte-americanos.
Isso pode ser o início da comprovação de um grande crime geopolítico.
Isso é batom brasileiro na cueca norte-americana.
Marcelo Zero
É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado
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