sexta-feira, 21 de junho de 2019

O que os cinco do Central Park e a super-promotora Linda Farstein nos ensinam sobre a Justiça



O que os cinco do Central Park e a super-promotora Linda Farstein nos ensinam sobre a Justiça

Patrícia Campos Mello

Policiais, promotores e jornalistas colaboraram para que o sistema cometesse uma injustiça


É difícil assistir até o final a “Olhos que condenam”, série da diretora Ava DuVernay que acaba de estrear na Netflix.  A sensação de injustiça revira o estômago, causa mal-estar físico.
A série retrata o caso dos cinco adolescentes negros, entre 14 e 16 anos, condenados injustamente pelo estupro de uma executiva de banco branca no Central Park, em Nova York, em 1989.

Nova York vivia uma onda de crimes, no pico da epidemia de crack, e o estupro brutal de Trisha Meili, que chegou a ficar em coma e ficou com sequelas para sempre, causou comoção nacional.
A polícia estava determinada a solucionar o caso rapidamente. Uma promotora aguerrida, Linda Farstein, supervisora da investigação e chefe da área de crimes sexuais, determina já de início que todos os jovens negros que estavam no parque eram suspeitos.
Os policiais saíram interrogando todos os negros e latinos que estavam no Central Parque na hora do crime, e acabam focando em cinco —Korey Wise, Raymond Santana, Kevin Richardson, Antron McCray e Yusef Salaam, que tinham entre 14 e 16 anos.
Não havia nenhum indício ou prova de que os meninos estivessem envolvidos. Nem os horários em que o crime aconteceu e o local onde eles estavam no parque eram compatíveis
Os adolescentes foram interrogados por horas, sem a companhia dos pais ou de advogados. Foram coagidos a confessar, com a promessa de que, em troca de colaboração, seriam soltos logo.
Os meninos cumpriram penas entre 6 e 13 anos. Perderam a sua juventude detrás das grades, tratados como criminosos, sem ter feito nada.
Em 2002, Matias Reyes, um estuprador em série que cumpria pena de 40 anos de prisão, confessou o crime contra Trisha Meilli, e o teste de DNA confirmou a autoria.
Reyes, após atacar Trisha, continuara solto, estuprara outras mulheres e matou uma grávida —enquanto cinco adolescentes inocentes estavam presos.
A Justiça anulou a condenação dos jovens, que foram soltos. Mas nem o Estado, nem a promotora, ou policiais, admitiram o erro.
A cidade fez um acordo com os cinco em 2014 e os indenizou em US$ 41 milhões pelos quase 40 anos de vida perdidos na prisão injustamente —sem admitir nenhum erro.
Na série, a promotora Farstein aparece admitindo que os horários não batiam, que não havia nenhuma prova, mas mesmo assim insiste em enquadrar os jovens.
Nem quando se encontra DNA que não é compatível com o material genético de nenhum dos jovens ela desiste. Continua forçando a barra para incriminá-los.
Farstein protestou, dizendo que a série é tão “cheia de distorções e falsidades que chega a ser uma invenção completa”.
Outro que faz uma aparição pouco lisonjeira é o então magnata imobiliário Donald Trump. Na época, Trump comprou anúncios de página inteira nos jornais pedindo a volta da pena de morte e pronta execução dos meninos.
A mídia tampouco sai ilesa —jornais cobriram o processo de forma sensacionalista e levantaram poucos questionamentos em relação às acusações e investigações.
Policiais, promotores, jornalistas —todos juntos colaboram para o sistema judicial cometer uma injustiça atroz.
Desde que a série estreou, a vida de Linda Farstein virou de cabeça para baixo.
Ela fora tratada como uma super-heroína da Justiça em grande parte de sua vida. Fora uma das chefes da divisão de combate aos crimes sexuais em NY, que inspirou a série de TV  Law and Order SVU.
Ganhara prêmios de pessoa do ano e se tornara uma das promotoras mais famosas do país. Após se aposentar da promotoria, tornou-se uma bem-sucedida escritora de best-sellers policiais.
Com a série, campanhas de boicotes a seus livros ganharam as redes sociais, e sua editora acabou cancelando seu contrato. Farstein se viu obrigada a renunciar de cargos em vários conselhos de organizações filantrópicas.
Ao New York Times, Daniel R. Alonso, que trabalhava com Farstein na promotoria, afirmou que “é sempre terrível quando uma pessoa é condenada injustamente”, mas que isso não deveria ofuscar todas as conquistas da carreira da promotora.
Citando o histórico de Farstein no combate a estupradores e em campanhas por medidas de proteção a vítimas, ele disse ao jornal: “Eu acho que é terrível cancelar a carreira inteira de alguém por causa de um caso”, disse.
Mesmo quando o caso resulta em cinco jovens passando quase 40 anos na cadeia por engano?
Patrícia Campos Mello
Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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