quarta-feira, 19 de junho de 2019

A Lava Jato e o Brasil do passado




A Lava Jato e o Brasil do passado

por Mário Montanha Teixeira Filho - 
( blog do Zé Beto)

As matérias divulgadas a conta-gotas pelo portal The Intercept Brasil a partir de 9 de junho foram um golpe duro para Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e outras celebridades da Lava Jato. Diálogos pouco edificantes sobre procedimentos legais e “combate à corrupção”, agora tornados públicos, revelam o mais absoluto desprezo por princípios elementares do direito e pela Constituição. No comando da república de Curitiba, uma tolice midiática cultuada por fanáticos, a dupla praticou aberrações jurídicas, contou com a colaboração de outros agentes públicos em suas estripulias, teve apoio de setores da imprensa historicamente vinculados a golpes de Estado e interferiu no destino político do País, hoje sob a presidência de um capitão do Exército que enxerga comunismo, drogas, sexo e roquenrou em tudo.
O que apareceu nas conversas entre as autoridades ilibadas não chega a surpreender. Para quem algum dia teve a curiosidade de analisar a atuação da “força tarefa”, não foi difícil ver que interesses estranhos rondavam as investigações. Juízes, promotores e policiais alçados à condição de paladinos da moral, da família e da religiosidade ganharam passe livre para praticar, desde o início da operação, um ativismo judicial que forjou processos cujos resultados estavam previamente definidos. O mais célebre deles pôs na cadeia o ex-presidente acusado de receber, como propina, um triplex no litoral paulista registrado em nome da construtora do imóvel. A condenação de Lula, não por acaso, é o tema central das informações trocadas entre juiz e acusador, que se empenharam em transformar indícios, papéis rasurados e reportagens de um jornal “amigo” em provas absolutas, corroboradas por delatores premiados [1].
Essa disfunção processual é nítida nas peças fabricadas por Moro e Dallagnol. Sabe-se, agora, em que circunstâncias elas surgiram para o mundo. Eis a única novidade. De resto, a suspeição de Moro para julgar sempre se fez perceber em suas aparições vaidosas – por vezes constrangedoras – em eventos sociais patrocinados por inimigos declarados do réu. Ou na platitude com que se deixou retratar em capas de revistas como combatente pela moralidade, herói dos fracos e oprimidos, símbolo da nova era, de um Brasil destinado a recuperar a ordem e o progresso gravados no lema positivista da sua bandeira.
Para os envolvidos nessa confusão, sobrou a tentativa de relativizar o alcance dos fatos, primeiro, e de negar a sua autenticidade depois. Já os meios de comunicação coautores da farsa judiciária se concentraram na ilegalidade do material obtido pelo Intercept, de modo a fazer da dupla de vazadores contumazes – Moro e Dallagnol, convém não esquecer, foram pródigos em repassar dados e gravações obtidos pela Lava Jato a órgãos da imprensa – vítima de “grampeadores”. O passo seguinte, que já se insinua, será a criminalização dos jornalistas responsáveis pela denúncia. Assim funcionam as instituições deste latifúndio tropical, esperança do morismo renitente e suas inclinações autoritárias, ultimamente bradadas em tom nervoso – o morismo e seu exército do “bem”, a legitimar a barbárie inquisitória desde que seus desafetos sejam os receptores do castigo.
“Mas a troca de ideias entre juízes e promotores é comum no cotidiano da Justiça”. “Mas a sentença que decretou a prisão de Lula foi confirmada em instâncias superiores”. “Mas houve corrupção na Petrobras, e era imperioso desbaratar a quadrilha que assaltou o País”. “Mas o que interessa é que a Lava Jato prendeu criminosos de colarinho branco”. “Mas quem é contra a força tarefa é a favor dos corruptos”. Essas são algumas das máximas repetidas pelos que insistem em justificar o conluio entre Ministério Público e Justiça Federal que o jornalismo investigativo mostrou.
Um pouco de cautela faria bem a essa gente. Como se sabe, tem mais, muito mais por aí. Não é à toa que a sequência do escândalo assusta os envolvidos. Veio da juíza Gabriela Hardt, sucessora de Moro na 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, a primeira reação. Sem esperar por manchetes comprometedoras, ela antecipou que entrará com ações judiciais contra os editores do site caso o seu nome apareça na série de reportagens [2]. 
A legião dos preocupados reúne outros coadjuvantes da trama: procuradores, jornalistas, desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e membros do Supremo Tribunal Federal. É possível que os seus perfis se tornem mais familiares quando – ou se – o conteúdo das mensagens eletrônicas que compartilharam explicar novos detalhes do protagonismo do Poder Judiciário na disputa presidencial recente. Há, por exemplo, muito a ser dito sobre o julgamento que indeferiu, em tempo recorde, a apelação que os advogados de Lula encaminharam ao tribunal de Porto Alegre, responsável pela análise da matéria em segunda instância. E sobre as manobras do STF que convalidaram a prisão do ex-presidente antes do trânsito em julgado da sentença condenatória [3]. E sobre as horas de angústia e expectativa vividas no dia 8 de julho de 2018, um domingo em que o TRF4 e a república de Curitiba entraram em polvorosa, surpreendidos pelo despacho de um desembargador de plantão que ordenou a soltura imediata do réu famoso [4]. E assim, sucessivamente, sobre curiosidades, coincidências e interpretações dos fatos que cercaram e cercam esse enredo novelesco.
As consequências das publicações do Intercept ainda estão por ser determinadas, mas não há como negar que os processos da Lava Jato já foram atingidos por elas. Nada será como antes, gostem ou não os super-heróis nacionais e seus comparsas, circunspectos senhores de um moralismo quadrado. Moro e Dallagnol, entre muitos outros funcionários do Estado, ultrapassaram os limites das atribuições que lhes cabiam, cometeram ilícitos administrativos graves e fabricaram provas e sentenças conforme suas convicções ideológicas. Contribuíram, com métodos heterodoxos de investigar e decidir, com a derrubada de uma presidente da República, em 2016, e articularam politicamente para encarcerar o candidato que despontava como favorito para vencer o pleito de 2018. Feito o serviço, o ex-juiz se transformou em ministro da Justiça, com promessa de futura nomeação para o STF – um regalo, ao que tudo indica, negociado previamente entre os interessados.
Não é coisa pouca. Foram princípios civilizatórios que a Lava Jato e congêneres pisotearam. Daí a necessidade de recomeçar tudo, reconstruir a democracia perdida, desfazer a síntese dessa aventura sombria: a sentença de Moro, um juiz que nunca foi juiz, no caso do triplex. Esse é o sentido da liberdade de Lula, uma exigência fundamental para superar o regime de exceção que abandonou o Brasil num canto escuro e triste do passado.

[1] Sobre as provas produzidas no processo do triplex, fundadas em reportagens antigas do jornal “O Globo”, ver o artigo “Assim decretou Sérgio Moro: breves apontamentos sobre política e Justiça” (http://www.assejurpr.com.br/artigos/assim-decretou-sergio-moro-breves-apontamentos-sobre-politica-e-justica/).
[2] Sobre reações às matérias divulgadas pelo site Intercept, ver, entre outras, a matéria “Juíza Gabriela Hardt promete processar responsáveis caso tenha conversas vazadas” (https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-06-17/juiza-gabriela-hardt-promete-processar-responsaveis-caso-tenha-conversas-vazadas.html).
[3] Sobre a liminar do TRF4 que determinou a soltura de Lula, ver o artigo “Lula, habeas corpus, teratologia e política: a centralidade do Poder Judiciário na crise institucional brasileira” (http://www.assejurpr.com.br/artigos/lula-habeas-corpus-teratologia-e-politica-a-centralidade-do-poder-judiciario-na-crise-institucional-brasileira/)
[4] O julgamento aconteceu no dia 4 de abril de 2018, com voto decisivo da ministra Rosa Weber, que, apesar de ser contrária à prisão de réus condenados em segunda instância, se manifestou conforme a “maioria”, autorizando a prisão de Lula.

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