domingo, 19 de maio de 2019

Idiotas úteis



Idiotas úteis

Quem esteve nas ruas entendeu que não há negociação com este governo

O fato será lembrado. A primeira grande ação nacional contra o governo do sr. Bolsonaro, envolvendo manifestações comparáveis ao que vimos em junho de 2013, foi feita pelos estudantes e universitários em ao menos 170 cidades.
Nada poderia ser mais explícito. Há uma juventude que, desde as ocupações de 2011 —passando por 2013, pelas ocupações dos secundaristas em 2016 e pelas várias mobilizações dois últimos dois anos—, aparece como o principal motor de revolta e descontentamento.
São anos de mobilizações constantes, de capacidade de articulação e de expressão clara de recusa às prioridades e à brutalidade do Estado brasileiro. Quando o sr. Bolsonaro evidenciou a face mais primária de sua violência, chamando-os de “idiotas úteis”, ele acabou por mostrar qual é o verdadeiro inimigo número um de seu governo.

Seu grupo sabe que há uma geração forjada no fogo das ruas que paulatinamente se constitui como sujeito coletivo de um processo possível de transformação radical. O desgoverno que hoje tomou de assalto o Planalto apareceu exatamente como a tentativa desesperada de impedir que tal emergência ocorra. Ela irá apenas acelerá-la.
Contra a transformação, os velhos métodos estão de volta. Nos últimos dias, vimos a já previsível enxurrada de imagens fake de “anarquia sexual” e de “balbúrdia” nas escolas e universidades. Alguém deveria dar livros de Wilhelm Reich para esse pessoal ler.
Desde os anos 1930, sabemos que todo fascismo mobiliza o ressentimento daqueles que fazem de tudo para não serem afetados pela circulação da sexualidade. Como se a sexualidade livre fosse colocar o corpo social em estado de degenerescência e degradação.
Não por outra razão, os nazistas, além que criarem termos como o famoso “bolchevismo cultural”, criaram também o “bolchevismo sexual” —que este governo irá rapidamente ressuscitar. Podem apostar.
Mas, além do método afetivo via WhatsApp, há ainda o método “racional”. Ele consiste em baixar a voz e dizer: “Veja bem, números são números. Não há dinheiro, mas se a reforma da Previdência passar, tudo volta ao normal”. É nessas horas que fica claro o que o governo quis dizer quando vira para a população e a chama de “idiota”. Porque é necessário uma certa limitação de raciocínio para acreditar em algo dessa natureza.
Primeiro, ninguém mostrou número algum, cálculo algum para chegar no valor de 30% de corte nas universidades. Começou-se cortando 30% de três universidades que pretensamente estariam a produzir “balbúrdia”, mas quando ficou evidente que era uma pressão política contra certos reitores, o Ministério da Educação saiu-se com a generalização do corte. Como se vê, tudo com um profissionalismo impressionante.
Segundo, porque o conto de que o crescimento virá com a reforma da Previdência é tão seguro quanto aquela história de que basta o impeachment para reaquecer imediatamente a economia ou de que, diminuindo impostos para empresários, eles voltariam a investir com seu “espírito animal”.
Você pauperiza a população, retira-lhe direitos e garantias, transfere renda para setores que preferirão o investimento seguro do rentismo, descapitaliza o Estado e depois não sabe por que a economia não cresce. Isso não funcionou em lugar algum do mundo e não funcionará aqui.
De toda forma, o jogo enfim começou. As manifestações não terminaram na quarta-feira. Elas apenas começaram, e com força. Quem esteve nas ruas entendeu que não há negociação alguma com este governo, que o sr. Bolsonaro não age como presidente, mas como chefe de gangue, com lógica e modos de chefe de gangue que procura surfar no ressentimento de seus recrutas.
O destino do Brasil era passar por uma polarização radical. Isso estava explícito desde as eleições de 2014. Um polo só havia se configurado. Agora, virá o segundo.
Vladimir Safatle

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