Não houve eleição e não há presidente
O que vimos foi simplesmente um processo sem condição alguma de preencher critérios básicos de legitimidade. Ou seja, uma farsa
Vladimir Safatle
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Desde que a opinião pública brasileira descobriu a natureza das mensagens trocadas
entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol ficou
claro que não houve nada parecido a eleições minimamente legítimas no
ano de 2018. O que vimos foi simplesmente um processo sem condição
alguma de preencher critérios básicos de legitimidade. Ou seja, uma
farsa, mesmo para os padrões elásticos da democracia liberal.
Como
todos sabem, as mensagens demonstraram algo cuja descrição correta só
pode ser uma rede de corrupção envolvendo membros do poder judiciário.
Pois é corrupção do estado toda ação feita tendo em vista a distorção de
procedimentos legais para benefício próprio. O sr. Moro e seus asseclas
utilizaram dinheiro público como se fosse privado (no caso do pedido do
sr. Dallagnol para uso de 38.000 reais da 13ª Vara para o pagamento de
campanha publicitária), aproveitaram-se financeiramente da condição de
servidores públicos com informações privilegiadas (ao, em meio a
processo envolvendo alguns dos maiores agentes econômicos nacionais, serem pagos em palestras
milionárias), tentaram tomar para si a gestão de 2,5 bilhões de reais
da Petrobras por meio da criação de uma fundação privada: tudo em nome
ao combate à corrupção.
Como se isto não bastasse, o sr.
Moro foi flagrado “melhorando provas”, agindo juntamente com
procuradores para fazer do julgamento de um dos mais importantes casos
da política brasileira uma simples encenação. Pois todos, independente
de quem sejam, têm o direito a um julgamento justo e imparcial. Mas isto
não aconteceu no caso que estava sob sua jurisdição.
Seus
apoiadores afirmam que era necessário “quebrar as regras” para
conseguir enfim combater o pior de todos os males que assola esse país
desde o momento que suas terras foram invadidas por portugueses, a
saber, a corrupção. No entanto, ninguém precisa acreditar nessa história
cínica. Na verdade, o sr. Moro quebrou todas as regras possíveis para
benefício próprio, ou seja, para prender o candidato à Presidência que
impedia seu próprio projeto pessoal de se tornar presidente em 2022.
Ninguém que tem interesse pessoal em um processo pode ser o juiz do
mesmo. Mas como ninguém parou o sr. Moro, ele pode ser agora catapultado
para o centro da política brasileira pelas mãos de um político que ele,
mais do que ninguém, elegeu ao tirar o primeiro colocado de circulação,
ao alimentar o noticiário com notícias construídas tendo em vista o
calendário eleitoral. Que ninguém se engane. Este senhor já está em
campanha, sua mulher já está em campanha, seus apoiadores já estão em
campanha.
Por outro lado, não precisou mais do que sete
meses para o Governo que ele ajudou a eleger demonstrasse sua própria
rede de corrupção. Casos de financiamento ilegal no partido deste que
ocupa a Presidência, envolvimento de seu filho senador em desvios de
verba de gabinete, envolvimento de sua família com milícias. A lista não
é pequena.
Diante deste cenário, basta juntar os pontos
para tirar as reais consequências. O que vimos no ano passado foi uma
eleição fraudada, viciada, montada em todas as peças para ter o
resultado que teve. Não há razão alguma para respeitá-la. Uma eleição
real pede partidos livres, possibilidade de todos se candidatarem e não
interferência de poderes extra-eleitorais nos processos em curso. Não há
eleição real quando se escolhe quem pode e quem não pode concorrer.
O
Brasil segue sem presidente. Quem está no poder sabe tanto disto que
sequer finge governar para a maioria do povo brasileiro. O sr. Bolsonaro
governa para os porões da caserna de onde saiu, além de governar para
consolidar a mobilização dos 30% da população brasileira que seguirão
lhe apoiando. Ele sabe que este é seu teto.
Seu ato sórdido de falar sobre um desaparecido político
na cadeira de um barbeiro contando a história de seu pretenso
justiçamento por membros da luta armada, quando todas as informações do
estado mostram seu assassinato sob tortura não é “mais uma derrapada”. É
um ato de governo pensado e encenado. É a sua real concepção de governo
e que consiste em mudar paulatinamente o centro dos limites do
intolerável. Os que dizem que “são só palavras” não entendem nada sobre o
que palavras realmente são. Palavras são o que temos de mais real, pois
sua circulação autoriza ações, violências, afetos e túmulos.
Dividir para crescer
No
entanto, Bolsonaro sabe ainda algo mais. Algo que seus opositores não
sabem ou parecem não querer saber: que enquanto não houver incorporação
efetiva da maioria que não lhe apoia em um processo comum, os 30% que
lhe apoiam serão mais do que suficiente para ele continuar no governo.
Se há algo que deve nos preocupar não é exatamente o que faz o sr.
Bolsonaro, mas o que nós não fazemos.
Há algumas semanas, o país viu a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira desde o início da ditadura militar.
A reforma previdenciária aprovada em primeiro turno na Câmara não é
mero ajuste, mas a mudança estrutural das relações trabalhistas no país.
Apenas para ficar em um de seus pontos. Enquanto a idade mínima para
homens aposentarem passou para 65 anos, estados como Maranhão, Piauí e
Alagoas têm expectativa de vida masculina em torno de 67 anos. Nos
bairros pobres da cidade de São Paulo, como Cidade Tiradentes, Jardim
Ângela, Anhanguera, Grajaú, Iguatemi a expectativa de vida varia de 54 a
57 anos. Na verdade, 36 dos 96 distritos paulistanos têm expectativa de
vida abaixo de 65 anos. Ou seja, essas pessoas simplesmente não irão se
aposentar mais. Elas estão condenadas a parar de trabalhar apenas no
momento em que se aprontarem para a morte.
Mas a reforma
passou, em seu primeiro embate, com um silêncio tumular vindo da
oposição. É em relação a isto que devemos estar realmente preocupados.
No momento em que foi necessário um processo comum (já que todos serão,
de alguma forma, afetados), não havia nada capaz de produzi-lo. Onde
estávamos e o que realmente nos mobiliza neste momento? Todos deveriam
fazer uma autocrítica honesta, não apenas partidos e sindicatos, mas
todos, isto se não quisermos ser tragados por movimentos desta natureza
mais uma vez. Enquanto a capacidade de produção de força comum estiver
fora de nosso alcance, continuaremos a perder.
Isto pode
parecer com mais um chamado em nome da “unidade”. Mas valeria a pena
precisar melhor esse ponto. Por mais paradoxal que isto possa parecer,
talvez precisemos agora de divisão para unir, e não de união. É claro
que essa operação parece um contrassenso para os que acham que a
política anda na mesma via dos sinais matemáticos. Mas, a despeito de
seu estranhamento, ela faz todo sentido.
Há certas
situações nas quais é necessário dividir para crescer. A oposição
brasileira até agora sonhou com uma união em cima do nada. Ela não
definiu as rupturas que quer tomar para si, o horizonte de suas novas
lutas. Tentará ela ser, mais uma vez, o “good cop” do
capitalismo brasileiro ou estará enfim disposta a vocalizar rupturas até
agora não tentadas? Será ela o arauto do retorno a uma democracia que
nunca existiu entre nós ou assumirá enfim o desafio de romper e criar o
que até agora não existiu? Pregará ela o evangelho da “integração para
todos” e do respeito a uma emancipação de indivíduos proprietários ou
estará disposta a ser a força de desintegração que nos levará para fora
do universo de propriedades? Essas divisões podem criar novas alianças.
Por isto, elas podem nos fazer crescer.
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