A raposa vai ao moinho até que um dia perde o focinho, diz um velho ditado. Novas revelações, desta vez pela Folha de S.Paulo, trazem novos capítulos desse que pode ser considerado o maior escândalo da Justiça brasileira pós-1988. Primeiro, é necessário registrar o que disse a Folha sobre a autenticidade dos documentos: ao seu exame, não detectou qualquer adulteração (p. A5, edição de 23/6/2019). Somando
isso ao fato de que nem Moro nem Dallagnol, de início, negaram os
conteúdos, o jogo parece que já tem campo para ser jogado. Já não se
trata simplesmente de “sensacionalismo” ou “prova ilícita” (pela enésima
vez, prova ilícita pode, sim, ser usada a favor da defesa!). Já não dá
para negar as evidências. É lipstick in interulus, como se diria em latim gauchês. Sigo. O que se tira das revelações deste domingo (23/6)? Vamos lá[1]. A
primeira coisa que salta aos olhos é a subserviência de Dallagnol a
Moro, o que mancha a instituição do MP, transformando o papel do agente
ministerial em um mero coadjuvante que obedece a ordens de seu chefe, o
juiz da causa. Em latim: Quod si appellans iudici obedit.
Aliás, só a manifestação — intimista — hipotecando total solidariedade e
o modo como Dallagnol disse isso a Moro já seria motivo suficiente para
anular o processo. De todo modo, no mínimo mostra subserviência. Restou
claro o comprometimento da autonomia da Polícia Federal (o delegado
Anselmo se explica em relação à divulgação de planilhas publicizadas sem
a intenção de comprometer a operação), da PGR (determinado parecer
passaria pela revisão da "lava jato"), do Conselho Nacional de Justiça
(Dallagnol diz que vai falar com o pessoal deles no CNJ — questão que
mostra bem o patrimonialismo brasileiro; segundo Dallagnol, esse contato
seria feito pela associação de classe). Vejam que isso é transformado
em uma relação institucional! Pergunto, de novo: é normal isso? Os
diálogos também deixam evidente o esforço de Dallagnol para colocar
panos quentes junto à Polícia Federal (que teria feito “lambança”,
segundo Moro), bem como junto à Procuradoria-Geral da República (Pelella
e “o pessoal de lá” da PGR). Também
exsurge com clareza a estranha (eufemismo meu) combinação dos tempos do
processo — e esta parece ser a revelação mais grave — do prazo de
denúncia do MPF para que dois processos (de João Santana e de Zwi
Skornicki) pudessem “subir” (ao STF, ao ministro Teori, para, então,
desmembrar) com as denúncias já feitas pelo MPF. O incrível (ou crível) é
que o então juiz Sergio Moro quer esconder conteúdo probatório do STF. Trocando
em miúdos: o juiz da causa diz que vai adiar o reconhecimento da
incompetência de foro e, consequentemente, adiar a soltura dos presos
temporários, in verbis: “No caso de hoje no atual contexto vai
ter de subir Zwi e Santana [para o STF]. Mas vou deixar para assinar
após o fim das temporárias [...]”. Além
disso, pede a Dallagnol que interfira junto ao MBL (Movimento Brasil
Livre) para que esses “tontos” parem de atrapalhar, ao espinafrarem o
então ministro Teori. Pois é. (Se
antes me chamariam de chato, agora, penso, vão chamar de chato
implicante. Mas, enfim, faz parte da função, e eu cumpro. Por que,
afinal, Dallagnol haveria de ter algum tipo de contato com o tal MBL?
Quero dizer... ninguém perguntaria isso para mim. Porque, afinal, quando
alguém pergunta alguma coisa, pergunta já partindo do pressuposto de
que existe a possibilidade. Por que Deltan teria contato com os
“tontos”? Que essa hipótese tenha sido cogitada a priori,
lamento, deixa-me com uma pulga atrás da orelha. Mas enfim, talvez seja a
parte do chato implicante que faz parte da função do jurista. E,
afinal, temos todos a responsabilidade de cumprir e obedecer às
exigências que nossos cargos impõem.) Esse
é o resumo do material deste domingo. Somado ao que já se viu —
aconselhamento de Moro ao órgão acusador, indicação de provas para
Dallagnol, a retirada de uma procuradora que, segundo Moro, não sabia
fazer perguntas, e coisas desse quilate —, temos agora mais elementos
para a imediata decretação da suspeição de Moro e da anulação dos
processos pré-judicados pelo juiz. Ainda
continuarão a dizer que “isso tudo é normal”? Se isso tudo não gera
suspeição, que se retire a suspeição do CPP. E que, a partir de agora,
considere-se normal qualquer jogada ensaiada entre juiz e acusação.
Porque, se é normal, todo juiz pode fazer. Ou não? Ou uma coisa ou
outra, certo? Não dá pra ter o melhor dos dois mundos. Ou três, ou
quatro, enfim. Estamos,
pois, em uma encruzilhada: entre o Estado de Direito e a tese
utilitarista de que “os fins justificam os meios”, pela qual juiz e
procurador podem fazer tabelinha para condenar réus (ou para atrasar a
soltura de presos). Abusar
do uso de tempos processuais, comprometendo a liberdade de pessoas,
fazendo do processo um mero instrumento (estratégia) para condenação, é
fato gravíssimo. Processo é instrumento? Pior: instrumento da acusação?
Nem os instrumentalistas hardcore defenderiam isso. (No Telegram, talvez.) Nessa encruzilhada, como diz Janio de Freias na Folha deste domingo, “este é o momento de decisões graves — o que é sempre perigoso no Brasil”. Tout va très bien.Ou Stanno tutti bene! Há um livro de Alan Riding, Paris, a Festa Continuou,
que trata da vida cultural de Paris durante a ocupação nazista. Há uma
bela passagem, que fala de uma canção popular do ano de 1936,
interpretada por Ray Ventura, chamada Tout va très bien, Madame La Marquise (“tudo vai bem, Madame La Marquise”). A
canção denunciava o que a França fingia não ver: o cataclismo que se
aproximava. Na canção, os empregados de uma aristocrata continuavam a
assegurar-lhe de que tudo estava bem, embora um incêndio tomara conta de
seu castelo, destruindo os estábulos e matando a sua égua favorita. Além disso, o marido de Madame cometera suicídio, mas, ainda assim, não havia com que se preocupar, porque “tout va très bien, Madame La Marquise”. Na paródia que fiz do título da música de Ray Ventura, ficou assim: “tudo vai muito bem, senhores Moro e Dallagnol”. Também há o filme italiano Stanno tutti bene
(1990), com Marcelo Mastroianni (os filhos estavam todos “bem”: por
exemplo, o que era maestro, na verdade apenas tocava um tambor!). Qualquer coincidência é mera semelhança! Tudo vai muito bem. Tudo isso é normal na relação juiz-MP. Tout va très bien. Tout! Stanno tutti bene! Afinal, já disse André Dahmer, tudo está normal. Não há nada acontecendo. Está tudo normal. Tout va très bien. André Dahmer
[1]
Agradeço o conjunto de informações trazidas por Marcio Paixão, Arnobio
Rocha, Carol Proner, Geraldo Prado e tantos juristas e professores do
Grupo Prerrogativas que escreveram sobre as revelações tão logo vieram à luz.
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