quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Crônicas e Críticas da América Latina: A nova liberdade e o novo mundo da cultura livre

Crônicas e Críticas da América Latina: A nova liberdade e o novo mundo da cultura livre: "A nova liberdade e o novo mundo da cultura livre
Cultura Livre: capitalismo bonzinho e altruísta
Pedro Ayres
Jornalista
Há poucos dias da posse da Presidenta Dilma Rousseff, em virtude de uma decisão administrativa simples e normal, que foi ordenar a retirada do selo do Creative Commons do portal do Ministério da Cultura, desencadeou-se uma bem orquestrada campanha para derrubar a Ministra Ana de Hollanda entre a grande mídia e alguns blogueiros. A sensação que essa campanha provocava era tão forte que, para os mais desavisados, parecia que a nova Ministra da Cultura ameaçava a estabilidade da Presidenta Dilma e de seu iniciante governo.
A desmedida reação ante o corte do selo do Creative Commons do portal do MinC, mais do que a simples defesa de algo justo e eficaz para a administração pública, por sua intempestiva, grosseira e ofensiva campanha contra a Ministra Ana de Hollanda, mais do que qualquer texto ou documento, é motivo mais do que suficiente para que se bote as barbas de molho e se passe um pente fino em todos os contratos firmados com o CC e o serviço público federal. Mas o que teria provocado tanta ira?
O sonho dourado de qualquer sistema econômico é a sua perenidade ou, na pior das hipóteses, uma duração de uns mil anos. O capitalismo, que já tem cerca de 700 anos, desde a sua origem luta por esse destino. E para isso seria necessário que a humanidade acreditasse que a sua existência, longe de ser o resultado de naturais desenvolvimentos materiais das sociedades, era algo tão natural quanto a chuva ou os ventos. Que sua existência obedecia aos ditames de um direito natural, quase divino, logo não poderia merecer nenhum tipo de contestação. Enquanto o capitalismo significou a supressão das relações de produção feudais em toda a sua linha, ele teve aspectos progressistas em relação à anterior etapa econômica. Algo que irá se modificando à medida que avança no tempo e se consolida como a única economia política para a humanidade.
E assim foi por muito tempo, até que o próprio processo de desenvolvimento material capitalista e a ampliação de algumas de suas características essenciais, como a incessante acumulação e a concentração de capital, estimulam e definem o surgimento de críticas e negação às dogmáticas verdades capitalistas. Além disso, como não poderia deixar de ser, em busca de uma hegemonia econômica e política, os centros capitalistas entram em sucessivos choques, até que o mais forte dentre eles se torne dominante e definidor das práticas econômicas e políticas para todos os demais. Este fenômeno é conhecido como a etapa imperialista dos Estados capitalistas mais desenvolvidos.
É, pois, nessa fase, marcada por duas grandes guerra mundiais, que o capitalismo dá mais um passo em sua busca pela eternidade, quando, por força do desenvolvimento científico e tecnológico, portanto avanços materiais, faz a opção por algo que alguns de seus teóricos, como Daniel Bell, chamam de sociedade pós-industrial.
Na realidade, foi uma escolha baseada na ânsia de maior concentração e acumúlo, só que agora, os aspectos produtivos estavam em segundo plano, enquanto que as operações financeiras e bursáteis ganhavam os status de únicas verdades econômicas.
Desse modo os equipamentos dos sistemas computacionais - hardware e software - passaram a ser vistos, não mais como instrumentos técnicos a serviço do ser humano e de suas atividades econômicas, mas, fetichistica e alienadamente como uma autêntica 'revolução tecnológica', só por serem novidades em termos práticos.
Ora, como houve o fim da bolha especulativa financeira que criou e movimentou a Nasdaq, junto com a acelerada decomposição do mercado financeiro, para o sistema tornou-se uma necessidade fundamental transformar a sua vantagem científico-tecnológica em pé-de-cabra para mais uma investida na direção do restabelecimento do neoliberalismo como a economia política do mundo. Uma situação muito bem exposta por todos os grandes operadores desse importante segmento do poder imperialista, que lutam pela eliminação da concorrência, tanto endógena, quanto externa, sendo que no caso de alguns países e zonas do mundo, o objetivo é recriar estruturas econômicas e políticas favoráveis a seus propósitos monopolistas.
Mas para que isso aconteça, mais do que recursos financeiros, é preciso que a velha luta ideológica seja novamente travada, só que agora com o uso de outros termos, termos que simulem um formidável conhecimento técnico e outros que desmoralizem o sentido concreto e objetivo de muitas palavras. Palavras que sempre exprimiram determinadas realidades objetivas e subjetivas, agora, quase como sinônimo de qualquer novidade em matéria de gadgets ou widgets.
Esse tipo de irracionalismo que se diz basear na racionalidade, lembra a crítica feita por Herbert Marcuse que, menciona a analise weberiana da racionalidade capitalista - tudo em termos de cálculos de ganhos e perdas - para por em evidência os limites da racionalização liberal, quer dizer, privada: uma lógica que provoca o abandono da verdadeira razão e relega a totalidade social e econômica a forças irracionais, tanto no nível econômico (as crises) como no nível político. Em um ensaio, que anunciava certos temas da Dialética da Razão, refere-se a Max Weber para sustentar a sua tese segundo a qual 'o caráter impessoal e objetivo da racionalidade tecnológica atribue aos grupos burocráticos a dignidade universal da razão'. A racionalidade individual, em sua origem crítica e opositora, transforma-se em uma racionalidade competitiva e termina com 'a submissão estandartizada ao aparato todo poderoso que ela mesma criou'.[MARCUSE, 'The struggle against Liberalism in the Totalitarian View of the state' , in Negations. Londres, Penguin Press, l968, p. l7; id, 'Some social Implications os Modern Technology', Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, pp. 430-433.]. É a versão high tech de Oroborus, a serpente que devora a si mesma.
Como as alternativas de saídas macro-econômicas, que envolvam a chamada economia real, não fazem parte do ideário neoliberal, todas as suas fichas serão lançadas no que ainda são mais avançados - que é a tecnologia da computação -, como forma de sobreviver, retomar o domínio perdido e dar verdadeiros saltos na direção da perenidade ideológica do capitalismo, além de garantir a restaurazione neoliberal.
Mas, para que isso possa ocorrer, antes de mais nada, dentro da linha de combate ideológico, torna-se preciso o total esvaziamento do sentido de muitas palavras, algo aliás que há muito vem sendo exercitado através da ilusão do politicamente correto e do múltiplo fracionamento das reivindicações sociais ou trabalhistas. Palavras como revolução, ideologia, filosofia, classes sociais, liberdade e processo histórico, fora terem os seus sentidos reduzidos às simplificações mais rudimentares, também passam a ter uso para legitimar o seu oposto. Muito embora, quase nunca se note, na realidade, a extrema variedade de ONGs que funciona como um fator de enfraquecimento de lutas mais abrangentes e importantes, é uma poderosa sustentação ideológica do sistema. O procedimento é bem simples, há sempre o engodo do blá-blá-blá da especificidade da luta e daquele que reivindica. É o neoliberalismo aplicado aos grupos.
Chega a ser comovente o uso dos estudos feitos por Manuel Castells, em sua trilogia de ficção científica 'A Revolução da Tecnologia da Informação', pois, o famoso sociólogo espanhol, ao abordar os problemas, questões e soluções de uma nova 'cultura material'(sic), esqueceu-se de um simples e elementar dado - a realidade e os processos contraditórios que movimentam objetiva e materialmente a sociedade humana, a partir da economia. Uma economia que, a despeito da novilíngua criada por ele para tipificar o que antevia, deixará tudo como terra arrasada na seara do neoliberalismo..
Entretanto, como esses novos bucaneiros ainda têm crença no imenso poder do império e de sua tecnologia, através de seus mestres em venda, como Richard Stallman e Lawrence Lessig, tentam vender a sua proposta neoliberal como se fosse o oposto ao que estão propondo, apenas porque mudam o sentido e a lógica das palavras e dos atos. As palavras-chaves são liberdade, cultura livre, compartilhamento, taxas, doações. Vender não existe no vocabulário por eles adotado. Preferem falar em compartilhamento mediante o pagamento de taxas, doações e etc..
É muito didático ler os escritos de Richard Stallman e de Lawrence Lessing, os dois mais badalados arautos dessa 'Cultura Livre'. Assim será possível compreender que técnica de venda transmuta-se em filosofia e que o capitalismo pode ser amigo, bonzinho e altruísta. Que se houver a mudança do nome venda para taxação ou doação, por exemplo, tudo fica mais palatável e rico em conteúdo filosófico, quase rico em ética e mesmo em filantropia.Também fica-se ciente que sem a Internet, não há a menor possibilidade de haver qualquer tipo de conhecimento, seja científico ou empírico. E que a Internet, ao contrário do que muitos afirmam por aí, não é o resultado das necessidades militares estratégicas e táticas dos Estados Unidos, porém o gentil esforço intelectual de mentes livres, que desinteressadamente desenvolviam sistemas tecnológicos, que, usados fora de suas interferências, multiplicam as possibilidade de comunicação e ampliam as possibilidades de controle social, militar e policial por parte dos detentores de potentes backbones.
É claro que para alguns desses 'Pangarés de Tróia', com um pouco mais de leitura, Tolstoi e Thoreau, precursores da desobediência civil como forma de luta política, até que poderiam ser intitulados como os seus mestres e guias. O que não seria tão equivocado, pois, a exemplo deles, também querem um capitalismo bonzinho e altruísta. Um capitalismo que se seguir o caminho do compartilhamento poderá um dia chegar a ser a sonhada Utopia de Thomas Morus, ainda que pela análise da folha corrida do capitalismo, seja mais fácil visualizá-lo como uma sociedade totalitária, acrítica e aética.
Enfim, o texto do Stallman dentre as suas didáticas virtudes, tem uma que é insuperável, que é a clara tradução do ideário neoliberal para o campo do entretenimento e atividades artísticas. Se seguirmos o roteiro de 'compartilhamento' pretendido por esse vendedor de badulaques, logo verificaremos que é um autêntico prelúdio à Oceania orwelliana, com a uniformização cultural e o poder de uma mídia regida por algo que o Pensamento Único do Consenso de Washinton pode criar, mas tudo sob a chancela e selo 'free'.
E ainda tem brasileiro que deseja continuar umbelicalmente ligado a esse grupo: o Movimento pela Cultura Livre, criado nos EUA e com fortes ramificações nos Partidos Verdes de todo mundo. Um grupo cuja 'filosofia', claramente expressa na propaganda de venda dos serviços do Creative Commons, que embora sempre se diga afeito às questões de sofwares livres, ao absolutizar a defesa da 'liberdade' individual, pode ser visto como a inspiração teórica daquele vale-tudo que se desenvolveu durante a campanha presidencial contra a então candidata Dilma Rousseff.

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